sexta-feira, 4 de maio de 2018

Sonata Incompleta


Era uma reentrância na margem do rio, um porto de abrigo natural, um sitio lindo desenhado pelos deuses de antigamente que para aqui vinham repousar após épicos e memoráveis feitos. Tudo por ali nos fazia lembrar os puros tempos de criança, as brincadeiras inocentes, os desejos comuns que eram sonhos tão grandes como o mundo e, até os barcos abraçados uns aos outros, enquanto aguardavam 0 lançar das redes amontoadas na proa, pareciam enamorados do azul do céu e das estrela que cintilavam no firmamento celeste nas noites fantásticas dos dias felizes. Havia pássaros, bandos deles nas árvores e rolas que cantavam incessantemente doces e suaves melodias.
Nesse tempo eras uma aparição divina, um raio de intensa e branca luz que iluminava a minha vida e as margens do rio e se reflectia em estranhos bailados nas suas águas, clarão sobrenatural a envolver de luz o sitio da nossa doce infância , um anjo que descia do céu ao meu encontro e me transportava até aos longínquos limites da imaginação.
As nossas mãos uniam-se, os olhares fundiam-se uns nos outros e eu, cego pela tua intensa claridade, só via aquilo que tu vias e alheio a tudo em meu redor, apenas sentia o apressado palpitar do teu coração enlaçado no meu que transbordava feliz as margens do meu peito.


Neste amanhecer de luz e de sombras em que, pressentindo tempestades, os ventos sopram alucinados sobre o rio e ressuscitam momentos de ternura e muitos dos sonhos inocentes que juntos sonhamos, ofereço, neste instante que considero único, uma lembrança, um pensamento cheio de amor só para ti.


Epifania dos Ventos

Era uma reentrância na margem do rio, um porto de abrigo natural, um sitio lindo desenhado pelos deuses de antigamente que para aqui vinham repousar após épicos e memoráveis feitos. Tudo por ali nos fazia lembrar os puros tempos de criança, as brincadeiras inocentes, os desejos comuns que eram sonhos tão grandes como o mundo e, até os barcos abraçados uns aos outros, enquanto aguardavam 0 lançar das redes amontoadas na proa, pareciam enamorados do azul do céu e das estrela que cintilavam no firmamento celeste nas noites fantásticas dos dias felizes. Havia pássaros, bandos deles nas árvores e rolas que cantavam incessantemente doces e suaves melodias. Nesse tempo eras uma aparição divina, um raio de intensa e branca luz que iluminava a minha vida e as margens do rio e se reflectia em estranhos bailados nas suas águas, clarão sobrenatural a envolver de luz o sitio da nossa doce infância , um anjo que descia do céu ao meu encontro e me transportava até aos longínquos limites da imaginação. As nossas mãos uniam-se, os olhares fundiam-se uns nos outros e eu, cego pela tua intensa claridade, só via aquilo que tu vias e alheio a tudo em meu redor, apenas sentia o apressado palpitar do teu coração enlaçado no meu que transbordava feliz as margens do meu peito.
Neste amanhecer de luz e de sombras em que, pressentindo tempestades, os ventos sopram alucinados sobre o rio e ressuscitam momentos de ternura e muitos dos sonhos inocentes que juntos sonhamos, ofereço, neste instante que considero único, uma lembrança, um pensamento cheio de amor só para ti.

Claro di Luna

Aconteceu na vila de Baião há muitos anos num dia frio de Inverno. Numa das centenas de vezes em que percorria as estradas das margens do rio Douro. Numa delas fui absorvido pelo desenrolar de acontecimentos surpreendentes.  Impedido de circular pela neve, recolhi a uma bar residencial denominado "A Lareira" e era nesse tempo a única opção para pernoitar em Campelo. 
Jantei na pequena sala que tinha um piano protegido com um tecido de veludo de cor vermelha que silencioso parecia repousar de árduos e quiçá belos, concertos acontecidos ali no passado.
O fogão de sala aceso crepitava no canto esquerdo do bar e assegurava o calor requerido por aquela noite confortável dentro do estabelecimento mas gelada lá fora nas ruas onde a neve se ia amontoando sem critério ou forma
Ela surgiu com vestes brancas de princesa, parecia um anjo e possuía a cobrir-lhe o corpo franzino um corpete gracioso enfeitado com uma gola de babados e um lacinho no centro. As grandes mangas enchidas, tinham fitas de seda que formavam dobras e envolviam com fino algodão os seus braços. As camadas de tule de crinolina por baixo da saia, criavam uma roda , um véu que se lhe desprendia livre da cintura, arrastava-se pelo chão de tijoleira vermelha encerada, produzindo um enfeite de noivado ou qualquer coisa extremamente fantástica saída de um mirabolante conto oriental.
Sentou-se ao piano, apressadamente alguém retirou a túnica de veludo vermelho que o cobria e um silêncio pesado tomou conta do espaço da sala de jantar. Os seus dedos graciosos e finos assentaram com a leveza de plumas na brancura do doce teclado de marfim e uma música de movimento lento, majestoso e sombrio, transformou a atmosfera num romântico jardim solitário que repousa na escuridão da noite. Quando a média luz do recinto lhe incidia no rosto, notavam-se-lhe os traços serenos e a suavidade das linhas da cara demasiado perfeita para parecer simplesmente humana. Depois uma triste e infinitamente amorosa melodia, uma espécie de mistério envolveu todo o movimento das abençoadas mãos da mulher pianista e,  no evoluir da sonata Claro di Luna, o  significado da fantástica e mística beleza que a atravessava, foi revelado ao poucos privilegiados seres humanos ali presentes. Foi como se uma lua gigante nascesse nesse instante  e gradualmente banhasse esse antes obscuro jardim e o transformasse num cenário de sonho e esplendor maravilhoso.
Seguiu-se uma pausa sem respiros, depois  começou o segundo movimento e o pequeno edem encheu-se com espíritos alados que bailavam delicadamente e absorviam o prazer dos harmoniosos sons movendo-se com um abandono de ritmo que parecia transportá-los para muito longe dali numa nuvem ou  num turbilhão imenso de prazer impossível de descrever. Um baque súbito e outro silêncio de suspense antecedeu o terceiro movimento. Como uma lufada de vento que fustiga as árvores em redor e obrigssea os espíritos a refugiarem-se à pressa num abrigo, as notas caiam desconexas e em redemoinhos como costuma fazer a ventania quando sopra desvairada sobre as árvores e  plantas, enquanto as nuvens corriam apressadamente pela fugaz brancura nocturna das abertas do céu. Então por entre os espaços claros, via-se a lua cavalgando majestosamente no universo e a inundar o tortuoso jardim com doces e serenas músicas de luz.
Foi há tanto tempo mas ainda conservo comigo o perfume dessa noite mágica e num prodigioso assumo de memória, reconstruo o maravilhoso momento, as delicadas mãos e o angelical rosto da mais insigne e maravilhosa pianista que alguma vez o Douro conheceu.

Solstício

Sentado na pedra à beira do rio, escrevo memórias de fantasmas vivos, de locais misteriosos carregados de história e de magia cercados por montanhas e três rios que surgem da milenar memória dos povos, de gente feita de carne, sonhos, ilusões, de terra e de água. De ventos que por aqui passam famintos a gemer loucuras eternas. De barcos a remos que se afundam nos ternos olhos dos pássaros, de árvores centenárias que cantam poemas abraçadas a mim ao amanhecer. Dos verdes e dos azuis com que se fabricam todas as fantasias, de crianças inocentes e puras que alegres, ensaiam pequenos e delicados voos a dois passos dos ninhos. De velhos de olhar meigo e doce plantados no chão bruto da taberna a engolir saudades medonhas, dos  rios que por aqui correm solitários e secam as pedras com lágrimas. De tudo, de nada, do provável, do improvável, das mãos que afagam com ternura os sem abrigo, dos rostos que contam verdadeiras e fantásticas histórias, dos cabelos que o vento agita e são apenas beijos a querer subir ao céu, de sorrisos que nos iluminam e mitigam os instantes de dor e sofrimento, dos que emigraram à procura de pão com lágrimas nas mãos, da despedida das rolas que nos deixam sem luz, da chegada das andorinhas que repõem a alegria e a esperança , do calor intenso do corpo de quem ama, do frio gelado da alma dos sem fé e sem amor, de ti que inadvertidamente criei com poemas de papel, de mim que não me reconheço no incoerente almanaque da vida onde me arrasto, da doçura dos dos beijos, do calor dos abraços, do ontem que perdi para sempre, do hoje que me escapa por entre os dedos, do agora que lesa e ilude porque pode não haver amanhã.
Sentado sozinho na pedra à beira do rio espero o o solstício, o clarão que vem iluminar a terra, anunciar a vitória da luz sobre as trevas e refazer a esperança que se julgava perdida.

Num instante amanheceu sobre o rio!

Dilúvio de Luz

Passas por mim já muito perto da foz. Banhado em lágrimas, contas-me as últimas histórias que viveste no longínquo Alto Douro. Falas-me de pessoas, de antigas praças de gentes de cujo o esforço heróico, fez nascer um outro mundo onde te espraiaste sonhador, de lugares maravilhosos que visitaste ao longo das fantásticas viagens que todos os dias empreendeste no decurso de  de milhões de anos que já viveste iluminando com as tuas águas, fomes seculares, escuridões territoriais a quem já nenhum de nós dá luz aceitando o desprezo e o esquecimento de um país inteiro, de inexpugnáveis rochedos, fraguedos medonhos rompidos com tenacidade e a imensurável força das tuas alucinadas águas, de montes, outeiros facetados pelas mãos do homem que, para te enfeitar, os corou de vinhedos, de localidades fantásticas que ajudaste a nascer atraindo pessoas de todas as partes do mundo que se lançam nas tuas correntes maravilhados, de reentrâncias trabalhadas com infinito amor e finíssimas rendas bordas e edificadas pela tuas mãos nas  margens que te ladeiam onde repousam velhos barcos carregados de sonhos lindíssimos.
Vais feliz e simultaneamente triste a caminho do mar. Tal como eu, tens de cumprir o teu destino até à última gota do dilúvio de água que te anima. Em breve serás parte integrante de um imenso oceano, um colosso, o paraíso de todas as águas.
Há tantas semelhanças nas nossas comuns existências sobre a terra. Tu já foste mar, depois tornaste a ser rio, daqui a pouco serás mais uma vez oceano. Eu já fui pó, gerei-me a partir do nada de onde tudo se cria ou transforma, brevemente voltarei a ser cinza, pó e nada. Do que sou e fui, salvar-se-á um espírito que regressará à casa paterna, ao todo de que faz parte depois de ter sido um homem igual a todos os outros, um  ser animado e vivo e de, embora vão, ter tentado tudo para ser feliz.  Transcendemos o tempo, este nosso tempo, somos eternos ao metamorfoseando-nos continuamente até à improvável consumação dos séculos.
No fim dos dias, se por desdita de todos nós houver um fim para a perfeição das coisas sagradas, tu sersá mais uma vez um mar infinito, um esplendor maravilhoso aberto aos ávidos e felizes olhos das criancinhas que nunca temeram a imensidão dos mares e eu outra vez um espírito purificado, um dilúvio de luz a caminhar feliz sobre as tuas ondas...

Para Sempre

Sento-me na pedra à beira do rio e clamo aos ventos o teu nome. Sofro. Dói-me a aprazível paisagem que as minhas vistas alcançam, doem-me os barcos que passam aqui com e sem destino, doem-me as gaivotas que sobrevoam os teus olhos, doem-me as árvores, as casas, as pedras que seguram o céu, doem-me os cantos matinais das rolas, doem-me as flores silvestres que enfeitam os caminhos da nossa aldeia, as violetas, os malquereres, as urzes, as papoilas das beiras das ruas onde tu passavas, dói-me a tua ausência nos círculos desenhados na água pelas mãos da primavera que te levou com ela, dói-me a vida toda no sopro dos ventos que te trazem nas mãos.
Dormes amortalhado nas memórias do rio que te embalou, recolheste a casa, voltaste ao colo da nossa mãe. Que alegria deves ter sentido ao cruzar as ombreiras da porta da casa onde moram os anjos. Que música é essa que me chega aos ouvidos, parecem cânticos divinos ou será apenas o som da tua voz ausente a perguntar por mim. 
Que lindo é este anoitecer. O céu abre-se sobre a nossa terra raiado de brancos imaculados e eu imagino-te sentado à porta de casa a olhar o rio. Esta é a imagem permanente dos teus dias felizes, a última, a que levaste para mostrar no céu. 
Aqui na terra sentado na pedra à beira do nosso rio, lembro-me insistentemente de ti. Planeio meticulosamente o futuro que sei que não vou ter. Estou só mas contigo dentro de mim meu querido irmão...

Contos Velhinhos de Amor

Tinha apenas quatro anos quando a minha mãe me levou pela primeira vez à cidade do Porto. Foi difícil a viagem por estradas irregulares, alguns troços ainda em estado de lenta conclusão, de terra batida, com pó e buracos que causavam saltos e solavancos à velha camioneta da carreira que, com enorme dificuldade subiu a serra da Flores, desceu a pique até à povoação de Covelo, atravessou a ponte de madeira sobre o rio Ferreira e atirou-se em primeira velocidade à costeira íngreme que só termina na vila de Gens, até chegar ao centro de Valbom em Gondomar. A partir dali já as ruas eram calcetadas até desembocarem às portas da cidade do Porto na rua do Freixo onde a subida da também muito acentuada da rua com o mesmo nome, exigia um derradeiro esforço ao cansando motor do autocarro da Gondomarense que penosamente se arrastava pelo empedrado acima. Já lá no alto, viramos repentinamente à direita e avistei ao fundo a estação de Campanhã e ouvi pela primeira vez na vida estridentes apitos de comboios e o matraquear das rodas das composições que dali partiam e chegavam de e para todos os cantos do país e até para Espanha via Valença do Minho. A carreira passou na frente da estação não sem antes descarregar passageiros na paragem que fica mesmo em frente desse notável monumento ferroviário seguindo depois pela rua Pinto Bessa até se desviar para a rua Padre António Vieira e virar subitamente à direita e dar a ideia de que se iria esbarrar de encontro à frontaria decorada de belos azulejos da Capela da Senhora da Saúde que faz esquina com a travessa da Formiga e com a rua do Heroísmo. Pura ilusão minha, de repente o motorista deu meia dúzia de voltas ao enorme volante da máquina e ficamos de frente para a rua do heroísmo que se prolonga até à antiga e extinta PIDE, hoje museu militar, e se bifurcava com a avenida Rodrigues de Freitas estendida pelo chão até ao Jardim de S. Lázaro onde me espantei com o grande tráfego de carros eléctricos que giravam constantemente em seu redor, vindos de todas as ruas adjacentes. -Tantas casas a pescar exclamei, utilizando o termo usado pelo meu irmão Hélder na primeira vez que foi ao Porto, quando paramos no cruzamento em frente à biblioteca Municipal por ordem de um sinaleiro da polícia que abriu o trânsito para a rua de S. Victor à esquerda e deu passagem aos que circulavam de frente, vindos da Praça da Batalha e da rua Alexandre Herculano. As casas a pescar eram as ligações de braços fixados nos tectos das carruagens aos fios condutores de electricidade que proporcionavam combustível limpo aos carros eléctricos que o Porto tinha em quantidade suficiente para meter num só bolso todos os moderníssimos Metros que agora atropelam economicamente três ou quatro cidades da área metropolitana oferecendo todavia uma maior comodidade e rapidez nos trajectos. A carreira era uma velha OM importada de Inglaterra e de volante ao contrário tal qual como são muitas das direcções que o país tomou desde então. Parou na rua Duque de Loulé que era digamos, uma das muitas centrais de camionagem de passageiros que a cidade sustentava na época. Apeados, calcamos a pé a distância que nos separava do destino traçado pela minha mãe: o Cais da Ribeira.
Durante esse percurso pude admirar os prédios, os carros, as pessoas e, tal era o meu espanto que algumas vezes a minha mãe teve de puxar com alguma força o meu braço que vinha agarrado à mão dela para me arrastar para o pé dela e chamar atenção a um ou outro pormenor que achava digno do meu olhar ávido de conhecimento.
A mão da minha mãe na minha mão, dava-me conforto e segurança, era uma sensação de maravilhosa união, um calor que percorria todo o meu corpito de criança e me enchia de felicidade. O meu coraçãozito, palpitava acelerado e parecia querer sair-me do peito e juntar-se feliz ao coração dela como se nós os dois fossemos um só. Parece-me sentir neste momento a mão da minha mãe na minha. Suave sensação, indizível bem-estar, doce recordação. Que estranho e simultaneamente encantador poder tem a mente humana que é capaz de guardar intactas tão sagradas memórias para nos surpreender quando o deseja e ao mesmo tempo nos deixar fragilizados porque, propositadamente, não quer impedir as lágrimas de saudade que nos assaltam e alagam os nossos olhos agora adultos ou por ser necessário lembrar-nos que já fomos felizes algures num momento radioso das nossas vidas. O que somos agora pouco importa. A maior ou menor notoriedade de cada um, diluísse na distância percorrida sem gestos de ternura e de carinho, sem abraços e sem beijos. A matriz de cada um, foi decalcada na formação infantil em que o leite materno operava os milagres precisos para nos defender de todos os perigos ao longo da existência. Mãe, continuo a ser a criança desejosa, aquele dos muitos que mais arrelias te causou mas para quem tinhas sempre um sorriso de perdão e absolvição dos meus inocentes pecados. Hoje, à mercê do mundo, sem protecção materna e deambulando pelo vida como um sem abrigo, dedico-te um sorriso de cumplicidade, o mesmo ou outro igual aos de antigamente que te faziam feliz. O Porto de que eu só tinha ouvido falar pelos barqueiros dos Rabões da Esquadra Negra quando faziam pausas na taberna da minha mãe na rua da Torre em Rio Mau ou pelos arrais dos barcos Rabelos que atracavam no cais do Remoinho para se virem abastecer de viveres na mercearia dela, estava ali à minha disposição. Ainda hoje me bailam nos armários da memória alguns nomes de homens valorosos domadores do rio e senhores de uma coragem sobrenatural. O Zeca Léria, o António Florim, o Joaquim Florim o Zé Florim todos irmãos e de Vimioso. O bernardo Bento de Bitetos, o João Rouquinho de Bitetos, o Vagaroso e o Castanho do Castelo, o Ervilheiro e o Nico de Aregos e o Manel do Rio da Barca da Seara. Todos capitães das fragas, comandantes de rabelos, mestres de tráfego do rio douro. Nomes de guerreiros valentes mas também de cegos e loucos como o rio em que toda a vida navegaram. A minha pequena quantidade de vida, quatro anos, começava a ser matizada com as artes fluviais sem eu ter contribuído em nada para que isso acontecesse. Agora estava ali a pisar a terra da maior das referências do rio Douro, aquela que essa imensa corrente líquida escolheu para vir abraçar o oceano, a ver com os meus pequeninos olhos deslumbrados a metrópole vergada ao peso descomunal da história e de todas as histórias que a transformaram numa grande metrópole, num epicentro do mundo, património mundial, tudo atributos de um povo habitante que foi tenaz, dono de muita heroicidade que proporcionou que tantos feitos acontecessem. Os grandes só se vergam aos grandes e, nessa combinação multifacetada, a cidade do Porto honra-se de tantas gloriosas páginas gravadas a ouro no grande livro dos maiores. - Vamos para a Ribeira, disse a minha mãe enquanto caminhava por alturas da Praça da Batalha. Eu espantado, tentava absorver todo aquele movimento, a multidão que enchia os passeios e inundava a rua de Sta Catarina, a arquitectura dos prédios de dimensões alheias às humildes e pequenas casas da minha terra, desnudadas de azulejos ou cales, escuras como o é o material de que são construídas e é retirado à força de braços das pedreiras da serra da Boneca. Xisto, lousa que apesar de tanta humildade veio a ser considerado produto nobre muitos anos depois no enfeitar de casa modernas e vivendas de luxo. De repente ouviram-se sinos, carrilhões que musicalmente batiam horas e espantavam centenas de pombas coabitantes da cidade invicta. Que raro privilégio foi esse pensei, o de ir de vista a um santuário onde vivem e viveram muitos dos ilustres homens e mulheres do nosso pais e saber que quase nenhum dos meus colegas de brincadeiras desse tempo, o tinham feito até ai.
Corria ao lado da minha mãe e durante essa caminhada pelas ruas do Porto, de vez em quando, lançava-lhe um olhar de terna cumplicidade e esperava que ela baixasse os dela e me correspondesse com um olhar como só ela tinha e, nesse enleio que não esqueço, ia pensado que quando voltasse à minha terra, haveria de contar tudo o que de maravilhoso estava a viver nesses momentos de sonho, aos meus amigos que ficaram a ver-me partir na carreira das sete da manhã. Descemos a rua de Sto. António que era um mar de gente e, ao fundo a estação de S. Bento, apareceu-me pela esquerda rodeada de edifícios descomunais e ruas largas onde centenas de carros e camiões circulavam por entre os apitos estridentes do sinaleiro, em pé num estrado redondo de madeira, ao centro da encruzilhada à vista da Praça da Liberdade. Descemos a rua Mouzinho da Silveira e, após dez minutos de marcha acelerada, chegamos à rua de S. João e dali já avistei mastros de vapores fundeados ao largo do cais Ribeira e barcos Rabelos encostados ao cais das Freiras do outro lado do rio. À minha frente estava o Douro rio que me embalou desde a nascença a ser anfiteatro de colossais transacções comerciais tanto nacionais como internacionais trazidas em navios com cargas diversas vindos de todos os portos do mundo. - O meu rio também veio ver a cidade do Porto, pensei. Decerto já não vai voltar a passar na minha terra, vai querer ficar por aqui nesta terra moderna a ver tudo o que é bonito!
A falta de confiança da minha parte para com a integridade de um amigo, comprometia o futuro da nossa relação. Eu era uma temerosa criança apenas mas o rio sabia bem que nada nos poderia separar. A azáfama era por demais evidente, as pessoas movimentava-se pelos passeios como uma amalgama disforme de gente que parecia não ter destino marcado. Uns para cima, outros para baixo, outros para os lados atravessando as ruas levando nas mãos diversos objectos e compras de aquisição recente. A cidade fervia cada vez mais à medida que nos aproximamos do cais onde os meus tios, irmãos da minha mãe, tinham um armazém de mercearia que abastecia as terras a norte e vendia ali mesmo, a quem requisitasse algum produto. Eu ainda não sabia ler nem escrever mas a minha mãe apontou para uma tabuleta fixada sobre o número seis da rua de S.joão e disse-me: -Vês é ali o armazém e a casa dos teus tios! " Manuel Araújo e Irmãos" - Armazenistas de Mercearia, Inport - Export.
Que importavam quase tudo o que vendiam e que nunca exportaram nada vim a sabe-lo mais tarde no entanto compreendia-se a agressividade comercial dos publicitários designers gráficos da época que só pretenderam dar importância e vulto aos negócios da família. Ocupava três números a frente comercial, portanto três lojas onde se armazenavam todos os produtos comestíveis, batatas, arroz, açúcar, bacalhau, massas, feijão, sal e não comestíveis tais como, carboneto para os gasómetros misturado com sacos de rolhas para garrafas e garrafões, ráfia para amarrar portes de enxertos aos molhos, etc, etc. Num dos andares por cima vivia o meu tio José que foi o nosso anfitrião durante os dois ou três dias que por lá permanecemos. A minha tia Aida sua esposa, era uma senhora muito bonita, uma verdadeira dama, bem vestida e arranjada com uma gargantilha de pérolas ao pescoço a realçar o peito coberto por uma blusa de seda preta, ouros suspensos discretamente nas orelhas e nos dedos das mãos. Uma flor de filigrana espetada na lapela de um casaco que lhe adelgaçava a cintura e fazia conjunto com uma sai de lã de meio passo, de cor cinza, os dois com atenuadas riscas brancas longitudinais completavam o fino traje da senhora minha tia. Lembro-me que tinha os olhos maquilhados de tons de azul marinho, a pele do rosto encantador onde as faces apareciam levemente retocadas por algum dos pós cor de rosa na altura importados de Paris. Tinha as unhas perfeitamente talhadas e os lábios pintados de vermelho coisas que eu nunca tinha visto em mulher nenhuma da minha aldeia e me fascinaram de forma a que partir dali fiquei a magicar como seria lindo o mundo se todas as mulheres pudessem ser assim tão arranjadas e bonitas como a minha tia Aida. Na minha terra Rio Mau, não podia haver semelhantes arranjos, a vida era dura, o trabalho muito e o dinheiro muito pouco. As roupas eram feitas de chitas, panos crus, gangas e os cotins. Fazendas nobres da Covilhã, só nos povos das cidades que já auferiam salários melhores do que um mineiro, lavrador, pescador ou barqueiro. Todavia a beleza sempre acompanhou as senhoras da minha terra. Mãos hábeis de humildes costureiras, operavam milagres e faziam reluzir como estrelas as raparigas da beira do rio. Era uma beleza diferente, natural, pura e genuína. A Ribeira, o rio, as barracas das vendedeiras espalhadas pelo cais, os pregões matinais, os almocreves que vinham e iam de sacos aos ombros para carregar camionetas que as levariam para todas as terras vizinhas. Do outro lado do rio pairavam as silhuetas disformes dos barcos Rabelos em fila à espera da vez de descarregar as centenas de pipas de vinho fino que traziam no ventre desde o Alto Douro.
De repente o sobressalto:
-Que andas aqui a fazer Manel?
Olhei para trás surpreendido e aflito mas percebi nesse momento que quem me interrogava era o meu amigo rio Douro. -Vim com a minha mãe ver o Porto, respondi cheio de vaidade e todo contente por saber que ele me tinha reconhecido no meio daquela multidão e ao mesmo tempo orgulhoso por estar a partilhar com ele semelhante aventura. -Trouxeste o pião, perguntou-me ansioso? -Tenho-o aqui no bolso dos calções, queres brincar comigo, perguntei a sorrir? Quero, desce as escadinhas do cais com muito cuidado e vem até cá a baixo: Vamos jogar o pião! E brincamos nesse dia desinteressados de tudo o que nos rodeava até ao anoitecer. Ainda hoje essa brincadeira inocente continua viva dentro de nós os dois. Ele fala comigo a brincar e eu brinco com ele a falar e a escrever. Somos irmãos. Ninguém nos pode separar.
Já lá vão os anos. Já lá vão as pessoas mais queridas, alguns a quem amei, quase todos desapareceram desse cenário maravilhoso mas a história, os sítios, as casas e o rio permanecem lá a contar como tudo se passou durante centenas de anos.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

O Barqueiro da Ilha dos Amores

A ilha dos amores não é apenas produto de alucinada e demente miragem extraída de um fantástico e mirabolante sonho: ela existe na realidade ali na confluência do rio Paiva com o Douro, tendo a milenária povoação do Castelo como sentinela que alerta, vigia incalculável e valioso tesouro; aparece aos olhos dos navegantes como como incrível quimera e esplêndida visão
A ilha não é consequência do fraccionamento de uma porção de terra que se soltou de qualquer continente, predicado de tantas outras maravilhas dispersa na imensidão do mundo. Não, a ilha dos amores foi edificada pelo génio e engenho destes dois rios que num gesto altruísta, quiseram deixar para memória futura, um perpétuo símbolo vivo a lembrar a humanidade de que é sempre possível fabricar a fantasia de um sonho e que, para tal efeito, basta uma forte e indomável vontade de existir.
De longínquas paragens, talvez dos penhascos sobranceiros, Paradinha, Janarde ou Meitriz, aldeias isoladas matizadas com rústico xisto, edificadas nas beiras do rio Paiva lá para os lados de Alvarenga, arrecadaram penedos, fizeram-nos rolar pelo vale abaixo e ali os juntaram com todo o afecto  deste mundo, como quem constrói um templo em memória de feitos milagrosos ou ainda de tributo a notável e insigne personagem.
Quem vem dos lados de Várzea do Douro ou de alpendorada e desce em peregrinação pelos caminhos tortuosos que rabiscam a agreste forma dos montes até Bitetos, depara com essa pérola que se soltou do colar da distante serra prenhe de volfrâmio.

sábado, 5 de maio de 2012

O Navio dos Mortos


Um pedaço de luar aparece por entre a negrura das nuvens carregadas de chuva que cruzam o céu subindo dos lados do mar por cima da praia da Madalena e reflecte-se moribundo na água barrenta do Douro. O oceano matizado pelo tom doirado do rio, agita-se bramindo com um louco a descarregar uma fúria colossal nos paredões da Cantareira, espraiando-se depois em devastadores rendilhados amarelos e brancos por sobre as avenidas da Foz que desertas, se deixam engolir no turbilhão de água, pedras e espuma.
É muito mar, são os elementos naturais conjugados num processo de destruição sem precedentes a impossibilitar qualquer tipo de navegação mesmo de urgente socorro a náufragos e só o Lolas, piloto da barra, todo metido dentro de um fato de oleado amarelo, cobrindo a cabeça com um chapéu do mesmo material e cor, ousa enfrentar semelhantes poderes. É uma estátua petrificada e quase consolidada ao cunhal granítico da capela de S. Miguel O Anjo a desafiar sozinho, as leis da natureza. Quando a vaga se levanta num ímpeto mais forte e bruscamente cobre o monumento estilhaçando os vitrais da casa dos Pilotos, ali ao lado, aquela indecifrável figura, move-se então para se encolher um pouco mais abrigado no precário refúgio.
Ao longe, um navio a quem não foi permitida a entrada no porto de Leixões, luta desesperadamente com a fúria da tempestade e as luzes do mastro que assinalam a embarcação, aparecem e desaparecem na fundura das vagas em perigosa oscilação.
As gaivotas permanentes habitantes dos areais do Cabedelo, já há muito migraram para montante do rio na tentativa de fugir aos tormentos devastadores da tormenta.
O velho marinheiro perscruta um horizonte pardo num alerta permanente a calcular as artimanhas do mar, do rio e dos ventos. Ele conhece o sítio, já são muitos os anos a meter-se às ondas em operações de salvamento de pessoas vítimas de naufrágios ali na boca da Barra e no restante troço fluvial-marítimo tendo sido o mais violento o da lancha de Avintes em que pereceram vinte e nove pessoas. É preciso estar atento, a todo o momento poderá acontecer a tragédia. Aqueles olhos pequenitos onde já não mora a luminosidade de outros tempos, viram pasmados soçobrar navios e sucumbir pessoas em desgraças que neste local aconteceram ao longo da sua também já comprida existência.
É quase meia - noite altura em que o rio quer adormecer e, nas profundezas da água desprendem-se os corpos dos afogados que vão aparecer por instantes intactos a boiar à superfície. O sono do rio é curto, só o tempo necessário para que as almas dos mortos se resgatem do forçado cativeiro e possam subir até ao céu.
As noites do Douro são povoadas de densos e impenetráveis enigmas que jamais algum ser vivo conseguiu deslindar. São antigas as lendas, perdem-se na antiguidade da milenar história dos habitantes das beiras da água e, apesar de pouco valorizadas, continuam vivas e a passar de geração em geração. Quantos incautos ignoraram ou menosprezaram os conteúdos fantásticos e alucinantes dessas antigas crenças e foram eles próprios vítimas perdidas na profundidade da quase sempre aparente mansidão do rio. Quando a lua cheia se agiganta no céu, adensam-se os mistérios, as funestas campas abrem-se lá em baixo e, como se movido por um poder oculto, o rio resplandece em labaredas e tonalidades tão fantásticas que nem o mais brilhante pintor conseguiria transmitir nas pinceladas de um quadro. O poder desta toalha de água metamorfoseia-se então na colossal força do firmamento celeste e, incrivelmente o inesperado acontece. Todo o universo plana em sintonia com a terra num ápice de tempo e, ocorre então uma espécie de encantamento, a troca de misteriosas energias que podem perturbar tanto os mortais ao ponto de perderem a vida e até a própria alma.
Todo o Douro, desde a Foz a Barca de Alva, tem memórias de violentos e inexplicáveis acidentes; uns antigos outros mais recentes mas nem por isso menos devastadores.
O lolas recorda o mais terrível e estranho dos naufrágios. Muito embora ainda não tivesse nascido, foi-lhe ministrado cedo o relato dessa imensa tragédia. São cicatrizes tatuadas no rio que nada nem ninguém consegue apagar. Era domingo, dia adequado à realização de festas e outros arrojados eventos. A barca do Castelo, Bateira de transporte que fazia a ligação entre as duas margens do rio tinha capacidade para cinquenta pessoas mas, foram oitenta, quase todos fidalgos, provenientes de Cinfães, Arouca e Castelo de Paiva que embarcaram já noite alta no cais de Bitetos ao fim de grande festividade na quinta de Vilacetinho em Alpendurada. O rio estava manso e reflectia já a lua e as estrelas quando a barca lentamente sulcou as águas na travessia. Havia animação a bordo e os restos da festa consumiam-se ainda no meio do Douro e ninguém se apercebeu que era meia – noite e que as almas dos desaparecidos queriam subir ao céu. Nunca se soube com precisão o que se passou naquela hora dramática, sabe-se que se ouviram-se lancinantes gritos e pedidos de socorro durante algum tempo e depois só a negrura da noite e o silêncio responderam às chamadas de terra. Todos pereceram nesse trágico naufrágio e os seus corpos nunca foram encontrados. O rio Douro é feito de sonhos, de segredos e também de estranhas magias.
As recordações do velho comandante avivam-se em noites bravas como esta, de cheias, de fortes chuvas e de terríveis vendavais. Então como visão impossível de deter, surgem-lhe na mente todos os dramáticos momentos do passado:
- Batiam compassadas no sino da igreja de Santa Maria de Sardoura as doze badaladas e, nesse preciso momento o rio tornou-se um espelho que brilhava reflectindo a lua e as estrelas e, os fogos - fátuos, pareciam labaredas de fogo a surgir da liquida transparência. Acontecia a hora mágica., o momento dos mortos. Ninguém pode perturbar o sono do rio nesta hora de redenção, quem o ousar fazer, perecerá nas suas águas e as almas desses violadores dos segredos do Douro, nunca encontrarão o caminho da luz e vaguearão eternamente nos locais desertos onde as sombras da noite mais se acentuam.
O Vagaroso pescava por baixo do pilar norte da centenária ponte de ferro e pedra de Entre-os-Rios. As canas da Índia, vergavam na ponteira resistindo ao esforço da chumbeira de vinte gramas fixada na extremidade da linha e a bailar nas profundezas da água. No céu escuro como o de hoje, uma lua enorme decifrava de vez em quando os contornos deste vale imenso proporcionando espantoso cenário só apreciado por fantasmas e por este pescador nocturno.
Corria o mês de Março, tardavam os primeiros alvores da Primavera e chovia há mais de dois meses uma chuva estupidamente persistente que parecia nunca mais abandonar o céu e a terra. Debilitado pela idade, o velho marinheiro queria matar o tempo que o reumatismo impedia de passar na cama em repouso prolongado nessas longas invernias. Oitenta anos de vida dura deixaram marcas irreparáveis no corpo e na mente deste homem que o amor enganou. Movido pela força de uma arte antiga, arrepiava caminho até a este recanto mais abrigado do rio onde ficava horas a pescar, a ver o rio em chamas, a falar com mortos e a pensar na vida que lhe fugiu por entre os dedos de umas mãos calejadas. Tempos de outrora onde se perderam as muitas recordações deste ser ribeirinho. Recolhidas no peito, intransferíveis, magoadas, a marcarem o ritmo de uma vida que teima em se extinguir, afloravam-lhe à mente sem aviso prévio martelando-lhe o cérebro como anúncio de televisão.
Os dias, os intermináveis dias, que gastava arrastando os pés de lado para lado neste cais solitário, já não proporcionavam o prazer do passado. Como se um vendaval enorme varresse aquele pedaço de chão, viu serenamente partir um a um, aqueles e aquelas a quem amou e que enfeitaram o percurso dos longos anos que viveu até agora. Os amigos que fez quando chegou trazido pelas mãos de um destino que lhe foi cruel, os companheiros que deixou no Castelo sua terra primeira, eram ainda sombras permanentes a povoar as noites que lhe faltavam viver.Iscava o anzol com pedaços de sardinha e esperava paciente que algum peixe se deixe prender na aguçada armadilha enquanto o alucinado pensamento ressuscitava cenas que julgava já ter esquecido completamente. Pareceu-lhe ver na fantasia do traiçoeiro cérebro, a negra silhueta de um navio encostado ao cais do outro lado. Conseguiu mesmo vislumbrar um nome marcado na linha de proa do barco; Albatroz. Como flash que lhe desventrasse o cérebro, penetrou angustiando na visão:
- Noite tranquila, aquela em que uma lua fugidia produzia efeitos magníficos no liquido lençol. Noite calma só perturbada pelo cochichar das rãs no regato de Fonte Nogueira e por uma brisa suave e demasiado leve para agitar o lustre das águas. De repente ele aparece na curva do Remesal. Era um navio de luz resplandecente de velas erguidas e proa elegante e afiada a rasgar o ventre deste rio doirado.
-É o Navio dos Mortos, murmurou o Vagaroso enquanto apressado manejou o aparelho a recolher a linha. Ele conhecia as manhas do rio que lhe provocavam alucinações e sabia sempre quando os fantasmas dos falecidos resolviam navegar por aqui perturbando-o ao ponto de se julgar também um defunto. Não houve tempo de escapar e ficar a salvo desta sinistra aparição. A embarcação avançava muito mais depressa que a sua precária perícia de velho. Encolheu-se a um canto receoso e ouviu assustado os gemidos lancinantes da tripulação em desespero. O rio agitou-se repentinamente e, lá em baixo, nas Pedras de Linhares, não se sabe se por que artes mágicas, levantou-se um terrível ciclone.
O fantástico barco parecia que a todo o momento iria naufragar e a proa mergulha aflita num turbilhão de espuma. Rangiam as estruturas ferrosas prestes a ceder a tamanho esforço. O rio em agitação inenarrável, mais parecia o mar do Cabo das Tormentas. Havia braços torturados, pessoas presas nas amuradas a pedir socorro. Os gritos horríveis dos tripulantes e passageiros rasgavam a noite cobarde e traidora. O céu era cinzento cor de chumbo e apagaram-se as luzes no cais do Torrão. O pescador desvairado ensaiou uma nova retirada mas o vento forte não o deixou avançar. Encolheu-se mais dentro da roupa e, de olhos arregalados viu esfumar-se à distância de uma mão, o barco fantasma nas águas do Douro.
Primeiro o enorme casco tombou ferido de morte na liquidez do rio, depois os mastros cruzados afundam também numa agonia desesperada e lenta. Calam-se os apelos, cessam os gemidos e o Vagaroso fechou os olhos e tremeu de medo e de perplexidade.
O rio sossegou, o vento também amainou e só a chuva louca continuou a massacrar o homem.
-Que pesadelo, disse o Vagaroso enquanto retirava do bolso das calças um lenço com que secava a humidade dos olhos.
- Também tenho sonhos desses! Todas as noites vejo lume na água do rio acolá em frente à Afurada, diz o Lolas. O doutor Adriano diz que é próprio da idade, que são sonhos de velhos provocados pela solidão.
-O que é a solidão Lolas, perguntou o Vagaroso!
-A solidão é esta sensação de vazio e isolamento. É a gente querer uma companhia ou querer realizar alguma actividade com outras pessoas e ninguém nos dar ouvidos. É precisar como nós de algo novo que transforme os nossos dias! A solidão Vagaroso, é a gente só poder falar com mortos.
O outro calou-se sem perceber bem ao certo o que é a solidão e ficou a senti-la agarrada na alma, a despedaçar-lhe os sorrisos.
O mar continua a devastar a Cantareira, arrastando pedras enormes que deposita no meio da rua e as palmeiras da Meia Laranja vergadas até quase ao chão, lutam desesperadamente contra a fúria dos elementos.
O rio continua agitado, reflecte a lua cheia e as estrelas, a meia-noite é breve e o Lolas tem de regressar a casa antes que soem as doze badaladas porque ele sabe que as almas dos afogados querem subir ao céu.





Do livro, " Dourolindo" de Manuel Araújo da Cunha

quinta-feira, 29 de março de 2012

Barco Velho




Havia um velho barco a boiar nas águas do rio escondido num recanto ao fundo das arribas de Várzea do Douro que se estendem florestadas e pedregosas até ao cais de Bitetos. Quase destruído, parecia um tronco de madeira a flutuar meio submerso com a água a bordejá-lo conforme a ondulação que o vento provocava.  
Tinha sido uma embarcação de pesca há muitos anos atrás e, decerto nas suas lembranças, haverá histórias de barqueiros, pescadores e de muita outra gente que nele navegou ao longo do rio Douro.  Suportou ocasiões de naufrágios iminentes, resistiu às fúrias de um rio turbulento, imenso de caudal da cor do mais fino ouro. Muitas vezes empinado nas cristas das ondas, parecia uma leve pena levada por correntes traiçoeiras que constantemente ameaçavam arremessá-lo de encontro às pedregosas margens.
A tudo resistiu manobrado pelas firmes mãos de um barqueiro que lhe dedicava consertos após terem passado as tormentas que lhe provocavam lesões um pouco por todo o casco. Só a idade o abateu, vencido, transformou-se num pedaço de madeira apodrecida.
A vida de um barco é como a vida de um homem do rio, são quase semelhantes, ambos trazem um destino para cumprir e por mais tentativas que se faça para alterar esse fado, é impossível fazer com que não se realize. Um barco não vive sem um barqueiro e um barqueiro não vive sem um barco, por mais que a efemeridade das coisas humanas ou materiais muitas vezes os separem, permanece a queimar no coração de cada um deles, as lembranças dos momentos felizes que viveram misturadas com outras por ventura menos agradáveis.  
Esse velho casco que teimava em flutuar, pertencia a um homem que se deixou envelhecer dentro dele. Foi o palco onde decorreram as mais relevantes cenas da sua vida, o navio que rasgava a água lançado pela força dos seus braços de barqueiro, fez parte da sua história e foi testemunha impassível de acontecimentos espantosos até vir aproar nessa reentrância da água, agonizante.  
Que belo era o cenário que rodeava o recanto onde dormia tranquilo o seu último sono. Que maravilhoso  o verde frondoso de milhares de árvores que ladeavam o rio e deixavam tombar os ramos sobre a água parecendo agasalhar o barco moribundo. Tantas flores silvestres a enfeitar um local de silêncio quebrado apenas pela sinfonia delicada dos pássaros. A natureza inteira parecia estar em prece, abraçava-o como se fora um filho que perdeu, uma árvore metamorfoseada em batel porque quis seguir um sonho e se deixou transformar num cisne que nunca voou e estranhamente permaneceu toda uma vida a boiar nas águas do Douro. 
Um velho sentado na margem contemplava o horizonte, com ele um rapazito que tentava absorver todas as fragrâncias da manhã, eram testemunhas desse aprazível momento. De vez em quando o velho deixava cair demoradamente os olhos no bote que foi seu. Não havia lágrimas nem se adivinhava sofrimento no rosto do pescador. Sereno se mantinha porque sabia que tudo e todos acabam por chegar a um último porto onde carregados por lembranças, ficam a aguardar o golpe final. 
Nada fará voltar o esplendor dos dias passados sobre a água de um rio tão assombroso de belo como aquele mas, quem teve o privilégio de viver esse encantamento, sentirá a doçura dessa espera a amenizar os irreparáveis danos que o tempo inclemente vai causando. 
Ainda se notava na proa da velha embarcação umas letras desenhadas à mão no casco de madeira. Manchadas pelo desgaste natural, ficaram imperceptíveis e só quando a ondulação acalmava se conseguia ver a silhueta disforme de duas delas. 
O velho pescador ajeitou-se até à beira dele e, com as mãos a tremer limpou a sujidade e apareceu o nome de baptismo do seu querido barco que brilhou como antigamente e pode ver-se desenhado um nome de uma mulher, quem sabe, talvez aquela que foi senhora do seu rude coração: 
-Inês, era o nome que as letras formavam.
O rapazito surpreendido perguntou-lhe: 
-Quem era a Inês avô? 
-Era uma mulher muito linda que tive filho e também era esta minha barca! 
-Mas a avó chamava-se Carolina, interpelou confusa a criança.   
-Antes de ela ser  minha esposa e depois tua avó, já este barco navegava vaidoso com este nome escrito por mim na popa! 
Nesse momento notou-se  que o velho estava perturbado, os seus olhos reflectiam as águas do rio e pareceu que espelhado nas suas pupilas, um rosto de mulher sorria feliz. 
A vida de um barco assemelha-se muito à vida de um homem do rio porque ambos trazem um nome de uma misteriosa mulher desenhado à mão a reluzir na proa.

terça-feira, 13 de março de 2012

A minha página no Facebook


Monitor com o ecrã todo iluminado onde faixas azuis mancham a predominância do branco e outras cores que se passeiam aleatoriamente sobre a tela onde as fotografias tipo passe dos internautas se sucedem quando estes dão sinal de vida, o computador do Barbosa apresenta-se na página do site mais concorrido do mundo. É o facebook, rede social onde setecentos e cinquenta milhões de pessoas aderentes trocam entre si imensa informação e onde cada pessoa pode ter o seu perfil, ou seja, os seus dados pessoais, as suas fotos e da família, links, vídeos, notas, ideias, projectos e uma infinidade de aplicações ao dispor de todos os utilizadores além de permitir que cada um a seu bel-prazer, interaja com a sua rede de amigos ou mesmo globalmente. É um mundo virtual onde tudo pode ser verdade e simultaneamente embustice. Tem tudo e de tudo este espaço global que ninguém domina, gente séria e gente desonesta tal qual como na vida real.Segundo uma investigadora americana, são quatro os aspectos estruturantes existentes nas redes sociais virtuais e que geralmente não fazem parte das suas congéneres reais.
Chama persistência àquilo que dizemos, fazemos ou colocamos na página e que tem a tendência de ficar registado para a posteridade, para sempre, quer se queira, quer não. A partir do momento em que essa informação fica registada on-line, qualquer pessoa, bem ou mal intencionada, poderá encontrar e aceder a ela. Seja amanhã ou daqui a uma ou mais décadas.
Também classifica de réplica da informação ao que dizemos e que os outros dizem online, numa conversa entre amigos, nos comentários que se fazem num blog ou as fotos que se colocam num site de uma rede social, a partir do momento que estão online, deixam de estar sobre o nosso controlo. Essa informação, uma vez encontrada, qualquer pessoa a pode usar e disseminar através da Internet. E em contextos que podem ser completamente diferentes daquele em que a informação foi originalmente colocada online. E pode fazê-lo de diversas formas, seja em mensagens de correio electrónico, mensagens instantâneas, perfis diversos, páginas de Blogs (áudio, foto e vídeo), redes sociais e de partilha de ficheiros, etc. Este aspecto, aliado à persistência da informação acima referida, tem dado origem a inúmeros casos preocupantes ao nível da segurança e do bem-estar de crianças, jovens e até de adultos.
Atesta que as audiências são invisíveis e que na rua, num centro comercial, num jardim, num café, etc., aquilo a que a investigadora Aanah Boyd rotula de ambientes não mediados, onde podemos sempre olhar à nossa volta para termos uma ideia sobre quem poderá ver ou ouvir o que vamos fazer ou dizer. Em função disso podemos sempre ajustar o que vamos dizer ou fazer. Por exemplo, falar com um volume de voz mais baixo para que os outros não nos oiçam ou fazer algo mais discretamente para que os outros não se apercebam do que vamos fazer. Resumindo, compreendendo o contexto do local em que nos encontramos e as reacções previsíveis das pessoas que aí se encontram, tomamos uma decisão sobre o que é ou não é apropriado dizer. Todavia, num site, num fórum, num Blog, num Photoblog ou num site de uma das muitas redes sociais existentes, nesses ambientes mediados, na terminologia de Boyd, não temos maneira de proceder da mesma forma.
Não temos hipóteses de saber quem nos poderá ver ou ouvir. Nunca sabemos com quem estamos a partilhar a informação. Mesmo que o façamos através de uma página privada, nunca ficaremos a saber de facto o que outros poderão fazer. Não apenas hoje, mas amanhã ou daqui a 10 anos. Não só porque não podemos controlar quem nos poderá estar a ver e ouvir no momento, mas também no futuro, o que está intimamente relacionado com os outros dois conceitos referidos apresentados pela investigadora: persistência e pesquisa sem limite.
Quais são então as diferenças entre estes dois mundos paralelos? Praticamente nenhumas; diferem nas formas mas não no conteúdo que é imutável tanto na vida real como na vida virtual. Aliás as duas completam-se quase na perfeição das coisas já por si imperfeitas e, se assim não fosse convenhamos, o mundo seria uma coisa insalubre, uma espécie de jardim babilónico no que ele teve de confuso, maravilhoso e grandiosidade e que veio a ser destruído pensa-se porque excedia a normalidade da época.
O Barbosa não sabe nada disto, nunca se preocupou com o universo onde nasceu e viveu até agora comportamento de alheação comum à maioria dos mortais que nascem, vivem e morrem sem saber quem foram, alguma coisa acerca de onde viveram e quais as referências da sua proveniência, mas e apesar disso, inconscientemente, encaixa como uma luva nos protótipos do estudo acima referidos. Tem um perfil completo onde diz ao mundo do Facebook que é engenheiro mecânico, vive no Porto e é solteiro a par de mais informação pessoal, o lugar onde nasceu e quando.
No canto superior direito do ecrã aparece uma foto supostamente do Barbosa aparentando boa figura rondando os quarenta anos de idade. Deve ter sido retirada de uma base de dados das muitas ao dispor de todos na internet. Somos uma imagem reflectida no espelho e quando não gostamos dela não gostamos de ninguém.
Quem o conhece pessoalmente sabe que todos estes dados estão viciados, nunca foi engenheiro e sempre se lhe conheceu a profissão de picheleiro numa empresa de Braga, cidade onde nasceu há cerca de sessenta anos e onde vive com a mulher e um filho considerado deficiente mental porque o seu cérebro não atinge os mínimos rendimentos padronizados e, por razões da imperfeita mecânica do mesmo, não permite o controlo absoluto sobre os músculos do corpo. Quer dizer, o Carlos pensa, reage à alegria, à dor, e a todas as emoções que o ser humano experimenta, executa com ajuda as principais funções fisiológicas, vê perfeitamente, ouve, respira como qualquer um de nós mas os seus miolos não dominam a mecânica muscular que o poderia libertar da inactividade do leito. Manifesta sentimentos porque dentro do peito tem um coração perfeito. A designação prognosticada pelos especialistas da medicina neurológica que ainda não conseguem decifrar as muitas encruzilhadas da mente, deficiente mental, corresponde a uma paralisia cerebral. O mundo abarrota de pessoas com características semelhantes que todavia não as impede de circularem por aí mas constituem limitações de toda a ordem e causam obstáculos inultrapassáveis a quem sofre desses sintomas.
O Barbosa iniciou-se no campo da informática na óptica do utilizador no programa Novas Oportunidades que teve lugar nas instalações de uma associação do seu bairro. Não lhe foi difícil assimilar informação de como manejar o aparelho, um picheleiro experimentado como ele, habituado a lidar com canos ligados uns aos outros com ramificações por todos os lados de uma qualquer habitação, representam mais ou menos o esquema de funcionamento do bicho que lhe puseram à frente. Foi só uma questão de traduzir a linguagem informática para o manual de pichelaria que guardava num ficheiro dentro da sua cabeça há mais de quarenta anos. Num ápice aprendeu tudo o que havia para aprender nas aulas limitadas a deixar os alunos com algumas luzes sobre tão complicada matéria.
A Internet fascinou-o desde a primeira hora e, quando o monitor do curso de informática se aproximava dele, surpreendia-se com a agilidade como que o site do facebook desaparecia do ecrã para dar lugar à inocente página do motor de busca do Google.
O curso terminou e o Barbosa já tem o nono ano completo e recebeu o diploma das mãos do primeiro-ministro numa cerimónia pública e quem consegue tal proeza pode considerar-se licenciado em engenharia mecânica ou até desejar ser tratado por doutor, pensou.
Navega na Web como um verdadeiro profissional. A sua vida mudou completamente e para melhor, acabaram as negas em público, rejeições de mulheres e de amigos, dificuldades em conseguir relações no meio onde vive, ao contrário de até aqui, tem agora centenas de amigos e amigas espalhados por todos os cantos do país, vê as suas fotografias quase sempre em poses sugestivas maquilhadas em Photoshop disponível na Net, atingiu a idade da reforma e passa a maior parte dos dias agarrado à máquina que por sua expressa vontade só apresenta a página do site mais concorrido do mundo.
Tem o computador fixo instalado na garagem sobre a banca onde antes existia um torno mecânico manual e diversas ferramentas exigidas pela sua profissão e é de lá que emite sinais para o mundo, aldrabices fabricadas na mesa situada ao lado do Renault Clio de 1986 que ali jaz paralisado pela idade. Tem vinte e três namoradas virtuais, quase todas de idade avançada mas que como ele se apresentam com fotografias de quando eram ainda meio jovens e mais atraentes e, com pessoas assim, troca na janela do chat centenas de patranhas por dia à mistura com algumas verdades. É um homem plenamente realizado, mais um a engrossar a imensa fileira de seres que fingem a vida e que evitam a realidade onde sempre foram marginalizados, ofendidos, magoados e incompreendidos.
Apesar de ser já idoso, encarna na perfeição o protótipo do homem moderno avesso a complicações, indisposto a enfrentar o mundo real, ausente dos problemas da sociedade, solto de correntes que o possam prender a alguém ou a alguma coisa, sem compromissos duradoiros, desprovido de carácter, em suma, um robot, um homem virtual igual à rede complexa e fria onde navega, apenas um fantasma sem rosto que vive uma farsa e engana os seus parceiros, uma mentira pública autorizada por falta de regulamentação de lei mas que apesar disso tudo consegue ser quase feliz no interior de tanta infelicidade.
A janelinha do chat tem uma luz verde a piscar, alguém quer falar com o Barbosa, dizer-lhe boa tarde, comunicar para não se sentir isolado no mundo na expectativa de se considerar ouvido algures por aí, porque o que interessa é a pessoa julgar-se viva, ter a percepção de que a sua solidão não passa de um engano e de que se quiser, pode participar no debate que não tem nem precisa de moderador. Ninguém responderá de momento a essa chamada vinda da blogosfera, a mulher que chama sentir-se-á mais uma vez rejeitada, são muitos os que se enchem de certas amizades virtuais e, na fragilidade em que se encontra, pensará que até o Barbosa se fartou da sua afeição. Não sabe nem tem meios ao dispor para saber que ele se ausentou para o andar de cima da habitação onde a realidade mora deitada numa cama onde o filho vegeta há quase vinte anos. Que foi vê-lo sorrir, dar-lhe a sua mão que ele aperta com força, fazer-lhe carícias, cobri-lo de beijos e dizer-lhe pela centésima vez no dia de hoje, que o ama com todas as forças do seu coração, que nunca o abandonará e seja lá a realidade virtual o que for, mentira ou verdade, doce e divertida, amarga e dolorosa ele reservou todo o seu afecto para o filho enclausurado e cumprirá com o seu dever de pai até ao fim.
A barra continua a piscar na janela do chat no lado direito ao fundo da página do facebook, o senhor engenheiro mecânico demora a responder e, do outro lado da vida virtual alguém carente começa a sentir as mágoas do abandono.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Ainda havemos de tomar o café juntos


Naquelas noites em que deitados lado a lado na areia da praia contemplávamos milhares de estrelas a brilhar no firmamento celeste, tudo indicava que a nossa relação de amizade era perfeita e que nunca mais iria acabar. Nesse tempo estávamos ali livres de todos os preconceitos que a sociedade cultiva, despreocupados a falar de coisas simples, a olhar o céu abóbada gigante que à noite produzia cenários encantadores dignos do reparo de todas as criaturas da terra e a permitir que a escuridão fizesse os seus milagres. Eras uma rapariga linda, tinhas formas desenhadas a cinzel de escultor, feições suaves a decorar-te o rosto que parecia ostentar um sorriso permanente e eu via em ti um bibelô delicado feito com a mais fina porcelana chinesa a ornamentar uma mobília de século, um sopro de brisa de verão, um interlocutor que embora presente nunca interferiu nos devaneios da minha mente apostada na contemplação de coisas estranhas que não compreendia numa parceria de confiança que surgiu do nada. Se uma estrela te parecia brilhar um pouco mais que as outras, tu apontavas com um dedo para ela e dizias:
-– Até mesmo no firmamento há diferenças, repara que aquela estrela acolá resplendece muito mais que todas as que a rodeiam. Era verdade, o astro parecia ter dimensões desproporcionadas às suas companheiras, cintilava muito mais e parecia feito de fogo.
Eu ficava em silêncio um bom bocado e acabava por te responder recorrendo aos conhecimentos elementares que tinha apreendido nas aulas de astronomia na universidade:
-– É simples Mariana, é por que ela está muito mais próxima da terra que as outras.
Não retorquias, aceitavas a minha resposta por queporque eu significava para ti um mestre, um homem que sabia tudo acerca de tudo e, se muitas vezes não me interrogavas sobre outras realidades que te confundiam, era por queporque tinhas medo de ouvir a verdade e preferias ficar a conjecturar centenas de opções todas premeditadas, julgo eu, para te satisfazer o ego.
A nossa ligação não tinha nada a ver com amor nem com paixão, não dissemos as palavras banais e comuns a todos os que se enroscam num canto qualquer a curtir o fascínio e o ardor que provoca a aproximação de dois corpos apaixonados, era por assim dizer uma relação entre irmãos, sã e sem complexos de parte a parte, tu gostavas de vir para aqui à noite olhar para o céu e eu também gostava, aliás foi aqui que nos conhecemos, lembras-te? Isso já foi há muito tempo, todos os dias ao fim da tarde depois de cumpridas as nossas tarefas profissionais, sem que tivéssemos combinado nada antecipadamente, era neste sitiosítio que nós nos reuníamos. Às vezes tu chegavas uns minutos antes de mim e outras vezes era eu quem antecipava a hora do encontro pensando que já aqui estarias à minha espera não te querendo fazer esperar muito tempo.
Foi assim durante alguns anos, uma espécie de peregrinação que fazíamos os dois a um local à beira mar, coberto por um céu estrelado e onde se ouvia o som das ondas a varrer a praia.
Um dia deixaste de aparecer, em princípio pensei que estivesses doente, mas à medida que o tempo passava e tu não aparecias, percebi que me tinhas deixado para sempre. Nada que me surpreendesse, já não seria a primeira vez que me abandonavam apenas porque não correspondi às expectativas de sólido futuro depositadas em mim. Como outras, tinhas em mente um ninho, um projecto de vida seguro, a garantia de que independentemente de quem quer que fosse o homem que levarias ao altar, todas as tuas preocupações acabariam nesse dia. Não acabam Mariana, é um engano colossal porque se uma relação for baseada apenas nesses pressupostos, terá poucas probabilidades de sobreviver. Olha à tua volta, toma consciência dos dramas que acontecem todos os dias só porque as pessoas andaram mais interessadas em fazer negócios lucrativos do que em vez de atender aos alertas dos seus corações.
Lembro-me da última vez em que estivemos reunidos, tu usavas aquele vestido de cor pérola que parecia de seda e, quando encolhias as pernas, ele escorregava para a cinta e eu conseguia ver as tuas coxas morenas e os teus joelhos nervosos a baterem um no outro. Nessa altura se eu te tivesse colocado a mão na pele e fosse subindo pela sua macieza, tu deixarias de poder bater com os joelhos um no outro. Não sei se propositadamente ou não, desapertaste os dois primeiros botões no peito e, os teus seios redondos ficaram à mostra com os bicos apontados para o céu a contarem as estrelas como nós. Confesso que me incitei com essas visões mas foi por poucos minutos, a determinada altura tinha começado a pensar que tu tinhas uma esperança secreta de que eu acabaria por sucumbir aos teus encantos, notou-se mais quando viraste a cara para mim e, de olhos semi – -cerrados, com o peito a arfar de uma maneira estranha, ficaste uns segundos à espera que eu te desse um beijo na boca carnuda e cor-de-rosa. Não dei, antevi que todo esse teu enfeitar não passava de um ataque quase irrecusável à minha liberdade. Insististe no namoro por mais alguns minutos, até que desististe, dizendo-me:
-– João Paulo, por este andar ainda havemos de tomar o café, juntos.
Fiquei calado, não sabia o que querias dizer com “este andar” e, até ao dia de hoje não respondi à tua observação nem o podia fazer sem ter de te magoar. Não te disse mas gosto de tomar o café no silêncio matinal da minha cozinha desordenada, com a louça do almoço e do jantar do dia anterior empilhada em cima da banca por que eu vou recorrendo ao armário e enquanto houver lá dentro peças lavadas, não reciclo a usada, faço-o quando a mão procura um prato ou copo e não encontra nada dentro do louceiro. Depois também irias ver peças de roupa suja espalhadas por todo o lado, a cama por fazer, livros desarrumados no chão, o urso de peluche que conservo desde criancinha e que dorme aos meus pés todas as noites, tudo coisa de que tu não irias gostar nada.
Já passaram quatro anos desde essa última vez, imagino-te casada com um sujeito qualquer que aceitou tomar o café contigo depois de te ver as coxas morenas e os seios a apontar para as estrelas e que provavelmente agora adormece no sofá com a televisão ligada enquanto tu lavas ou passas a ferro as tuas roupas e as dele ou ponteias as meias que o teu homem rompe nos tornozelos por ser desajeitado no andar. Já não deves poder sair à noite e vir aqui apreciar as estrelas deitada de barriga para o ar na areia, tens de ir ao supermercado buscar mercadorias para abastecer a despensa enquanto ele vai abrindo latas de cerveja e prepara as tarefas do dia seguinte no computador. Durante o dia deves andar ocupada, não te sobra tempo para tratares de ti e apareceres ao mundo com o ar descontraído e gracioso que eu te conheci, foste apanhada nas malhas da sociedade moderna e quer queiras quer não, tens de cuidar dos teus afazeres domésticos que te transformam numa coisa parecida com uma máquina de servir hambúrgueres. Aposto que já nem usas o vestido de cor pérola que parece de seda e que te assentava no corpo como uma luva; e se o vestires, já não o deixas escorregar nas pernas até cá acima à cintura descobrindo as tuas coxas morenas nem os teus joelhos batem um contra o outro, nervosos. Já não deves ter interesse em mostrar a tua fantástica anatomia corporal por queporque ninguém como eu te admiraria como se fosses uma magnífica obra de arte sem te cobiçar as formas descaradamente.
Quantos anos tens agora Mariana, deves andar nos quarenta, tenho ideia que me disseste nesse tempo que tinhas trinta cinco ou trinta e seis. Não é muito, eu tenho um pouco mais e ainda não senti necessidade de tomar o café junto com ninguém. Talvez eu seja uma pessoa medrosa, insegura quanto a ter de partilhar a vida com uma mulher. Se calhar já a repartia contigo nos momentos em que, deitados na areia lado a lado, falávamos de coisas simples. Sinceramente não sei, o que te posso dizer neste momento é que sinto a tua falta aqui ao pé de mim.
Nuncatrocámos os números dos nossos telemóveis, não era preciso, a gente via-se todas as noites mas agora não te posso ligar a perguntar como vai a tua vida e tu também não me podes telefonar a perguntar se o velhote dos cachorros quentes ainda passa por aqui à meia-noite e se o bar da praia continua a estar aberto até às duas da manhã.
Sabes por porque me lembrei de ti hoje, Mariana?
Como sempre acontece estou aqui deitado na praia a olhar para as estrelas e aquela que tu dizias brilhar muito mais que as outras todas, não pára de olhar para mim e de dizer:
-– Ainda havemos de tomar o café, juntos!

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A Louca da Praia

A taberna seria o centro das atenções dos mais idosos, a sala de visitas, o espaço de tertúlia, de encontros diários de quem já perdeu os hábitos de trabalho, o templo onde se reza a deuses desconhecidos. Tinha uma espécie de esplanada no passeio com apenas uma mesa de chapa e duas cadeiras de plástico branco e, no lado direito, pousado no chão, um pequeno fogareiro pronto a grelhar peixe ia ardendo lentamente e, encostado à ombreira da porta de alumínio prateado, estava uma caixa de sardinhas com alguns restos lá dentro namorados à distância por dois gatos.
Numa das cadeiras coçadas pelo tempo estava sentado um homem de idade avançada que segurava na mão direita um copo com vinho tinto e atravessado nos dedos da outra mão pousada sobre o tampo da mesa, tinha um cigarro a fumegar.
Sentei-me na cadeira disponível não sem antes pedir licença ao sujeito com aspecto de pescador antigo.
O tasco ficava em frente à praia numa rua movimentada por gente que ia e vinha em direcção da lota onde todos os dias se transacciona o pescado capturado em alto mar. O cheiro característico das zonas piscatórias, impregnava a atmosfera misturado com o da maresia que chegava activo ao meu nariz e ao das pessoas que passavam transportado por uma leve brisa. O mar a uma distância curta sobrevoado por centenas de gaivotas aos gritos, era um colosso adormecido com ondas melancólicas que vinham desmaiar sem pressa na areia deserta.
Os meus olhos perscrutavam o horizonte de água limitado por uma delicada neblina que me impedia de ver até ao infinito e, como objectiva de máquina de filmar iam-me transmitido informações diversas, barcos ao longe, traineiras a entrar na barra, navios ao largo fundeados à espera de porto, tudo movimentos que o meu cérebro arquivava na rigidez de um disco feito de matéria orgânica. Subitamente repararam num vulto negro espetado na areia muito próximo do sítio onde o mar rebenta. Ao longe, parecia-me a quilha de uma embarcação à espera de se fazer ao mar ou destroço de naufrágio que o oceano expulsou para terra. De repente moveu-se, deixou a posição hirta em que estava para se sentar sobre o tapete húmido e então pude ver que se tratava de uma mulher já de uma certa idade toda vestida de negro.
A indiscrição tomou conta de mim e impelido por essa estranha sensação de curiosidade, decidi perguntar ao velho sentado na mesa ao meu lado quem era aquela pessoa e o que fazia ali:
-É uma louca, há sessenta e quatro anos que vem todos os dias sentar-se naquele lugar, fica lá um bocado de tempo e depois vai-se embora.
Sem esperar qualquer comentário da minha parte continuou:
-É uma longa história, se o senhor não tiver pressa eu conto-lhe.
-Não tenho pressa nenhuma, respondi, até gostava de ouvir essa narrativa se o senhor não se importar de me contar, confirmei.
Pegou no copo do vinho já vazio e entrou na taberna para regressar um minuto depois com ele a transbordar de cheio. Bebeu um trago longo da bebida que pode destruir o corpo mas simultaneamente anestesiar a alma. Os olhos do velho fundiram-se mais com a agrestia do rosto, mal se viam enfiados a reluzir nos dois buracos ornamentados com rugas e sobrancelhas espessas. Eram dois pequeninos pontos luminosos a recuar no tempo, a espelhar acontecimentos arquivados na memória sabe-se lá desde quando. Como um narrador de espantosas histórias, começou a contar:
- Aconteceu, já lá vão sessenta e quatro anos, faz agora no dia um de Dezembro. O dia nasceu meio encoberto, não chovia nem fazia grande vento, as traineiras regressavam com o peixe mas a pescaria não tinha sido abundante. Por volta das dez horas da manhã entrou por ali dentro um barco carregado de sardinhas. Os mestres das outras embarcações perante tão afortunada captura, decidiram chamar as suas tripulações e à tarde fizeram-se ao mar mais uma vez. Eram cento e três barcos a rumar ao sul em direcção ao mar da Figueira da Foz. Ainda não tinham passado muitas horas quando o tempo mudou inesperadamente, o vento acelerou, as ondas transformara-se em montanhas cavando precipícios de mais de dez metros de profundidade onde as traineiras entravam e saiam numa luta de morte. Sem que ninguém contasse o vento rodou para noroeste transformando-se num ciclone com rajadas tão fortes que despedaçavam os mastros dos navios e a atmosfera começou a ficar gelada. Negras nuvens formavam-se no inferno e despejavam chuva em cima das embarcações que com os motores a toda a força procuravam um porto de abrigo. A noite desceu sobre o mar e sobre a terra e no meio das trevas mais de uma centena e meia de homens lutava desesperadamente contra a fúria dos elementos e na praia nova começaram a ouvir-se rumores misturados com soluços, pessoas a correr de um lado para o outro desorientadas e aflitas.
Calou-se por momentos, passou a mão engelhada pela testa suada, pegou no copo e bebeu mais um trago de vinho. Olhei-o com mais atenção nesse momento de pausa, tinha um rosto cavado por profundas rugas que começavam na testa e acabavam no pescoço que parecia uma folha de papel amarrotada. Na cabeça um boné de pala assegurava conforto a um crânio sem cabelos. Que idade teria, oitenta, talvez um pouco mais a julgar pelo rosto enrugado e pelas mãos de dedos estragados pela artrose. Era um pescador sem dúvida nenhuma a figura que estava sentada a meu lado, via-se nos seus olhos cor de mar que reflectiam vagas, turbilhões de espuma e azuis permanentes.
Pousou o copo sobre o tampo da mesa, com as costas da mão limpou os beiços e continuou:
- Acolá em baixo no molhe sul, as famílias daqueles desgraçados apinhavam-se na esperança de verem entrar as traineiras que tinham levado os seus maridos, os seus filhos, os seus avós e muitos amigos para a faina que prometia pão. Tanta angústia e tanto desespero em cima daquelas pedras lambidas pelo mar, nunca se viram até hoje.
Em determinado momento começaram a ver-se ao longe as luzes de navegação dos barcos, alguns tinham encontrado o caminho para casa e entraram salvos no porto.
Havia tantos gritos ali na praia quando chegou a notícia de que quatro traineiras tinham naufragado e que noutras os homens tinham sido arrastados pelas vagas medonhas de um mar enfurecido. Confirmou-se a morte de cento e cinquenta pescadores e de dois desaparecidos. Era gente daqui de Matosinhos, de Espinho, da Murtosa, da Póvoa de Varzim e das Caxinas de Vila do Conde.
Mais uma pausa e o resto do vinho escorregou a ferver pela sua garganta seca. Outra vez as costas da mão a passar nos lábios, mais um cigarro a sair do maço engelhado e o fumo a esmurrar a pala do boné tentando evoluir no espaço.
- Dois nunca apareceram, um deles era o marido dela. Deixou-a com três filhos pequenos nos braços, criou-os como pode mas todos os dias enlouquecia um bocadinho até se tornar naquela desgraça que o senhor está ver. Se ao menos ela tivesse o corpo do seu homem enterrado numa campa do cemitério, se pudesse ir lá de vez em quando rezar e levar-lhe flores, as coisas poderia não ter chegado a este ponto. Para a gente o mar é quem manda meu amigo, tanto dá como tira e dessa vez tirou demais. Comovo-me sempre quando conto esta história, dantes até me vinham as lágrimas aos olhos, agora não, o meu coração transformou-se numa pedra, às vezes ainda tenta voltar aos tempos em que se emocionava até com o sorriso de uma criança mas desanima depressa, falta-lhe a pureza de quando era novo, durante estes anos todos a sofrer constantes desilusões, ofensas de muitas pessoas e a perda de um filho que o mar me roubou, endureceu e deixou-se envelhecer como eu.
O copo estava vazio, ele fez o gesto de o levar à boca que tremia mas desistiu ao verificar que não tinha mais vinho. Levantei-me, peguei na vasilha e fui dentro da taberna enchê-la mais uma vez do líquido que pode matar o corpo mas que anestesia a alma.
Deixei que o silêncio que se fez a seguir fizesse a sua cura, senti que o velho pescador estava perturbado e muito longe da insensibilidade que me disse trazer dentro do peito. Os homens do mar são duros como as rochas que só um oceano desfaz, há uma altivez nas suas personalidades que sem ser prepotente, reflecte o cunho do seu arquitecto. Foi o mar quem os fez à sua semelhança, foi ele que os transformou em coragem e dureza, foi também ele que lhes legou parte de si próprio, generosidade, solidariedade e valentia sem limites.
Precisava de ver ao perto aquela mulher sentada na areia, tentando antecipar uma possível rejeição perante um estranho e assim evitar dissabores, perguntei ao meu amigo:
-Acha que se fosse à beira dela falaria comigo?
- Falar não fala muito, as palavras já lhe morreram nos olhos mas de certeza que lhe vai perguntar se viu o homem dela por aí!
Fui ao areal, para não parecer tão óbvio dei uma volta mais longa e vim com calma como quem se passeia à beira mar. Quando estava a cerca de dois metros dela, pode ver um rosto transfigurado, encorrilhado como uma folha de papel calcada por centenas de botas de batalhão militar e os cabelos ralos e brancos apareciam-lhe a espreitar por debaixo do lenço negro que lhe cobria a cabeça. Olhou para mim com uns olhos a reluzir de vivos e onde a luz da esperança possivelmente ainda tinha morada e, sem que eu pudesse dizer nada perguntou.
- O senhor não viu por aí o meu homem? É alto, moreno, bonito e tem um bigode parecido com o seu um bocadinho mais farfalhudo.
-Não, não vi ninguém que corresponda à sua descrição minha senhora!
- Ninguém o viu, ninguém sabe dele, ninguém me diz onde ele está, murmurou como se falasse consigo própria.
As ondas vinham molhar-lhe os pés nus, rendilhados de espuma carregada de salitre ou lágrimas salgadas de um mostro que não sabe controlar a sua força?
Alguém viu por aí o homem desta mulher vestida de negro? É alto, moreno, bonito e usa um bigode parecido com o meu um bocadinho mais farfalhudo.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Tempo Perdido

Antes os cães e os gatos entravam nos tascos e nos cafés da minha aldeia. As portas estavam escancaradas, entravam todos, pessoas, gatos e cães menos as mulheres.
Os tascos eram divididos em duas partes, numa as pipas, os barris, as canecas, o mosqueiro em cima do balcão que guardava as pataniscas, as sardinhas e os peixinhos do rio fritos, na outra, mercearias diversas, quinquilharias, carboneto para gasómetros, fardos de bacalhau e tecidos, era o compartimento onde as mulheres estavam autorizadas a entrar apesar de não haver qualquer aviso a discriminar os dois sexos, era por respeito dizia o meu pai. A divisão não tinha porta, os homens viam as mulheres, as mulheres podiam ver os homens e, de vez enquanto a caneca do vinho tinto saltava de um compartimento para o outro num ritual sem falas, consentido por ambos, demonstrador de afectos.
Os animais enroscavam-se debaixo das mesas a dormitar à espera de restos. Antes havia poucos restos, não sobejava nada do molete que trazia duas sardinhas entrincheiradas lá dentro, comia-se tudo, até as cabeças esturricadas no tacho de fritar, eram saboreadas até ao último estalido nos dentes.
Antes os animais falavam com as pessoas, era raro o dia em que não houvesse debates e discussões acesas sobre isto e sobre aquilo e que acabavam sempre regadas com vinho nos tascos sempre num ambiente de alegria e fraternidade. Conta-se, não se sabe se é fábula ou acontecimento verdadeiro por que os nossos antepassados eram useiros e vezeiros a misturar as duas hipóteses, que uma vez um porco entrou na taberna do ti Narciso no centro do lugar e disse que estava farto de ser porco e que gostava de ser presidente de uma coisa qualquer. Ninguém dos presentes no estabelecimento, pessoas e animais lhe respondeu, isso de ser presidente de uma coisa qualquer era assunto que não interessava muito aos humanos nem aos animais. Os presidentes das juntas, das câmaras e até das repúblicas passando pelos chefes de governos da época e em certa medida os futuros, já nasciam com inclinação para desempenhar o cargo, não eram eleitos pelas pessoas nem pelos cães, nem mesmo pelos gatos, eram nomeados conforme a procedência familiar ou pelos bons serviços prestados ao regime estabelecido. Ninguém se importava com isso para além dos cantores, pensadores, dos poetas e dos escritores que arriscavam o coiro a protestar contra eles e contra a situação contrária à democracia.
Os animais sempre dispuseram de língua própria e independente e formas de governação autónomas, até dá a ideia de que os humanos copiaram por eles, são comandos semelhantes, tal como entre nós, os mais fortes, os mais espertos, os mais imbecis e os que dormem enquanto os outros caçam e depois escolhem a maior e melhor porção do produto da caça e até as melhores fêmeas para brincar ou procriar, são designados altas individualidades se forem humanos, chefes da matilha se forem cães, da vara se forem porcos, do rebanho se forem cabras ou ovelhas, alcateia se forem lobos e até colmeia se forem abelhas estas com a particularidade de serem monárquicas pois não dispensam uma rainha que engordam com todos os cuidados e obedientes aceitam unanimemente o seu comando faz-de-conta. Claro que a rainha ou mestra, não manda nada, limita-se a pôr ovos multiplicadores do enxame perpetuando a espécie. As abelhas não querem nada com as republicas porque a qualquer momento podem destruir a chefe e criar uma nova e depois debandar do grupo formando nova colmeia, pois de tão obesa a mestra fica sem mobilidade e incapaz de se defender.
Há muitas semelhanças entre os bichos e as pessoas, a grande divergência é de que os humanos adoptaram formas e tipos de comunicação complicados ao passo que o idioma animal é universal. Um cão português fala a mesma língua de um cão americano, chinês ou de qualquer outro país, os gatos exprime-se na mesma linguagem de todos os gatos espalhados pelo mundo, isto só para exemplo pois é do conhecimento público em geral esta democrática forma de comunicar adoptada pelos irracionais.
Os animais não vivem num estado de direito situação jurídica criada e utilizada pelas criaturas mais fortes para oprimir as mais fracas que, contrariamente ao espírito consagrado na lei, nunca têm direito a nada. Os cães, os porcos, as cabras, os gatos e todos os bichos que convivem no planeta, não obedecem a este estatuto, são livres como deviam ser todas as criaturas da terra.
Antes todos dormitavam na taberna; os cães enroscados debaixo das mesas, os gatos empoleirados na prateleira dos copos e das canecas e as pessoas debruçadas sobre o tampo de um barril ou sentados de cabeça a cair sobre o peito, ressonavam baixinho. Ao fim da tarde tocava-se viola braguesa e começavam os animados cantares ao desafio. Eram quadras inventadas no momento, rimas que reflectiam sentimentos das angustiadas vidas de todo um povo. Os cantadores, barqueiros, mineiros e pescadores, desafiavam-se ao longo dos versos e, numa atmosfera carregada de vapores de vinho, pataniscas e iscas de bacalhau só o som arrastado e melodioso do instrumento e as vozes esganiçadas dos cantadores, quebravam o silêncio do sagrado templo.
Era um mundo feliz onde se ficava a conversar, a cantar, a beber, a escarafunchar os dentes e a falar com os animais a tarde toda e só se saía de lá para urinar ou quando as portas se fechavam à noitinha. Antes podia-se verter águas em qualquer lado, no muro da casa da Sobreira, na esquina da loja do Viana e até atrás da sacristia da capela.
Antes não havia contentores de plástico com lixo dentro, queimava-se tudo na horta e até se podia arriar o calhau no meio de um campo ou nas bordas por baixo das ramadas. Antes os camiões da câmara não vinham buscar as imundices à minha aldeia para levar outra vez para a minha aldeia.
Antes havia peixeiras de canastra à cabeça carregada de sardinhas ou peixinhos do rio e os gatos e os cães corriam pelos caminhos atrás delas. De vez em quando aparecia um peixe moído e era deitado aos gatos e aos cães que repartiam entre si o produto da longa espera.
Agora há cães e gatos como dantes mas os peixinhos do rio acabaram e as sardinhas que já não se pode garantir serem do nosso mar, viajam na carrinha do Zé Martelo misturadas com peixes criados a farelos e os gatos e os cães não correm atrás da carripana pela aldeia toda. Esperam no sítio onde o Zé pára para aviar os fregueses e não se pode mijar nas paredes. O Zé Martelo é amigo dos gatos e dos cães, tem bom interior e dá-lhes peixes todos os dias.
Agora há uma casa de banho na minha aldeia mas ninguém vai lá urinar nem arriar o calhau porque dizem que cheira a comida sintética de passarinhos, vão aos cafés empestar aquela coisa toda e desenham corações trespassados por setas e escrevem versos nas paredes da retrete.
Uma vez o ti Vicente estava a urinar virado para o rio no porto do Remoinho e passou um barco carregado com pipas. O mestre da embarcação chamou-lhe porco e o ti Vicente peidou-se para ele com a tringalha na mão.
Antes podia-se peidar em todo o lado, mijar e até arriar o calhau, agora não. O ilustre e entendido médico do Porto que morava na minha aldeia, dizia muitas vezes: Reter um peido é abrir o caminho a um ataque cardíaco! Ele próprio lançava umas farpas que se ouviam do outro lado do rio. Há pessoas assim, parecem autênticas botijas de gáz. Dados a imperfeita nutrição, cultivam e alimentam o estado de flatulência permanente e podem descarregar gazes a qualquer momento. O próprio planeta terra expulsa os seus gases acumulados através de erupções vulcânicas e outras formas semelhantes, se somos o produto daquilo que comemos, simples átomos alimentados pelas fermentações orgânicas que o solo produz, é pois natural padecermos dos mesmos excessos vitamínicos das matérias que consumimos.
Agora há contentores de plástico com letras nos tampos a dizer que são limpos e que não se pode urinar neles, só os cães e os gatos.
Agora os camiões da câmara vêem buscar o esterco à minha terra porque um senhor da câmara mandou e vão deitá-lo outra vez na minha aldeia por que o senhor que estava na câmara disse que o lixo todo do concelho e dos concelhos vizinhos, devia ser depositado em cima do povo da minha aldeia, que um aterro sanitário seria como se uma dádiva caída do céu para quem convivia há mais de trinta anos com uma lixeira a céu aberto.
- Depois até se pode fazer lá um parque de merendas, imaginem como será tudo verde e arborizado e as famílias a conviver umas com as outras aos fins-de-semana. Um jardim na perspectiva do homem politico, um horto semeado com delicadas plantas e flores que ninguém quer perto de sua casa. Há afeições duradoiras, gratidões que se pagam com veneno e ainda hoje passados onze anos após a inauguração do monstro e ao contrário do que havia sido prometido, o depósito de trampas não encerrou, cresceu como um desalmado e as pessoas da minha aldeia continuam à espera dos camiões cisterna carregados de perfume francês para aromatizar o sitio.
Uma vez as pessoas da minha terra criaram uma banda filarmónica e uma casa para a cultura das pessoas da minha terra. Outra vez as pessoas da minha aldeia construíram um ramal de água ao domicílio e iluminaram a terra toda com luz pública. Uma vez as pessoas da minha terra criaram um campo para jogar bola. Uma vez as pessoas da minha aldeia fizeram uma capela nova. Outra vez algumas pessoas da minha terra urinaram nas paredes da casa de cultura da minha aldeia. Outra vez algumas pessoas da minha aldeia mijaram no muro do campo da bola e arriaram o calhau lá dentro. Outra vez algumas pessoas da minha aldeia mijaram na parede da capela nova atrás da sacristia.
Uma vez apareceu um político à minha terra que disse que era doutor e algumas pessoas da minha terra acreditaram nele e deixaram de urinar nas paredes e de arriar o calhau nos campos e passaram a mijar em cima umas das outras porque o senhor doutor que veio de fora disse numa reunião com algumas pessoas da minha aldeia que o melhor era elas mijarem umas em cima das outras.
Agastado ele disse:
-Amanhã vou à feira comprar um cabo novo para a foucinha. Amanhã se me apetecer vou urinar no muro da casa do Viana e arriar o calhau no campo da bola mas não é por que o senhor doutor que veio de fora mandou, é por que se o fizer estarei a pensar nele e em todos os que quiseram dominar este povo que sabe remar, pescar, ler e fazer coisas novas.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Estórias aos Quadradinhos

Quando há alguns milhares de anos nascemos neste recanto do mundo, julgava-mos que iríamos ser muito felizes por toda a eternidade.
Nos primeiros tempos da nossa já longa existência, eu olhava para ti, via-te crescer lentamente e tu do outro lado do rio, olhavas para mim e, presumivelmente, deverias sentir o que eu sentia.
Passamos muitos anos, muitos dias e muitas noites a contemplar-nos um ao outro remetidos ao silêncio das coisas eternas e, nos dias em que a neblina te cobria totalmente, eu ficava só a pressentir-te desse lado a viver a angústia de quem perdeu um amigo. A manhã despontava e o lençol de algodão que te cobria, subia a serra e tu reaparecias a brilhar sob os matinais raios do sol.
Juntos vimos acontecer tanta coisa, pessoas nascerem e morrerem, crianças que se transformaram em adultos, vimos chegar outros que te desventraram as entranhas e retiraram de lá o minério cujo produto da venda, nunca foi usado em teu beneficio. Deixaram os teus e os meus filhos doentes, usaram a força da sua juventude em trabalhos forçados e a até desumanos para extraírem da terra o carvão que alimentava a indústria, os transportes e as caldeiras do aquecimento citadino enquanto o nosso povo, sofria as agruras do frio nos prolongados Invernos. Tinhas no interior do teu corpo as minas do Pejão indústria que ao mesmo tempo que dava ocupação laboral ao povo, aniquilava toda a esperança de poderes enfrentar o mundo novo que se avizinhava. Ficaste como eu agarrado ao passado, a ver secarem todas as ideias de moderno progresso, impedidas pela empresa de que todos dependiam e que como impiedoso opressor comandava tudo e quase todos não permitindo a instalação de outras fábricas no extenso raio que dominava. A mão-de-obra da região era dela, tudo o que atentasse contra esse privilégio era imediatamente abafado recorrendo a cooperações bem pagas vindas do poder instalado na capital do país. Dizem que foi a salvação destes povos que não dispunham de outras alternativas capazes de lhes assegurar sobrevivência mas e a par dessa realidade, obstruiu os caminhos que poderiam trazer novas dinâmicas, fechou as portas à esperança legítima, apanágio de todos os povos. Tudo poderia ter sido diferente não fora a continuidade da exploração da antracite minério poluidor responsável por centenas de mortes, presente envenenado, riqueza que reluziu por alguns anos e se desfez em nada.
Tanto passado, tanta história submersa nos rios que são nossos ou soterrada nas profundezas da terra agora vazia de riqueza, tantas mortes, tanta vergonha por terem consentido a fúria dos estrangeiros sedentos de abundâncias para si próprios, tanto orgulho nos povos resistentes e fazedores de esperança que viveram e vivem em nós. Tantos factos negativos que essas dinâmicas criaram e nos tornaram simples espectadores sentados na plateia do imenso teatro do mundo a testemunhar a inevitabilidade dos acontecimentos por que, nessa altura, nada poderíamos fazer para alterar a orientação à dramática história que se desenrolava em frente aos nossos olhos.
Lembras-te de quando éramos pequeninos e a mãe natureza nos colocou aos pés duas correntes de água cristalina e pura? A ti tocou-te o Arda, a mim a sorte ditou que fosse o rio Mau mas, para que os dois se sentissem protegidos, fez correr entre eles, o rio Douro imenso e então, a partir daí, tudo começou a ganhar forma.
Não falamos um com o outro durante este tempo todo e no entanto sabemos tudo o que se passa em cada uma das bandas do rio. Se o sino de Santa Eulália espalha badaladas no vento, fico a saber se vai haver missa, se morreu gente, se era homem ou mulher ou um anjinho cujo florir para a vida foi lancetado por efeito de doença, fome ou insuficiente nutrição.
Quando o sino da minha capela de S. João Baptista se faz ouvir desse lado, também tu tomas conhecimento das notícias mais urgentes e mais importantes. Se um foguete estoira sob o teu céu, ou escuto os sons de música difundida em potentes e amplificadas colunas, sei que estás em festa, que o teu povo rejubila de alegria e felicidade. Contigo acontece o mesmo quando os iguais sinais ecoam sobre o vale onde correm três rios.
Estamos frente a frente há milhares de anos e no entanto nunca nos consentiram um abraço que quebrasse este divórcio forçado onde o amor continua a ser a componente mais forte da separação. Bastava uma ponte que ligasse as duas margens do Douro para podermos enlaçar as mãos e seguir juntos até ao fim dos tempos. Os homens não permitem afectos, decidem sempre em seu próprio proveito sem atender às justas reivindicações dos povos e da salutar harmonia criada e abençoada pela natureza.
Como se não fosse suficiente a barreira do grande rio, separaram-nos quando decidiram dividir o país em distritos. Tu ficaste a pertencer a Aveiro e nem percebias patavina de ovos-moles nem tão pouco te dedicavam à recolha de moliços com barcos de borda baixa e de proa e ré elevadas, coisas muito diferentes dos teus barcos valboeiros conservadores das artes de navegar em rio, característica deixada pelos povos fenícios que aqui viveram.
Eu fui integrado no distrito do Porto, não protesto mas custa-me que tu fosses para tão longe do rio, dos barcos e do vinho generoso. Tu és mais douro, mais rabelo, mais valboeiro, enfim, és como eu uma entidade própria que não depende de ninguém nem recebe lições de nenhuma história escrita para justificar o injustificável e branquear a maldade de alguns dos mortos. Aliás todas as histórias são o produto de encomendas da época, recheadas de inverdades, fantasiadas de modo a provocar confusões, lavagem de consciências, reabilitação de figuras desastrosas misturadas com meia dúzia de casos por ventura verdadeiros. Para exemplo, cito-te uma pequena parte da história de Portugal que relata a tomada de Lisboa aos mouros pelo nosso vizinho Afonso Henriques de Guimarães. Isso foi quase verdade, aproxima-se do real embora atulhada da ficção que convinha na altura e veio a revelar-se importante para a nossa afirmação como pátria mas sucede, para desonra nossa, que em mais nenhuma história relatada do mundo aconteceu o inédito e impensável caso que viria a seguir. Os conquistados passaram a mandar nos conquistadores coisa que ainda hoje acontece e, este pequeno recanto onde nasceu a nacionalidade, só tarde demais ficou a saber que tinha lutado e vencido para ser transformado em dependente dos novos tiranos ocupadores do recinto. São pois os sucessores dos antigos mouros que nunca foram grandes guerreiros, mas mais vendedores de tecidos e camelos do que outra coisa, a decidir os destinos de todos nós. Fazem-no com a habilidade característica dos negociantes sem escrúpulos, ficam com a carne e deixam-nos as tripas, integram os muitos de nós que se deixam comprar alucinados pelo poder e mediatismo perpetuando assim o seu déspota e intolerável reinado que basicamente consiste em manter a abundância de alguns em prejuízo de todos os outros. Nunca percebi por que é que pessoas originais do interior, uma vez eleitos ou nomeados para ocupar cargos de grande decisão, na altura de decidir, fazem-no sempre em favor do litoral onde agora residem. O homem é um bicho muito complicado, nunca se deve atender às suas justas aspirações pois desde que as alcancem, transformam-se em autênticos canalhas.
Ai daquele ou daqueles que levantarem a voz contra tal opressão democrática, um coro de vozes obtusas atestadas por medalhões presenteados em cerimónias faustosas no dia de Camões e das Comunidades, aparece imediatamente a realçar o provincianismo de tal ou tais atitudes contra aquilo que consideram ser a união nacional desmentida permanentemente pelas estatísticas que provam as assimetrias e por tal objectividade dos números, confirma-se que sempre tivemos razão em protestar. As instâncias superiores do poder estão lá ao dispor e prontas a virem em massa e em força em defesa dos seus direitos que julgam adquiridos. Mete nojo, provoca desânimos em muitos, solturas que nenhum remédio cura mas contra aquilo que é considerado ordem, ninguém pode avançar. É por isso irmãos que nunca nos construíram aqui uma ponte. Lembro-me de um recente secretário de estado de um governo democraticamente eleito que um dia sentado deste lado do rio a olhar para ti, soltou do interior da sua falta de sentido de estado e de cultura, a seguinte observação: para que querem aqueles gajos uma ponte aqui, se ficam na mesma longe de tudo? Um ignorante é um homem perigoso à sociedade em qualquer parte do mundo mas nota-se mais a sua insipiência quando de ânimo leve analisa e decide sobre assuntos que desconhece. Só é possível haver gente assim por causa de um povo inculto que é como um rebanho de ovelhas, obedece ao pastor e vai sempre na direcção que ele soberanamente lhes indicar, até para a morte.
Lembro-me do dia do teu baptizado e daquela princesa moira que rasgou um dos pés nas pedras dos teus caminhos. Sentada nas Côncas a estrangeira, exclamou a frase de que parte viria a tornar-se o teu nome de menino;
-Tenho o pé dorido!
E tinha, não só pelas irregularidades dos carreiros mas também pela interminável e inútil viajem a que se tinha proposto. É uma lenda e, como todas as lendas obedece a um carácter fantástico ou fictício que combina factos reais e históricos com outros irreais que são meramente produto da imaginação dos povos. Seja como for algum motivo ou motivos existiriam na altura para que as pessoas te rebaptizassem rejeitando todos os nomes que a história pensa serem os da tua origem. Petraído não era de facto a designação mais correcta para definir um lugar maravilhoso banhado por dois rios. O mais certo será teres sido Pedorio, assim soa melhor e situa-te claramente no lugar que hoje ocupas ao pé do rio.
Pedorido, parece que a tua sina acabava de ser amaldiçoada por uma princesa vinda dos confins do mundo. Dorido foi o teu passado, talvez mais doloroso do que alguém pudesse imaginar para chegares como eu aos tempos da modernidade onde já nos apetece viver.
A mim baptizaram-me de Rio Mau e tu sabes porquê. Este pequeno curso de água que quase me cerca, transformava-se num louco quando absorvia os dilúvios que vinham dos montes. Rio Mau, rio muito mau.
Tudo se alterou desde então, o que era desolação e miséria foi transformado em beleza que extasia, ignorada cá dentro mas apreciada por gente estrangeira e representada em bagadas de água pura que são maravilhas e repouso para os olhares de quem já avançou para além da mediocridade e da indiferença e o que de mais maravilhoso a terra tem, a essência da vida. Somos bonitos meu irmão, não há neste mundo nada que se compare à nossa esbelta fisionomia de traços delicados onde a mãe natureza vem brinca todos dias.
Temos tanto orgulho em nós, tanta admiração pelo assombro que causamos a quem nos visita que muitas vezes coramos no rosto da nossa humildade. Tanta gente vive agora em nós, somos duas povoações viradas para o futuro assente num desenvolvimento sustentado que une e permite o nascer de uma nova cultura voltada para o que o mundo tem de novo e de esperança sempre com o passado preso numa das mãos.
Hoje apetecia-me abraçar-te meu irmão, sei que não me é possível estender os braços sobre o rio Douro e enlaçar-te com todo o enternecimento deste momento solene mas e perante essa impossibilidade, vou mandar-te o rio Mau ao encontro do teu Arda e então, as duas águas misturadas num abraço, vão assemelhar-se a um beijo.