segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Prisão de Sonhos

Fiz seis anos no dia seis de Outubro e logo na manhã seguinte e contra a minha vontade, meteram-me na escola.
Levava a tiracolo uma saca de serapilheira com um livro de leitura, uma lousa encaixilhada em quatro ripas de madeira e um lápis de pedra. Fiquei surpreendido com aquilo, nunca tinha visto semelhantes coisas e desconhecia em absoluto qual o fim para que serviam. Os meus colegas, rapazes e raparigas, levavam também numa saca igual ou parecida as mesmas ferramentas e, como eu interrogavam-se sobre a utilidade a dar aqueles objectos estranhos. Todos seguia-mos descalços pelo caminho abaixo, a minha mãe não me foi levar nesse primeiro dia, tinha de trabalhar e cuidar dos meus irmãos ainda fora da idade de internamento forçado. Era uma algazarra medonha, falava-se de tudo o que poderia acontecer quando finalmente entrasse-mos o portão de ferro da velha escola primária no Remoinho que tinha, cravada numa das ombreiras de granito, uma placa em mármore esbranquiçado que dizia ser propriedade do Estado.
Chorei, eu e os outros, aquilo aterrorizou-nos, entrar numa casa em que o estado é dono e senhor, era coisa de tal solenidade que nos deixou a todos silenciosos, não fosse o estado não gostar da barulheira que tinha-mos feito ao descer a rua.
O prédio já era velho nesse tempo, acho que nunca deve ter sido novo, sempre o conhecia desnudado de cales e pinturas, com falta de bocados de estuque que davam a ideia de que estava a sofrer de grave doença de pele. As portas eram velhas, as janelas também e em algumas delas os vidros tinham desaparecido partidos talvez por pedradas. Ao cimo das escadas estava a professora quieta, petrificada com um papel numa mão dobrada sobre a outra na barriga. Vindo dela chegava-nos um perfume novo uma fragrância desconhecida que se espalhava por todo o recinto e suavizava e adocicava o nosso olfacto imaculado como se fosse um jardim de rosas a aromatizar a atmosfera carregada de maus odores em que vivíamos e só cheirosa na primavera quando os campos se cobriam de flores de malquereres e os montes se enfeitavam com o amarelo vivo dos tojos e o violeta quase púrpura das urzes. Esperou alguns minutos e quando o sino de uma igreja bateu as nove horas, começou a ler os nossos nomes escritos nesse documento.
Chamou pelo primeiro nome e ninguém respondeu, então como quem já está habituada a situações desse tipo, autoritariamente disse em voz alta:
-Quando chamar pelo vosso nome, digam presente!
Assim foi, aquela turba irrequieta fez silêncio absoluto e as vozes que respondiam à chamada, pareciam vir de muito longe, tímidas abafadas pela tosse persistente de alguns, até chegar à minha vez, a ordem era alfabética portanto fui dos últimos a ser intimado.
-Presente respondi mentindo com quantos dentes tinha na boca. Presente implicava estar ali de corpo e alma, cheio de vontade em apreender as primeiras letras do abecedário ora eu, estava em todos os lugares que conhecia, no ribeiro a pescar, no poço de baixo a tomar banho ou nas bordas do grande rio a guardar a minha cabra, lá é que eu não estava de certeza absoluta e nem queria estar e duvido que, nesse momento aflitivo e de incerteza, todos os meus colegas na fantasia da mente, também não andassem a percorrer os caminhos da minha terra em brincadeiras alegres, livres e despreocupadas, cujo dono do prédio chamado estado, acabava de proibir condenando-nos a todos à prisão por muitos anos. A incerteza do futuro amedrontou-nos, a perspectiva do novo fez-nos tremer de medo.
O que foi que eu fiz para me meterem numa jaula com um quadro preto pendurado na parede rabiscado com letras brancas que nenhum de nós sabia decifrar. Que crime terei praticado para me sentarem numa carteira em que já faltavam algumas tábuas menos a de cima que tinha dois tinteiros de cerâmica branca enfiados em dois buracos? Devo ter deixado a cabra ir ao saco do milho do senhor Viana, pensei. E os outros que nem cabra têm? Que asneiras terão feito para serem como eu, encerrados numa sala com ratos a passear acompanhados por pulgas e piolhos?
As pessoas grandes não gostam mesmo de nós, voltei a matutar. Por que é que só fazem isto à canalha que não faz mal nenhum a ninguém? E os grandes, onde estão as raparigas já com peitos e os rapazes com barba na cara? Por que é que não se vê nenhum aqui e a professora não chamou pelo nome de alguns deles? Vi-os sentados nas pedras do largo quando há bocado passava por lá, riam-se como tolos a olhar para nós figuras simplórias e inocentes. Decerto já sabiam o que nos esperava, o fim da liberdade, a terrível caminhada para o degredo onde todas as luzes da nossa infantil felicidade, se apagavam lentamente.
Nunca me hei-de esquecer desse dia em que entrei pela primeira vez na casa do estado por que foi o momento em que ele me agarrou para sempre. Ainda hoje sinto o seu braço injusto e cruel a arrastar-me pela calçada do remoinho para me enjaular nos escombros que restam da escola primária propriedade que ele faz questão em deixar apodrecer.
A manhã foi passando, a professora esforçava-se para manter o silêncio dentro daquelas quatro paredes, o perfume dela a despertar-me a imaginação enquanto olhava pela janela o rio que passava e não me levava com ele até às mãos salgadas do mar que nunca tinha visto mas imaginava lindo e ficava indiferente apesar dos apelos que os meus olhos lhe faziam:
-Tira-me daqui diziam no silêncio da manhã estas vistas que ainda pouco ou nada tinham visto do mundo que se desenrolava à nossa frente. O mar tão longe e tão perto da minha vida, o oceano imenso que silencioso ouviu os meus apelos de criança e muitos anos depois me veio buscar para junto dele.
- Vais aprender a ler e a contar, tinha-me dito a minha mãe no dia anterior. Não disse nada, mergulhado em sombrios pensamentos só me apeteceu perguntar-lhe para que queria eu saber ler e contar se nada havia para ler nem para contar nesse tempo. Quem era eu para contestar a minha mãe, como poderia alguma vez nessa altura e sempre desrespeitar a sua vontade. Fiquei a olhar para o rio, a ver passar os barcos, a pensar que um dia havia de ser grande como o meu pai e então, ninguém poderia encerrar-me numa prisão como esta.
Os dias passaram, na escola aprendi a fazer números e letras na lousa. Os primeiros riscos podiam bem ser o desenho rudimentar do barco do ti Vicente a navegar no rio ou a água do ribeiro a cair na levada com amieiros tombados sobre o poço a chorar a nossa ausência. Nesse precário ensino aperfeiçoei a escrita, tornei-me num menino instruído cujas redacções impressionavam as próprias professoras. Quando terminei o ensino primário, sabia muito mais que metade das pessoas da minha aldeia.
A velha escola continua lá partida em bocados, silvas e árvores crescem no recreio abandonado e no local onde antes se situava a sala de aulas. Os telhados abateram e as eras, agarra-se às pedras que restam a desafiar a decadência. Nenhum som se ouve no interior do espaço de risos e brincadeiras do passado nem a professora se vê ao cimo das escadas a perfumar o ambiente, com um papel na mão a chamar pelos nossos nomes. Se chamasse já seriam muito poucos a dizer presente, alguns porque já faleceram outros por terem tomado direcções diferentes nas suas vidas, eu seria um deles agora por razões muito distintas das que me agoniavam nesses dias mas, desde esse tempo de criança de escola que nunca mais me perguntaram se eu estava presente fosse para o que fosse.
Desinteressaram-se de mim e dos outros, entregaram-nos ao mundo que fez de nós gato – sapato sem nunca nos terem perguntado se era dessa forma que queríamos viver.
Tenho de subir a calçada, aqui não há sítio onde eu possa enterrar tantas lembranças e já não se vê o barco do ti Vicente a cruzar o rio de uma banda para a outra a transportar passageiros, vou visitar a nova escola que não tem vidros partidos nas janelas nem ratos a passear acompanhados com piolhos e pulgas, onde não faltam tábuas nas carteiras e tudo brilha como novo. Vou observar o futuro que do passado só resto eu e um punhado de homens e mulheres obstinados em proporcionar às crianças de hoje um espaço de liberdade e de aprendizagem digno que nunca retroceda às carências e indiferença dos meus tempos de menino e se transforme numa prisão de sonhos dos mais pequenos.
Lá vão as crianças de mochila às costas sorridentes, uns nem por isso, choram agarrados aos regaços das mães, outros nem mochila levam, numa mão um bolo embrulhado num guardanapo de papel, debaixo do braço, uns cadernos a brilhar como novos. Vão a caminho da escola dos tempos modernos que não fora a tenacidade dos professores, seria transformada em prisão de alunos   pelas incapacidades de gestão dos sábios que nos têm governado. Vão ser encarcerados com os docentes o dia todo para que amanhã sejam homens e mulheres bem formados e muitos pais possam angariar sustento e muitos outros sem apetência para o cargo, fiquem livres para passear nos chopings e as estatísticas engordem com dados errados. Quem sou eu o deles que me lembra a minha meninice? Sou esse em que ninguém repara, que leva uma saca de serapilheira a tiracolo, que vai descalço e olha espantado em seu redor. Sou esse de cabelo espetado, de ranho no nariz, em calções onde já falta uma tira sobre um ombro e camisa branca sem metade dos botões. Sou um passarinho que caiu do ninho e desesperado chama pelos seus pais que não o foram levar pela mão à escola. Olhem todos, eu sou aquele a contar do último para a direita, não sou o que sonhei ser depois de ter aprendido a escrever, a ler a contar, a descrever todos os afluentes dos rios, todas as estações e apeadeiros das linhas de comboio e a fazer todas as contas possíveis e imaginárias. Sou esse que apesar de tudo transformou os rabiscos feitos num rectângulo de ardósia encaixilhado em quatro ripas de madeira, escrevendo com um lápis de pedra, em livros que contam histórias do seu povo. Sou também o menino de saca de serapilheira às costas, com um bolo embrulhado num guardanapo de papel, aquele acolá que chora agarrado às sais da mãe por que pela primeira vez na sua curta existência vai ter de deixar o amor e o carinho dela para ser entregue ao desconhecido que o assusta e amedronta, sou esse e os outros todos, revejo-me em cada um deles pedra bruta que rejeita ser modelada, um ser que se confronta com o saber e treme de medo por causa disso.
Sou outra vez criança, sinto-me parte deles todos, comungo as mesmas angústias e preocupações deste momento, sofro no coração que aperta cada vez mais por que vim de um mundo onde só havia amor, liberdade, beijos e abraços, cantigas ao adormecer, sorrisos de ternura e carinhos, tudo coisas que me faziam lembrar o céu, o paraíso onde julguei ir viver para sempre e agora sinto-me desamparado, sozinho no meio de muitas crianças ansiosas como eu.
Como a velha escola a desmoronar-se sobre o rio, eu aproximo-me do fim, sou tudo e não sou nada, mas consigo retroceder e avançar no tempo sempre que é necessário e encontrar-me puro nas lágrimas e nos sorrisos das crianças de hoje.

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