quarta-feira, 27 de setembro de 2006

O BICHO BRAVO

João Malhado nasceu em Estivada lugar composto de quatro casas cobertas de lousas encravado entre as serras das Banjas e Boneca, ao fundo da Fraga Amarela e ao lado do Vale das lobos a dois passos do Poço Negro.
Filho de moleiros, nunca daqui saiu sequer para aprender as primeiras letras do abecedário. Não sabia ler, escrever nem contar, de pouco lhe serviria ter ido à escola, é rude por natureza e difícil seria encaixar números e letras naquela cabeça de abóbora. Basta dizer que nunca decorou o seu próprio nome completo, quanto mais o do pai e da mãe de quem só se lembrava serem Micas e Zé.
Três moinhos, duas leiras e três roseiras que nunca deram flor, constituiam a totalidade do mundo do João Malhado. Entre eles dividia o seu tempo embalado pelo som monótono da roda de pedra do moinho a esmagar o milho e o centeio, ia cultivando as hortas e procedendo aos tráfegos do produto das moagens.
Éra calma a vida em Estivada, no verão em que o calor apertava o silêncio deste sítio só era cortado pelo canto das cigarras ou pelo leve murmúrio das águas do ribeiro a beijar as pedras e o permanente e sussurrante barulho da mó.
No Inverno as coisas mudavam de figura, o ribeiro enchia muito, tomava as proporções das cheias e transbordava do leito levando tudo à sua passagem. Até a ponte de madeira única ligação de Estivada a Rio Mau, ra frequentemente arrastada pela corrente até ao poço da Elisa deixando Estivada sozinha e indefesa perante as calamidades no sopé da montanha.
Assim o isolamento tornava-se quase total, mas pouca diferença fazia já que o João só de ano a ano pela Páscoa da Ressurreição, atravessava a ponte para ir à Portela esperar o Compasso que num intermitente tilintar de campainhas que as crianças agitavam, anunciavam longe a sua chegada.
Foi, já lá vão muitos anos, a invernia era tal que já há um mês o ribeiro havia levado a improvisada ponte. O vento era tão forte que a maioria das lousas que cobriam a casa do João, foram arrastadas para as águas revoltas do rio. A noite estava escura como breu e não fora a candeia de azeite auxiliar a visão, só pelas oito da manhã o João conseguiria enxergar um palmo que fosse à sua frente. Aquilo mexia com ele e enervava-o, os olhos arregalados tingidos de vermelho de sangue, pareciam deitar lume. A boca aberta meio desdentada, deixava passar uma espuma branca de cão raivoso e mostrava uns dentes incertos e podres.
De candeia na mão saiu a porta da cozinha e, das profundezas dos pulmões soltou um grito medonho que calou a tempestade. Ecoou no Penedo Gordo, na Fraga Amarela e, como estâmpido de trovão, rebentou na foz do rio.
Na aldeia alguns postigos se abriram medroso e deixaram ver as difusas luzes dos lampiões a petróleo que mal iluminavam as casas, tramelando aqui e ali na precoce alvorada.
O Joaquim Lansudo também ouvira o grito. À pressa vestiu as calças de cutim por cima das ceroulas de flanela vermelha. Foi à cozinha e empunhou o forcado que repousava por cima da padieira do forno. Atrapalhado, derrubou a tigela do fermento que se encontrava em cima da gamela e se desfez em mil bocados no chão de terra batida. A mulher, praguejava na sala:
- Ò Home, ò Home, lá se foi o governo da casa, não tens cuidado nenhum!
O Lansudo irritou-se e alterado vociferou com a mulher:
- Esta filha da mãe não sabe guardar as coisas no sítio; é na gamela mulher, é na gamela que se arrumam estas coisas!
Já perdido do juízo, saiu à rua com a peneira enfiada num pé:
- Rais parta isto, esta porca passa o dia enfiada no ribeiro a dar à língua e a gente aqui nesta desgraça! Foi a tigela, foi o crescente, foi a peneira e, a maldita da pá do forno atravessada na porta, dá para um homem se matar! Nem para trás, nem para a frente, ninguém bota a mão a nada!
- Ò cachopa, vai ao Castelhão acordar o ti Pelado, ele que venha e traga o alvião e o forcado senão morremos aqui todos!
A Elvira saiu a enfiar a fralda da blusa de chita na saia de roda, descalça corria pela rua acima aflita e descontrolada.
-Ò compadre, você ouviu!? Gritava o Lansudo no meio do largo. É bicho bravo, é bicho bravo gritava solidário o outro no meio da noite.
Na Estivada amanheceu lentamente, primeiro os contornos das serras iam-se desenhando no céu, depois a claridade tomou conta de tudo.
Ali, à frente de todos, desagasalhados da noite, estavam os motivos do ódio do João; a enxurrada entupira o caleiro do moinho e as pás da roda foram arrancadas uma a uma. As leiras tinham desaparecido completamente e, em seu lugar estava um monte de pedras arrastadas pela corrente. Anos de trabalho árduo e a perda total de duas arrobas de batatas que para ele significavam a garantia de fartura por um ano inteiro. Batatas, bogas e escalos fritos acompanhados de pão de milho e centeio que ia retirando das maquias, constituíam a dieta alimentar do João. Sentou-se na velha e usada mó de granito e de ombros caídos, era a imagem perfeita da suprema desgraça. A raiva soltou-se-lhe novamente nos olhos vermelhos e, mais uma vez o grito terrível estalou nas montanhas.
De forcados e alviões em riste, os homens da povoação sentiram mais uma vez o medo na tremura das pernas e nas gotas de suor gelado que lhes corria das testas molhadas com chuva. Esperavam o pior, a todo o momento o animal iria aparecer pelo rio abaixo e provocar desgraças e devastações, mas o eco do grito extingui-se nas quebradas das serras e um silêncio pesado entrou pela manhã dentro.
A doce claridade desfez as angústias e os medos, não era um bicho bravo todos estavam enganados, eram apenas os gritos de um homem desesperado a quem tiraram o pão.
Passaram mais de quarenta anos, o Malhado jaz em campa rasa à trinta e, dos moinhos da Estivada só restam escombros cobertos com densos silvados mas as três roseiras ainda lá existem e dão delicadas rosas silvestres.


















iN, "Contos do Douro" de Manuel Araújo da Cunha










1 comentário:

LurdesMartins disse...

Manuel, após uma pesquisa por contos, vim ter aqui.
Tenho que lhe confessar o meu crime: acabei de imprimir este conto para o poder ler logo à tarde a uns idosos que vou visitar. Espero sinceramente que não se importe!
Só ainda o li na diagonal mas gostei. É da sua autoria?