terça-feira, 6 de outubro de 2009

Feliz Aniversário


Depois dos oitenta já muito pouco ou mesmo nada pode fascinar um homem. As circunstâncias da vida vão moldando o carácter, atenuando comportamentos, suavizando os anos e os dias e até modificando as feições do rosto ao ponto de um ser humano ficar praticamente irreconhecível. Perdem-se no percurso sinuoso dos tempos os tumultuosos apelos da carne, as vastíssimas fantasias da mente, as forças dos músculos, a rigidez dos ossos, a vontade de viver e até afrouxam as correntes que nos prendem ao mundo. Depois de velhos, é rara a lucidez e, nos labirintos do cérebro tornam-se frequentes os curto-circuitos que deformam a realidade, alteram a forma de pensa, provocando angústias e medos.
Não se sabe para onde vamos como nunca chegamos a saber de onde viemos. Esse irritante mistério deixa-nos petrificados e frágeis perante o rapidíssimo evoluir da civilização. No curto espaço de uma vida somos sujeitos a uma aprendizagem contínua, massificada e à dolorosa adaptação a métodos e filosofias de vida que não conhecíamos e nos dizem constantemente terem sido adoptada para nossa exclusiva felicidade num engano tão óbvio que perturba ainda mais pelo constatar de que quem nos prega tão imbecil doutrina, nem se quer sonha que esse estado deslumbrante de um ser, não se adquire tomando punções mágicas, nem se vende nas farmácias, nos hipermercados nem mesmo pela Internet. A felicidade é o equilíbrio do corpo e do espírito.
Se alguns se deixam prender nesse frenesi incontrolável, outros, a maioria de nós, prefere seguir o padrão da tranquilidade tendo sempre como referencia, aquilo que foi na meninice e juventude mantendo-se consistentes e inabaláveis aos apelos de uma sociedade mais mecanizada que humana onde só os espertos, os larápios e os beneficiários de estatuto de diferentes, conseguem sobreviver embora infelizes. Depois dos oitenta o corpo inicia a inclinação à terra, verga-se ao apelo do chão como centenária árvore que perdeu as raízes e só aguarda um golpe de vento para tombar vencida.
Todos morremos sem dignidade por que na morte ela não existe. Os pobres, os ricos, os espertos os tolos e até mesmo os contadores de histórias, só em vida podem ter esse titulo de nobreza. A morte é pois uma coisa má, indigna, a pior de todas as coisas.
Acabou tudo quando o Abade Aniceto derramou em cruz a última água benzida em cima do caixão ao mesmo tempo que apressado, encerrava a encomenda da alma deste pobre homem a Deus. As flores, aquelas que nunca teve em vida oferendadas, cobriam agora o esquife, amontoando-se mortas, como num dia de Santos, transpondo as barreiras do exagero, numa inutilidade gritante a lembrar aos vivos o que é a fantochada dos seus corriqueiros hábitos fingidores dos mais puros e idolatrados sentimentos.
Mal sabiam estes desgraçados acompanhantes do féretro onde repousavam os restos mortais do contador de histórias, que neste preciso momento se iniciava mais uma alucinante volta do carrossel das suas atarefadas vidas e que estas flores, ou outras iguais iriam, mais dia menos dia, mortas também, fazer parte do cenário cómico das suas próprias mortes. Não há forma conhecida de escapar ao incidente inevitável, então, ignorando a comum fatalidade, num rasgo de perícia teatral, assumem a postura de gatos-pingados transformando o desenlace num mero e chato acontecimento a que, por obrigação, têm de assistir, mostrando-se todavia infelizes com a perda. O morto já com oitenta e nove anos feitos hoje seis de Outubro deste ano sem graça, já pouco ou nada ambicionava deste presépio que teima em se fazer sinistro e frio onde os rostos mais representativos deixaram há muito, de retratar as santas do seu homólogo de Belém. Tinha perdido tudo aquilo que transformou em esperança na roleta da existência, no jogo sujo de uma humanidade demasiado materialista, despersonalizada e má, que nunca soube e tão cedo não vai quer saber com quantos paus se faz uma canoa, entregando-se de alma e consciência na mãos dos tiranos que circunstancialmente comandam a embarcação deste mundo e, julga-se que decepcionado deixou-se morrer. Foi-se na que julgamos a sua hora, precisamente no dia do seu aniversário, apagando-se lentamente como pavio de vela a quem falhou a cera, na serenidade impressionante de nenúfar ao sabor das tímidas correntes de um qualquer rio algures em Trás-os-Montes.
Finou-se ali no alto da colina mirante perpétuo da sua vida, lançando um último olhar sobre o rio dos seus sonhos, cúmplice das suas alquimias como quem se despede dos segredos, sorrisos e carícias de adorável amante ou como se fosse andorinha que rasga um horizonte infinito a caminho de outras diferentes e novas primaveras.
Tudo o que de luzidio tornou a sua vida jaz em campa esquecida, derrubado mais pela transformação do mundo de que pela inevitabilidade da morte, como espólio de antiga batalha em que só este guerreiro sobreviveu para vir cair hoje aqui desamparado como se também fosse ele parte integrante das ínclitas e infelizes personagens das tantas histórias que nos contou.
Acabou! A morte redentora fez o seu trabalho e leva nas lívidas mãos o que resta deste homem. Baila neste ar cinzento de Outono esse fantasma de gente que se recusa a partir nessa estonteante viagem sem antes, num descaramento macabro, narrar a sua própria morte. Erro colossal! O que o faz ficar mais uns segundos a pairar sobre a terra, mais que essa recusa de partir que sabe impossível, é ter percebido a tempo, embora no último sopro da existência, que afinal a vida é toda ela uma ilusão e que muito mais que a soma de pequenos gostos e grandes desgostos é uma mentira, tudo uma mentira.
Olha-os um a um, aos seres vivos que taciturnos imitam na perfeição a mágoa da sua perda, como quem finalmente percebeu a comédia colectiva do mundo, a inutilidade em que se transformam as relações mundanas, as grandes amizades, o amor e outros mais enérgicos afectos. Deixou de compor, deixou de sonhar mas aquele, já perpetuo sorriso na cara gelada, indicia o gozo de quem finalmente encontrou o caminho da verdade absoluta e pensa voltar quando Deus lho permitir. Deixou-nos uns livros e um rio que transformou em flores.
Que descanse em paz entre os esplendores da luz que ele não deseja perpétua, ámen…

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