Havia um velho barco a boiar nas
águas do rio escondido num recanto ao fundo das arribas de Várzea do Douro que
se estendem florestadas e pedregosas até ao cais de Bitetos. Quase destruído,
parecia um tronco de madeira a flutuar meio submerso com a água a bordejá-lo
conforme a ondulação que o vento provocava.
Tinha sido uma embarcação de pesca
há muitos anos atrás e, decerto nas suas lembranças, haverá histórias de
barqueiros, pescadores e de muita outra gente que nele navegou ao longo do rio Douro.
Suportou ocasiões de naufrágios iminentes, resistiu às fúrias de um rio
turbulento, imenso de caudal da cor do mais fino ouro. Muitas vezes empinado nas
cristas das ondas, parecia uma leve pena levada por correntes traiçoeiras que
constantemente ameaçavam arremessá-lo de encontro às pedregosas margens.
A tudo resistiu manobrado pelas
firmes mãos de um barqueiro que lhe dedicava consertos após terem passado as
tormentas que lhe provocavam lesões um pouco por todo o casco. Só a idade o abateu,
vencido, transformou-se num pedaço de madeira apodrecida.
A vida de um barco é como a vida
de um homem do rio, são quase semelhantes, ambos trazem um destino para cumprir
e por mais tentativas que se faça para alterar esse fado, é impossível fazer
com que não se realize. Um barco não vive sem um barqueiro e um barqueiro não
vive sem um barco, por mais que a efemeridade das coisas humanas ou materiais
muitas vezes os separem, permanece a queimar no coração de cada um deles, as
lembranças dos momentos felizes que viveram misturadas com outras por ventura
menos agradáveis.
Esse velho casco que teimava em
flutuar, pertencia a um homem que se deixou envelhecer dentro dele. Foi o palco
onde decorreram as mais relevantes cenas da sua vida, o navio que rasgava a
água lançado pela força dos seus braços de barqueiro, fez parte da sua história
e foi testemunha impassível de acontecimentos espantosos até vir aproar nessa
reentrância da água, agonizante.
Que belo era o cenário que rodeava
o recanto onde dormia tranquilo o seu último sono. Que maravilhoso o
verde frondoso de milhares de árvores que ladeavam o rio e deixavam tombar os
ramos sobre a água parecendo agasalhar o barco moribundo. Tantas flores
silvestres a enfeitar um local de silêncio quebrado apenas pela sinfonia
delicada dos pássaros. A natureza inteira parecia estar em prece, abraçava-o
como se fora um filho que perdeu, uma árvore metamorfoseada em batel porque
quis seguir um sonho e se deixou transformar num cisne que nunca voou e
estranhamente permaneceu toda uma vida a boiar nas águas do Douro.
Um velho sentado na margem
contemplava o horizonte, com ele um rapazito que tentava absorver todas as
fragrâncias da manhã, eram testemunhas desse aprazível momento. De vez em
quando o velho deixava cair demoradamente os olhos no bote que foi
seu. Não havia lágrimas nem se adivinhava sofrimento no rosto do pescador.
Sereno se mantinha porque sabia que tudo e todos acabam por chegar a um último
porto onde carregados por lembranças, ficam a aguardar o golpe final.
Nada fará voltar o esplendor dos
dias passados sobre a água de um rio tão assombroso de belo como aquele mas,
quem teve o privilégio de viver esse encantamento, sentirá a doçura dessa
espera a amenizar os irreparáveis danos que o tempo inclemente vai
causando.
Ainda se notava na proa da velha
embarcação umas letras desenhadas à mão no casco de madeira. Manchadas pelo
desgaste natural, ficaram imperceptíveis e só quando a ondulação acalmava se
conseguia ver a silhueta disforme de duas delas.
O velho pescador ajeitou-se até à
beira dele e, com as mãos a tremer limpou a sujidade e apareceu o nome de
baptismo do seu querido barco que brilhou como antigamente e pode ver-se
desenhado um nome de uma mulher, quem sabe, talvez aquela que foi senhora do
seu rude coração:
-Inês, era o nome que as letras
formavam.
O rapazito surpreendido
perguntou-lhe:
-Quem era a Inês avô?
-Era uma mulher muito linda que
tive filho e também era esta minha barca!
-Mas a avó chamava-se Carolina,
interpelou confusa a criança.
-Antes de ela ser minha
esposa e depois tua avó, já este barco navegava vaidoso com este nome escrito
por mim na popa!
Nesse momento notou-se que o
velho estava perturbado, os seus olhos reflectiam as águas do rio e pareceu que
espelhado nas suas pupilas, um rosto de mulher sorria feliz.
A vida de um barco assemelha-se
muito à vida de um homem do rio porque ambos trazem um nome de uma misteriosa
mulher desenhado à mão a reluzir na proa.
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