segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Um Amor Assim

Outubro de um ano que já passou confundido no calendário com o dia do meu aniversário. Já nem me lembro de quantos anos fazia nesse dia, provavelmente muitos, eu sou uma oferta dos dias, uma criatura que nunca há-de saber o dia e a hora exacta em que veio ao mundo. Há um perfume a cegar os momentos, uma fragrância que os rios produzem com o propósito de enganar e de iludir todos aqueles que julgam poder desvendar os mistérios que as águas encerram. Poderes ocultos só apreciados nos instantes em que o universo plana em sintonia com a terra e, das forças do firmamento celeste se soltam energias que se abatem sobre as correntes liquidas onde os deuses caminham à noitinha. Sou pois o produto de um amor antigo, genuíno e secreto como o eram quase todos os amores dessa época. Sentimentos fermentados nas profundezas de todos os infernos e abençoados por todas as divindades.
Lembro-me de coisas, de algumas outras me esqueci porque nenhum ser humano consegue reter na mente tantos episódios decorridos ao longo de duas gerações onde se acentuavam as diferenças, os métodos de vida, as dificuldades e as formas de pensar.
– Não dormes?
A noite pergunta-me incessantemente porque estou ali em frente da janela a pesar figos, a tentar imortalizar coisas perdidas, a reinventar momentos que passaram, a rever os cadernos rabiscados dos meus primeiros tempos de escola, estranha grafia imperceptíveis, gatafunhos que me abriram a mente e que hoje só me lembram a criança que já fui.
Às vezes olhava para a minha mãe sentada no sofá com o livro de orações preso nas mãos e os óculos a tombar em cima da ponta do nariz tentando descobrir naquele rosto enrugado as respostas às minhas tantas inquietações, aos meus conflitos interiores, à minha incapacidade de perceber o mundo que acontecia em frente dos meus olhos na vã expectativa de perceber tudo o que ignorava apesar de ser adulto e já ter vivido meia vida. De dentro daquele corpo outrora admirável, surgiram as respostas, frases soltas, silêncios prolongados, histórias de vidas que passaram por ela, pequenas dicas que pacientemente seria preciso decifrar e compreender. O seu coração era a minha sala de aulas, e ela a professora omnipresente que nunca se ausentava um só minuto durante o tempo das primeiras lições, que assistia ao seu aluno durante as vinte e quatro horas do dia ensinando-lhe tudo o que haveria de ser importante e decisivo na sua vida. Quando a surpreendia a ler ou a rezar, eu via nela todas as mães do mundo que vivem numa sociedade que as exalta e simultaneamente as obriga a tratar da casa e criar os filhos sejam quais forem as circunstâncias das suas próprias vidas muitas vezes desordenadas ao ponto de dificultar e tornar quase impossível o cumprimento de tão importante missão. Mulheres transformadas em donas de casa que se desdobram e acumulam tarefas num esforço sobre-humano para que nada falte no lar e à sua criação.
Era uma dama assim que estava sentada à minha frente depois de ter percorrido um longo caminho de sacrifícios misturados com algumas alegrias. Podia estar triste ou desanimada mas quando os seus olhos caiam sobre mim, o seu rosto iluminava-se de repente. Sorria ainda apesar de a vida lhe começar a escapar só porque uma das suas criações estava à sua frente e era como se um arquitecto a contemplar a sua obra-prima, um pintor vaidoso a admirar o seu próprio quadro exposto numa galeria de arte. Decerto procurava em mim defeitos e imperfeições sabendo de antemão que nunca os iria descobrir apesar de serem bem perceptíveis e abundantes, pois aos olhos das nossas mães somos todos perfeitos e irrepreensíveis.
Chegou o dia dos meus anos repetindo-se cronologicamente como no relógio dependurado na nossa sala de jantar a quem periodicamente o meu pai, subindo sobre uma cadeira, ia dando corda para que, impassível, marcasse as horas de muitas vidas num ritmo certo e implacável. O tic tac desse maquinismo antigo parecia o bater de um coração mas não era. As máquinas são insensíveis a tudo, ao avançar da idade, à dor e ao sofrimento e ficam a assinalar o tempo depois de todos nós desaparecermos. Não há como fugir das horas, dos dias e dos anos, queiramos nós ou não, o velho cronómetro tendo corda nunca pára, faz constar na monotonia com que a sua engrenagem se movimenta, que o tempo não tem retorno e quão efémera é a nossa passagem pela terra. Quando era necessário, o meu pai dava força ao aparelho, metia a chave adequada nos dois orifícios do mostrador prateado parecendo estar a apertar ou a desapertar parafusos. A seguir iniciava o processo de sincronizar as badaladas sonoras com os números romanos estampados na frente, rodando com os dedos os ponteiros para a direita. Batiam doze badalas, seguidamente uma, depois duas e assim sucessivamente até completar o ciclo de doze horas requerido pelo relógio. Eu ficava a vê-lo evolvido nessa tarefa e a dizer só para mim: Pai continue, não pare, faça o tempo avançar rapidamente, eu quero ser adulto amanhã, não me sinto bem a desempenhar o papel de criança sem nada com que brincar. Eu tinha a sardanisca que se passeava à beira do tanque mas deve ter morrido ou desaparecido e fiquei sem poder distrair-me. Não pare pai, já passou meio-dia de repente, nem dois minutos os seus dedos demoraram a cavalgar tantas horas que teria de matar com as minhas próprias mãos. Outra volta pai, muitas mais voltas, milhares delas até me sentir um homem grande como tu.
Quando terminava a empreitada, descia do escabelo e ficava frente à frente com a máquina a observar o compasso ritmado do seu bater, ao contrário de mim, desgostoso por que acabava de avançar mais umas horas na sua vida que já se inclinava perigosamente para o fim, parecia-me um ser humano com sentimentos iguais aos meus. Quando finalmente desistia de meditar, perguntava-me:
– Está certo?
Eu respondia quase sempre da mesma maneira:
– Tanto faz, para mim está sempre certo, pai!
Fazia uma rotação de noventa graus com a cabeça e olhava-me como quem olha para um extraterrestre:
– Sempre certo não, pode estar atrasado ou adiantado uns minutos, interpelava.
– E que interessa isso pai, mais minuto menos minuto para trás ou para a frente não tem importância nenhuma, horas certas só interessam aos aviões e aos comboios e nós somos pessoas, pai, dizia eu.
Calava-se, não me respondia, o diálogo entre nós foi sempre e só o essencial, havia uma muralha a separar-nos, um silêncio que nunca compreendi mas que podia ser de cumplicidade mas não o era. Ainda hoje procuro situar-me na sua posição, tento perceber o que o levava a ser tão ausente de mim e tão próximo de outras pessoas que nem da nossa família eram. Intimamente eu sei que ele me considerava como obra sua e que tão manifesto afastamento era apenas e só modéstia de artista, desprendimento após conclusão do prodígio. Com os pulsos um de cada lado da cintura puxava as calças com folga para cima e ia aviar os fregueses da taberna.
Nesse dia do meu aniversário em que todos parecíamos felizes e, como se pressentisse a proximidade do fim dos seus dias, a minha mãe disse-me:
– Filho, eu quero ser sepultada na minha terra!
Já sabia, aliás sempre tive a quase certeza de que a minha mãe nunca me iria desiludir mesmo nas horas antecessoras da morte, no dia em que já com noventa e três anos completados, lúcida e em pleno uso de todas as suas faculdades, marcava a ferros de fogo os traços das suas origens, renegava às dezenas de anos de convívio numa terra que sempre lhe foi estranha apesar de se lhe ter dedicado e dado tudo o que tinha para lhe dar.
Tentei contrariar a sua vontade, todavia sem grande convicção devo confessar. Lembrei-me nesse momento de cenas do passado longínquo e vi-a a calcar a pé o pó da estrada marejada em lágrimas acompanhando o carro de bois que trazia todos os nossos bens, quando tivemos de ir viver para outra terra.
– Mãe, ainda tem muito para viver, não pense nessas coisas agora, deixe-me festejar o meu aniversário consigo aqui presente, falaremos disso noutra altura.
Insistiu, esta é a melhor altura para falarmos disso, estamos todos juntos, assim não haverá desculpa para não cumprirem a minha vontade, disse ela a sorrir.
– Mãe, o pai está enterrado aqui, não acha que seria melhor ficar numa campa ao lado dele?
Olhou-me de uma forma estranha, acho que nunca vi aqueles olhos cor de mar tomarem uma tonalidade que se assemelhava à cor das águas de um rio como o douro. Pareceram-me então os meus, agrestes, violentos, suaves, ternos, verdes e penetrantes. Os meus olhos são os olhos da minha mãe, fabricados por ela, feitos como os dela.
– Não! Este meu desejo terá de ser cumprido. A minha terra é Rio Mau, foi lá que eu nasci e vivi. Durante muitos anos fui ausente dela, suportei saudades, chorei muitas lágrimas, só Deus sabe o quanto eu sofri durante estes anos todos. É lá que eu quero repousar para sempre!
Não era a minha mãe que dizia aquelas palavras duras com voz elevada, era antes um ser determinado em ser obedecido, um guerreiro que manifesta com veemência a sua última vontade.
Apertei-lhe as mãos nas minhas e fiquei a pensar que talvez um dia que agora recuso porque não quero lembrar-me de que vou perder todos os que amo, seja eu a fazer as mesmas exigências aos que me sucederão na certeza de que já sinto dentro de mim o mesmo apelo da terra que me viu nascer, o grito que vem do passado e me esmaga o coração, as vozes de antigamente a clamar nas noites de vigília, o desejo de repousar também lá em cima onde mesmo depois de mortos poderemos ver o rio Douro, o rio Arda e o rio Mau a toda a hora.

1 comentário:

Piko disse...

A lucidez, quando é uma realidade, leva uma boa parte dos humanos a perceber que o fim das suas vidas estará por perto... E o realismo chega a ser brutal, porque faz "descarregar" cá para fora um montão de coisas, no meio de outras já esquecidas e que chegaram a ser determinantes, porque influenciaram e alteraram até a vida das pessoas...
Já conhecia esta tua história Manuel, mas gosto de reler para meditar um pouco, porque ajuda-me a perceber um pouco melhor o estado espiritual destas gentes das margens do rio Douro e de quem descendemos, afinal...