sábado, 19 de fevereiro de 2011

O Migalhas

Uma chuva miudinha cai lentamente sobre a terra já encharcada até aos ossos. De vez em quando um raio de sol rasga as nuvens e dá pálido colorido à paisagem molhada. No sino da capela de Rio Mau batem cinco horas da tarde, o douro está sereno como um lago e o perfil prateado das águas, reflectem o casario e as árvores da beirado rio.
Migalha vem dos lados da taberna onde certamente afogou mais uma tarde na ilusão dos copos de vinho tinto. Cambaleia o barqueiro que perdeu já o modo de traçar um azimute, o rumo que o poderia levar a dias mais felizes. Há muito tempo largou o leme que comandava a embarcação da sua vida deixando-a à deriva num oceano austero, solitário e sem afectos: Todavia segue em frente num caminho conhecido e traçado pelas infelizes circunstâncias da vida.; o banco de pedra junto à tília, onde decerto ainda pairam fantasmas de outros tempos.
Abeire-me dele tentando não perturbar a magia deste momento.
- Boa tarde, digo.
Não respondeu, julgo até que nem deu pela minha chegada. A chuva cai e molha-lhe a roupa, molha-lhe o corpo, mas ele serenamente e absorto, continua a olhar para o rio testemunha silenciosa de amores que faliram e paixões que vingaram. Assim permaneceu por algum tempo quedo, mudo, silencioso como se o mundo se tivesse afastado e o deixasse sozinho nesta hora dramática. Repentinamente sai dos seus lábios um murmúrio de canção. Primeiro baixinho como quem chora, depois um pouco mais alto como quem timidamente canta:
- Tu não sabes que dentro da minha alma, conservo aquele carinho que tive para ti. Tu não sabes, que nunca te esqueci, se lembrares o passado, te lembrarás de mim...
Agora há lágrimas no rosto do barqueiro, o fumo do cigarro é denso, tapa-lhe o rosto por instantes transformando-o numa espécie de estátua viva objecto de processo teatral.
- Boa tarde, repito!
Nem um gesto, nem uma palavra, continua a olhar para o rio e a entoar aquela estranha canção que me perturba, que me molha por dentro como se fosse uma súplica a deuses que já não existem ou o bramir de uma recordação que me magoa, que me dói profundamente.
-Tu não sabes, que dentro da minha alma conservo aquele carinho que tive para ti...
Olho-o como se fora a primeira vez surpreendido. Então o Migalhas tem alma? Uma alma que para além do seu teor espiritual é de carne sofredora que me parece capaz deter sentido um dia longínquo um certo carinho e ternura por alguém. Mas por quem!? Nunca lhe conheci namorada ou esposa, a minha lembrança deste homem é remota quase se perde no tempo e no entanto nela não consta qualquer relação de amor fosse por quem fosse.
Agora canta ainda mais baixinho, é só um murmúrio, quase não se faz ouvir:
- Desde o dia em que partistes sinto angústia no meu peito, que será que terás feito, do meu pobre coração...
Com as mãos a tremer, tira do bolso um lenço e seca as lágrimas que lhe afloram aos olhos e se misturam com as gotas da chuva. Dá por mim, olha-me longamente com aqueles olhos de menino medroso como a apelar à minha compreensão.
- Boa tarde, repito!
-Boa tarde, respondeu o Migalhas ensaiando uma breve explicação para o que lhe pareceu um acto menos digno:
- Sabe, estava aqui a olhar o rio e de repente vieram-me à lembrança coisa da vida já de há muito tempo, de há muitos anos...
- Pois é ti Migalhas, às vezes a gente lembra-se do passado...
- Pois, você era uma criancinha nessa altura. Sabe, eu também já fui jovem, tive as minhas coisas, nem lhe conto. Algumas mulheres povoaram os meus sonhos da mocidade. Foi bonito de viver esse tempo mas infelizmente tudo passa, tudo morre. Morre para o mundo onde tudo aconteceu mas não morre para a gente, dentro do nosso peito fica sempre uma lembrança, uma recordação. Lembranças boas, recordações más, conforme a pessoa, conforme a vida.
- Esta era uma recordação boa ti Migalhas, perguntei!
-Era, era uma recordação boa. Lembro-me como se fosse hoje; sentada neste mesmo banco ao meu lado o seu perfume misturava-se com o perfume da tília em flor, o seu sorriso meigo, o seu andar gentil de menina, a sua beleza infinita embriagavam o ar e até o rio tinha ciúmes dela. Quantas vezes aquele tolo me tentou fazer esquecer essa paixão, quantas vezes. Como amei essa mulher meu Deus, exclamou com um suspiro.
- Se a amou assim tanto porque nunca se casou, ou aconteceu alguma fatalidade, perguntei!
- Coisas da vida filho, coisas da vida. Secou novamente as lágrimas e as gotas de chuva com o lenço e levantou-se lentamente. Olhou para o céu e depois para a mim com um olhar estranho que pareceu durar eternamente como se a tentar certificar-se de que eu entendia as coisas, essas coisas da vida que nos fazem sorrir e muitas das vezes chorar chorar de dor.
- Até amanhã.
Fico-me a olhá-lo até ao fundo da rua a vê-lo desaparecer na esquina da casa da Sobreira. Falou mas não me contou tudo, haveria muito mais para dizer, pressenti-o nos seus olhos magoados nos seus gestos de desânimo persistente. Certamente nunca o fará, morrerá com ele esse segredo que carrega no coração e na alma há tanto tempo.
A chuva torna-se mais densa e uma brisa forte agita as folhas da tília e parece-me ouvir nesse sacudir do vento o murmurar daquela nostálgica canção:
…Tu não sabes que dentro da minha alma, conservo aquele carinho que tive para ti. Tu não sabes, que nunca te esqueci, se lembrares o passado te lembrarás de mim...
Até amanhã, ti Migalhas!
Nunca houve amanhã. Nessa noite, o barqueiro adoecera gravemente vindo a falecer poucos dias depois. Nunca me contou o resto da história e eu em sua memória, só pude sentar-me neste banco junto a uma nova tília onde me encontro agora imaginando o fascínio e a beleza de uma mulher que nunca conheci e recordando um homem para quem o amor foi deveras traiçoeiro.
O tempo foi passando, nova primavera desabrochou, os passarinhos cantavam enamorados, muitos perfumes se espalhavam pelo ar, as árvores despontavam para nova vida, mas a tília onde sob os seus frondosos ramos o migalhas se sentava, nunca mais deu folhas, nem flores, nem perfume, simplesmente secou.
Olhei para o rio neste fim de tarde chuvoso onde também eu procuro os meus fantasmas do passado. Talvez que no cintilar das suas águas douradas eu encontre o rosto de alguém que me deixou um dia sem me ter dito adeus.


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