Bailava como uma deusa agitando o corpo de serpente em movimentos ritmados por uma música que fazia lembrar o vento a agitar as areias das dunas de um deserto longínquo, algures na Babilónia. Cobria ligeiramente a elegante e esbelta silhueta com um Sarki azul céu de delicada seda enfeitado com contas e lantejoulas em ondas pretas, ouro e vidrilhos de desenhos intrincados com pérolas. Acima da fina cintura, cobrindo o bikini, realçando o busto, um cinto shakira de tons amarelo-torrado com brilhantes, enfeitavam a harmónica moira que na cabeça tinha, sobre a negrura de suaves cabelos, um colar de brilhantes pedras a descer em cascata pela testa pequena, produzindo um efeito de inigualável formosura àquela mulher oriental.
A saia que se desprendia da cintura livre, deixava visível um ventre perfeito e em voos sinuosos e ondulantes, ia evoluindo no ar ao sabor dos graciosos e sensuais movimentos das ancas e quadris, era transparente, pouco mais que um ténue véu da cor de pálidas rosas, com desenhos nos bordados de linha dourada a completar o traje da dançarina do raks sharki, que punha nos braços e nos tornozelos, enfeites de arcos de metal colorido de circulo descontinuado, encrostados de pedras cintilantes e lindas.
As difusas luzes coloridas da média sala onde acontecia a dança, produzia efeitos fantásticos naquela divindade e a suavidade da música de compasso sensual, lânguido e erótico, geravam um clima de magia e sublime misticismo num encantamento tão intenso que Leopoldo se imaginava como a viver em sonhos, as cenas dos contos mirabolantes das mil-e-uma-noites.
Essa que foi a noite de todas as noites, aquela em que os seus olhos de juventude encararam pela primeira vez com a visão celeste de Zahra, ainda tem dele a viva e intacta recordação desse momento fabuloso e ímpar apesar do tanto tempo que já passou desde esse dia, apesar da vida o ter transformado neste solitário cangalho velho sem préstimo mas sepulcro de afectos e recordações inenarráveis. Não por que escandalizem, magoem ou causem repulsa, mas tão-somente por que são só suas e constituem o tesouro sacro e incalculável da sua juventude. Coisas lindas que o fazem sorrir misturadas com algumas amarguras que os homens como ele guardam no coração até à eternidade.
O barco, o velho barco a remos em que ele e ela navegavam por este rio de sonho nos fins de tarde em que o horizonte crepuscular enrubescia e as águas tingidas de reflexos de oiro e prata, eram suaves e os dois trocavam afectos, beijos e juras de amor, baptizou-o ele já perdido no enredo dessa paixão cigana, com o nome daquela moira belíssima:
-Zahra!
As letras que carinhosamente desenhou com tintas cor de fogo nos lados da proa da insigne embarcação, apregoavam e espalhavam por todo um rio como folha morta ao sabor do vento, o nome da senhora herdeira do seu coração. Amor assim nunca se viu aqui. Raças tão distintas comungavam a mesma hóstia que a paixão fabrica sem atender a credos, a usos e costumes que quase sempre separam o que a natureza quer unir.
O Douro, aquele que o viu nascer e crescer, que lhe afeiçoou a meninice e juventude, testemunha silenciosa das suas angústias e contentamentos, o maior apego de uma vida, havia de num gesto de gigante enraivecido, desfazer o idílico momento que foi de suprema elevação e colocar uma cruz de cemitério naquelas duas vidas onde um afeição sem limites já tinha feito morada.
Nessa noite de cheia descomunal naufragou o barco valboeiro no turbilhão das águas revoltas e levou com ele para as profundezas do sítio a deslumbrante senhora que nunca mais voltou à superfície.
Hoje, depois de já terem passado cinquenta anos desde esse trágico acontecimento, o velho Leopoldo olha o rio Douro com uns olhos sem brilho, cansados e cegos, incapazes de distinguir claramente o horizonte mas imaginando ainda a dança de Zahra como se ela evoluísse delicada por sobre a superfície das ondas e o olhasse com aqueles olhos rasgados de um verde que se confundia com a cor do rio e lhe viesse dar agora um sorriso de amante cumplicidade, um beijo um carinho como tantas vezes lhe tinha dado.
Aqui entre Pombal de Medas e Porto Carvoeiro sitio onde o rio Douro é mais deserto e agreste, onde as sombras da noite mais se acentuam e um silêncio de morte paira sobre as coisa, um velho barqueiro louco indaga o horizonte líquido aflito julgando que a morte um dia lhe devolverá a sua amada. Espera, espera ainda como esperou sempre pelo seu amor que as águas têm no seu seio e que nunca mais há-de chegar e o rio douro arrependido chora de tristeza quando todas as noites ele grita desesperado:
- Zahraaaa! Zahraaaa!
O eco do grito perde-se abafado no vale onde o rio dorme e, aqueles olhos ceguinhos do barqueiro derramam lágrimas pela mulher que um dia tanto amou.
Amigo do Douro,
ResponderEliminarEu sou fanática...veja porquê em, Sempre Jovens, temos muito que partlhar..eu volto para comentar em detalhe...Prometo.
Bem-haja,
Fernanda Ferreira