sexta-feira, 4 de maio de 2018

Contos Velhinhos de Amor

Tinha apenas quatro anos quando a minha mãe me levou pela primeira vez à cidade do Porto. Foi difícil a viagem por estradas irregulares, alguns troços ainda em estado de lenta conclusão, de terra batida, com pó e buracos que causavam saltos e solavancos à velha camioneta da carreira que, com enorme dificuldade subiu a serra da Flores, desceu a pique até à povoação de Covelo, atravessou a ponte de madeira sobre o rio Ferreira e atirou-se em primeira velocidade à costeira íngreme que só termina na vila de Gens, até chegar ao centro de Valbom em Gondomar. A partir dali já as ruas eram calcetadas até desembocarem às portas da cidade do Porto na rua do Freixo onde a subida da também muito acentuada da rua com o mesmo nome, exigia um derradeiro esforço ao cansando motor do autocarro da Gondomarense que penosamente se arrastava pelo empedrado acima. Já lá no alto, viramos repentinamente à direita e avistei ao fundo a estação de Campanhã e ouvi pela primeira vez na vida estridentes apitos de comboios e o matraquear das rodas das composições que dali partiam e chegavam de e para todos os cantos do país e até para Espanha via Valença do Minho. A carreira passou na frente da estação não sem antes descarregar passageiros na paragem que fica mesmo em frente desse notável monumento ferroviário seguindo depois pela rua Pinto Bessa até se desviar para a rua Padre António Vieira e virar subitamente à direita e dar a ideia de que se iria esbarrar de encontro à frontaria decorada de belos azulejos da Capela da Senhora da Saúde que faz esquina com a travessa da Formiga e com a rua do Heroísmo. Pura ilusão minha, de repente o motorista deu meia dúzia de voltas ao enorme volante da máquina e ficamos de frente para a rua do heroísmo que se prolonga até à antiga e extinta PIDE, hoje museu militar, e se bifurcava com a avenida Rodrigues de Freitas estendida pelo chão até ao Jardim de S. Lázaro onde me espantei com o grande tráfego de carros eléctricos que giravam constantemente em seu redor, vindos de todas as ruas adjacentes. -Tantas casas a pescar exclamei, utilizando o termo usado pelo meu irmão Hélder na primeira vez que foi ao Porto, quando paramos no cruzamento em frente à biblioteca Municipal por ordem de um sinaleiro da polícia que abriu o trânsito para a rua de S. Victor à esquerda e deu passagem aos que circulavam de frente, vindos da Praça da Batalha e da rua Alexandre Herculano. As casas a pescar eram as ligações de braços fixados nos tectos das carruagens aos fios condutores de electricidade que proporcionavam combustível limpo aos carros eléctricos que o Porto tinha em quantidade suficiente para meter num só bolso todos os moderníssimos Metros que agora atropelam economicamente três ou quatro cidades da área metropolitana oferecendo todavia uma maior comodidade e rapidez nos trajectos. A carreira era uma velha OM importada de Inglaterra e de volante ao contrário tal qual como são muitas das direcções que o país tomou desde então. Parou na rua Duque de Loulé que era digamos, uma das muitas centrais de camionagem de passageiros que a cidade sustentava na época. Apeados, calcamos a pé a distância que nos separava do destino traçado pela minha mãe: o Cais da Ribeira.
Durante esse percurso pude admirar os prédios, os carros, as pessoas e, tal era o meu espanto que algumas vezes a minha mãe teve de puxar com alguma força o meu braço que vinha agarrado à mão dela para me arrastar para o pé dela e chamar atenção a um ou outro pormenor que achava digno do meu olhar ávido de conhecimento.
A mão da minha mãe na minha mão, dava-me conforto e segurança, era uma sensação de maravilhosa união, um calor que percorria todo o meu corpito de criança e me enchia de felicidade. O meu coraçãozito, palpitava acelerado e parecia querer sair-me do peito e juntar-se feliz ao coração dela como se nós os dois fossemos um só. Parece-me sentir neste momento a mão da minha mãe na minha. Suave sensação, indizível bem-estar, doce recordação. Que estranho e simultaneamente encantador poder tem a mente humana que é capaz de guardar intactas tão sagradas memórias para nos surpreender quando o deseja e ao mesmo tempo nos deixar fragilizados porque, propositadamente, não quer impedir as lágrimas de saudade que nos assaltam e alagam os nossos olhos agora adultos ou por ser necessário lembrar-nos que já fomos felizes algures num momento radioso das nossas vidas. O que somos agora pouco importa. A maior ou menor notoriedade de cada um, diluísse na distância percorrida sem gestos de ternura e de carinho, sem abraços e sem beijos. A matriz de cada um, foi decalcada na formação infantil em que o leite materno operava os milagres precisos para nos defender de todos os perigos ao longo da existência. Mãe, continuo a ser a criança desejosa, aquele dos muitos que mais arrelias te causou mas para quem tinhas sempre um sorriso de perdão e absolvição dos meus inocentes pecados. Hoje, à mercê do mundo, sem protecção materna e deambulando pelo vida como um sem abrigo, dedico-te um sorriso de cumplicidade, o mesmo ou outro igual aos de antigamente que te faziam feliz. O Porto de que eu só tinha ouvido falar pelos barqueiros dos Rabões da Esquadra Negra quando faziam pausas na taberna da minha mãe na rua da Torre em Rio Mau ou pelos arrais dos barcos Rabelos que atracavam no cais do Remoinho para se virem abastecer de viveres na mercearia dela, estava ali à minha disposição. Ainda hoje me bailam nos armários da memória alguns nomes de homens valorosos domadores do rio e senhores de uma coragem sobrenatural. O Zeca Léria, o António Florim, o Joaquim Florim o Zé Florim todos irmãos e de Vimioso. O bernardo Bento de Bitetos, o João Rouquinho de Bitetos, o Vagaroso e o Castanho do Castelo, o Ervilheiro e o Nico de Aregos e o Manel do Rio da Barca da Seara. Todos capitães das fragas, comandantes de rabelos, mestres de tráfego do rio douro. Nomes de guerreiros valentes mas também de cegos e loucos como o rio em que toda a vida navegaram. A minha pequena quantidade de vida, quatro anos, começava a ser matizada com as artes fluviais sem eu ter contribuído em nada para que isso acontecesse. Agora estava ali a pisar a terra da maior das referências do rio Douro, aquela que essa imensa corrente líquida escolheu para vir abraçar o oceano, a ver com os meus pequeninos olhos deslumbrados a metrópole vergada ao peso descomunal da história e de todas as histórias que a transformaram numa grande metrópole, num epicentro do mundo, património mundial, tudo atributos de um povo habitante que foi tenaz, dono de muita heroicidade que proporcionou que tantos feitos acontecessem. Os grandes só se vergam aos grandes e, nessa combinação multifacetada, a cidade do Porto honra-se de tantas gloriosas páginas gravadas a ouro no grande livro dos maiores. - Vamos para a Ribeira, disse a minha mãe enquanto caminhava por alturas da Praça da Batalha. Eu espantado, tentava absorver todo aquele movimento, a multidão que enchia os passeios e inundava a rua de Sta Catarina, a arquitectura dos prédios de dimensões alheias às humildes e pequenas casas da minha terra, desnudadas de azulejos ou cales, escuras como o é o material de que são construídas e é retirado à força de braços das pedreiras da serra da Boneca. Xisto, lousa que apesar de tanta humildade veio a ser considerado produto nobre muitos anos depois no enfeitar de casa modernas e vivendas de luxo. De repente ouviram-se sinos, carrilhões que musicalmente batiam horas e espantavam centenas de pombas coabitantes da cidade invicta. Que raro privilégio foi esse pensei, o de ir de vista a um santuário onde vivem e viveram muitos dos ilustres homens e mulheres do nosso pais e saber que quase nenhum dos meus colegas de brincadeiras desse tempo, o tinham feito até ai.
Corria ao lado da minha mãe e durante essa caminhada pelas ruas do Porto, de vez em quando, lançava-lhe um olhar de terna cumplicidade e esperava que ela baixasse os dela e me correspondesse com um olhar como só ela tinha e, nesse enleio que não esqueço, ia pensado que quando voltasse à minha terra, haveria de contar tudo o que de maravilhoso estava a viver nesses momentos de sonho, aos meus amigos que ficaram a ver-me partir na carreira das sete da manhã. Descemos a rua de Sto. António que era um mar de gente e, ao fundo a estação de S. Bento, apareceu-me pela esquerda rodeada de edifícios descomunais e ruas largas onde centenas de carros e camiões circulavam por entre os apitos estridentes do sinaleiro, em pé num estrado redondo de madeira, ao centro da encruzilhada à vista da Praça da Liberdade. Descemos a rua Mouzinho da Silveira e, após dez minutos de marcha acelerada, chegamos à rua de S. João e dali já avistei mastros de vapores fundeados ao largo do cais Ribeira e barcos Rabelos encostados ao cais das Freiras do outro lado do rio. À minha frente estava o Douro rio que me embalou desde a nascença a ser anfiteatro de colossais transacções comerciais tanto nacionais como internacionais trazidas em navios com cargas diversas vindos de todos os portos do mundo. - O meu rio também veio ver a cidade do Porto, pensei. Decerto já não vai voltar a passar na minha terra, vai querer ficar por aqui nesta terra moderna a ver tudo o que é bonito!
A falta de confiança da minha parte para com a integridade de um amigo, comprometia o futuro da nossa relação. Eu era uma temerosa criança apenas mas o rio sabia bem que nada nos poderia separar. A azáfama era por demais evidente, as pessoas movimentava-se pelos passeios como uma amalgama disforme de gente que parecia não ter destino marcado. Uns para cima, outros para baixo, outros para os lados atravessando as ruas levando nas mãos diversos objectos e compras de aquisição recente. A cidade fervia cada vez mais à medida que nos aproximamos do cais onde os meus tios, irmãos da minha mãe, tinham um armazém de mercearia que abastecia as terras a norte e vendia ali mesmo, a quem requisitasse algum produto. Eu ainda não sabia ler nem escrever mas a minha mãe apontou para uma tabuleta fixada sobre o número seis da rua de S.joão e disse-me: -Vês é ali o armazém e a casa dos teus tios! " Manuel Araújo e Irmãos" - Armazenistas de Mercearia, Inport - Export.
Que importavam quase tudo o que vendiam e que nunca exportaram nada vim a sabe-lo mais tarde no entanto compreendia-se a agressividade comercial dos publicitários designers gráficos da época que só pretenderam dar importância e vulto aos negócios da família. Ocupava três números a frente comercial, portanto três lojas onde se armazenavam todos os produtos comestíveis, batatas, arroz, açúcar, bacalhau, massas, feijão, sal e não comestíveis tais como, carboneto para os gasómetros misturado com sacos de rolhas para garrafas e garrafões, ráfia para amarrar portes de enxertos aos molhos, etc, etc. Num dos andares por cima vivia o meu tio José que foi o nosso anfitrião durante os dois ou três dias que por lá permanecemos. A minha tia Aida sua esposa, era uma senhora muito bonita, uma verdadeira dama, bem vestida e arranjada com uma gargantilha de pérolas ao pescoço a realçar o peito coberto por uma blusa de seda preta, ouros suspensos discretamente nas orelhas e nos dedos das mãos. Uma flor de filigrana espetada na lapela de um casaco que lhe adelgaçava a cintura e fazia conjunto com uma sai de lã de meio passo, de cor cinza, os dois com atenuadas riscas brancas longitudinais completavam o fino traje da senhora minha tia. Lembro-me que tinha os olhos maquilhados de tons de azul marinho, a pele do rosto encantador onde as faces apareciam levemente retocadas por algum dos pós cor de rosa na altura importados de Paris. Tinha as unhas perfeitamente talhadas e os lábios pintados de vermelho coisas que eu nunca tinha visto em mulher nenhuma da minha aldeia e me fascinaram de forma a que partir dali fiquei a magicar como seria lindo o mundo se todas as mulheres pudessem ser assim tão arranjadas e bonitas como a minha tia Aida. Na minha terra Rio Mau, não podia haver semelhantes arranjos, a vida era dura, o trabalho muito e o dinheiro muito pouco. As roupas eram feitas de chitas, panos crus, gangas e os cotins. Fazendas nobres da Covilhã, só nos povos das cidades que já auferiam salários melhores do que um mineiro, lavrador, pescador ou barqueiro. Todavia a beleza sempre acompanhou as senhoras da minha terra. Mãos hábeis de humildes costureiras, operavam milagres e faziam reluzir como estrelas as raparigas da beira do rio. Era uma beleza diferente, natural, pura e genuína. A Ribeira, o rio, as barracas das vendedeiras espalhadas pelo cais, os pregões matinais, os almocreves que vinham e iam de sacos aos ombros para carregar camionetas que as levariam para todas as terras vizinhas. Do outro lado do rio pairavam as silhuetas disformes dos barcos Rabelos em fila à espera da vez de descarregar as centenas de pipas de vinho fino que traziam no ventre desde o Alto Douro.
De repente o sobressalto:
-Que andas aqui a fazer Manel?
Olhei para trás surpreendido e aflito mas percebi nesse momento que quem me interrogava era o meu amigo rio Douro. -Vim com a minha mãe ver o Porto, respondi cheio de vaidade e todo contente por saber que ele me tinha reconhecido no meio daquela multidão e ao mesmo tempo orgulhoso por estar a partilhar com ele semelhante aventura. -Trouxeste o pião, perguntou-me ansioso? -Tenho-o aqui no bolso dos calções, queres brincar comigo, perguntei a sorrir? Quero, desce as escadinhas do cais com muito cuidado e vem até cá a baixo: Vamos jogar o pião! E brincamos nesse dia desinteressados de tudo o que nos rodeava até ao anoitecer. Ainda hoje essa brincadeira inocente continua viva dentro de nós os dois. Ele fala comigo a brincar e eu brinco com ele a falar e a escrever. Somos irmãos. Ninguém nos pode separar.
Já lá vão os anos. Já lá vão as pessoas mais queridas, alguns a quem amei, quase todos desapareceram desse cenário maravilhoso mas a história, os sítios, as casas e o rio permanecem lá a contar como tudo se passou durante centenas de anos.

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