sexta-feira, 4 de maio de 2018

Claro di Luna

Aconteceu na vila de Baião há muitos anos num dia frio de Inverno. Numa das centenas de vezes em que percorria as estradas das margens do rio Douro. Numa delas fui absorvido pelo desenrolar de acontecimentos surpreendentes.  Impedido de circular pela neve, recolhi a uma bar residencial denominado "A Lareira" e era nesse tempo a única opção para pernoitar em Campelo. 
Jantei na pequena sala que tinha um piano protegido com um tecido de veludo de cor vermelha que silencioso parecia repousar de árduos e quiçá belos, concertos acontecidos ali no passado.
O fogão de sala aceso crepitava no canto esquerdo do bar e assegurava o calor requerido por aquela noite confortável dentro do estabelecimento mas gelada lá fora nas ruas onde a neve se ia amontoando sem critério ou forma
Ela surgiu com vestes brancas de princesa, parecia um anjo e possuía a cobrir-lhe o corpo franzino um corpete gracioso enfeitado com uma gola de babados e um lacinho no centro. As grandes mangas enchidas, tinham fitas de seda que formavam dobras e envolviam com fino algodão os seus braços. As camadas de tule de crinolina por baixo da saia, criavam uma roda , um véu que se lhe desprendia livre da cintura, arrastava-se pelo chão de tijoleira vermelha encerada, produzindo um enfeite de noivado ou qualquer coisa extremamente fantástica saída de um mirabolante conto oriental.
Sentou-se ao piano, apressadamente alguém retirou a túnica de veludo vermelho que o cobria e um silêncio pesado tomou conta do espaço da sala de jantar. Os seus dedos graciosos e finos assentaram com a leveza de plumas na brancura do doce teclado de marfim e uma música de movimento lento, majestoso e sombrio, transformou a atmosfera num romântico jardim solitário que repousa na escuridão da noite. Quando a média luz do recinto lhe incidia no rosto, notavam-se-lhe os traços serenos e a suavidade das linhas da cara demasiado perfeita para parecer simplesmente humana. Depois uma triste e infinitamente amorosa melodia, uma espécie de mistério envolveu todo o movimento das abençoadas mãos da mulher pianista e,  no evoluir da sonata Claro di Luna, o  significado da fantástica e mística beleza que a atravessava, foi revelado ao poucos privilegiados seres humanos ali presentes. Foi como se uma lua gigante nascesse nesse instante  e gradualmente banhasse esse antes obscuro jardim e o transformasse num cenário de sonho e esplendor maravilhoso.
Seguiu-se uma pausa sem respiros, depois  começou o segundo movimento e o pequeno edem encheu-se com espíritos alados que bailavam delicadamente e absorviam o prazer dos harmoniosos sons movendo-se com um abandono de ritmo que parecia transportá-los para muito longe dali numa nuvem ou  num turbilhão imenso de prazer impossível de descrever. Um baque súbito e outro silêncio de suspense antecedeu o terceiro movimento. Como uma lufada de vento que fustiga as árvores em redor e obrigssea os espíritos a refugiarem-se à pressa num abrigo, as notas caiam desconexas e em redemoinhos como costuma fazer a ventania quando sopra desvairada sobre as árvores e  plantas, enquanto as nuvens corriam apressadamente pela fugaz brancura nocturna das abertas do céu. Então por entre os espaços claros, via-se a lua cavalgando majestosamente no universo e a inundar o tortuoso jardim com doces e serenas músicas de luz.
Foi há tanto tempo mas ainda conservo comigo o perfume dessa noite mágica e num prodigioso assumo de memória, reconstruo o maravilhoso momento, as delicadas mãos e o angelical rosto da mais insigne e maravilhosa pianista que alguma vez o Douro conheceu.

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