terça-feira, 24 de outubro de 2006


PESCADORES DO RIO

O dia vai avançando no areio de hortos. Os barcos alinhados na margem pintados com temas religiosos, dormem uma sesta forçada. Em cada um, dos lados da proa, letras berrantes e toscamente pintadas, apelavam aos santos: - «Senhora da Piedade», «Deus me Guarde», «Coração de Jesus» e outros temas quase sempre religiosos. Pescam o sável e a lampreia no areio comunitário do douro, que os pesqueiros, espécie de promontórios erguidos com xisto nas margens do rio, onde se pode armar as Cabaceiras e os Aranhôs são propriedade da classe superior, que os dá à consignação a alguns pescadores mediante pagamento em espécime.
Hoje os lanços não são fartos e por isso a maior parte dos pescadores repousa na tranquilidade da praia e só o Manel Rouxinol insiste com a ajuda dos filhos, lanço após lanço em tentativas sucessivas a desafiar a malfadada sorte. Pode acontecer, basta que em algum momento um cardume venha a passar movidos pela natural força de desovar mais acima, que logo a rede compensa os até agora infrutíferos esforços. No entanto são inúteis as tentativas, decididamente hoje não é dia de peixe, é mais dia de enterro. O sino em badaladas perdidas no vento, convida os viventes à funesta procissão. O vento suão que sopra já há dois dias, encarrega-se de desanimar a arte fazendo cavadia no rio e os barcos ancorados lado a lado, batem uns nos outros com pancadinhas de amor.
- É suão Manel, nem pesca nem cão!
É o Peixoto quem lança este aviso conhecido. Rosto enrugado e curtido pela brisa do rio, boina preta a tapar os olhos e o cigarro forte a morrer na boca, também ele pescador do rio, deitado na arei a deixava passar as horas e a recordar tempos passados, aguarda que a maré de má fortuna passe e volte a fartura de outros dias. Foi em Março quando lançou a rede e apanhou trezentos e vinte sáveis e doze lampreias.
Foi bonito de viver esse dia, eram tantos, tantos a saltitar na praia que estrumavam todo o imenso areal. Nem pesados foram, foi olho que se venderam à Baralda de Ente os Rios e ao Almeida de Escamarão. Gingas e gingas de peixe, a eito vinte e cinco tostões por cabeça. Tinha peixes bons, alguns davam bem quatro e cinco quilos cada, mas o mais deles de milharas, andavam à volta dos três, três quilos e meio.
O pescador olhava agora a paisagem mas nada via, absorto no doce pensamento, deixava desenhar-se no rosto um largo sorriso de mistério. Ali o Douro faz uma curva prolongada, hoje corre seco, um enorme caroço de areia e godos toma o leito todo em frente à Penela e só do lado da Lingueta de Pedorido as águas ultrapassam o cerco correndo num vertiginoso galheiro apertado e baixo. Do lado de cá, geme junto à Arialva onde faz uma profunda queda. Mais acima e já da outra banda, encosta-se às Fontaínhas da Raiva e desde Gondarém, é uma estreita passagem onde penosamente a água corre em direcção ao mar.
Nunca é constante esta postura do Douro, em tempos de cheia, raro é o ano em que não acontece, agiganta-se e enlouquece num medonho. As águas barrentas e os gigantescos remoinhos cor de barro, acentuam o ar sinistro e destruidor quando sai das margens e entra em casa do Vicente no Remoinho e na Foz, toma de assalto a bigorna da oficina do Lisboa. Em Melres espraia-se gordo e largo, cobre a Ribeira toda e destrói as culturas dos campos. Em Montezelo galga aflitos os muros do Gama e enche a loja do Ferreiro obrigando-o a mudança inesperada para salvar os poucos haveres. Corre pelo largo da feira acima e rápido cancela o importante comércio na loja do Martins Alves, obrigando-o a retirar os produtos do armazém e das prateleiras da mercearia. São dias de desespero os dias de cheia, dias terríveis que ninguém jamais esquece. O povo vigia o rio de noite e de dia a aguardar as notícias que correm céleres vindas de Entre-os-Rios:
- Já anda na venda do Toninho Alves! É o sinal de perigo. A partir daqui perde-se o controlo ao rio e às coisas. Na enorme corrente que faz no meio, transporta lenhas, madeiras, abóboras, pipas, bois e porcos afogados surpreendidos a montante. As águas revoltas tomam uma cor amarelo-dourada, barrenta e deixam montes de lama nas casas que ocupam sem licença.
Traiçoeiro é o Douro, goza a liberdade absoluta a surpreender os homens que o estimam numa luta desigual que chega a ser de morte. No entanto não é por mal que o faz, estrangulado à nascença por xistos e granito quer reconquistar o leito que ganhou há milhões de anos.
Estas enchentes imprevistas trazem benefícios às terras, aduba os campos das ribeiras e das várzeas com os sais minerais e outros fertilizantes orgânicos que transporta. Além disso, faz a limpeza dos aluviões e outros lixos das margens, renova as areias e transporta com ele sempre mais e mais. Modifica o leito, altera a paisagem e, permite aos peixes migradores uma subida sem medos.
O Douro tem razões para tal comportamento, razões óbvias que alguns teimam em ignorar.
Da banda de lá só o Violas lança as redes, o Valboeiro levava-as amontoadas na proa deixando uma ponta da corda presa em terra e, à medida que o barco avança contra a corrente, à força dos remos movimentados a broa, vai largando a rede engatada à corda, fazendo um cerco de mais de cem metros. A boiar vêem-se as rodelas de cortiça furadas a meio enfiadas na corda do debruado das redes. A cair borda fora afundando-se as patelas de xisto presas na outra corda pelo furo do meio.
- Boieiro! Boieiro! Gritou alguém a avisar que lá ao fundo na curva do horizonte se aproximavam dois barcos rabelos que regressam do Porto depois de lá terem deixado as pipas de vinho fino cheias. Carregaram as vazias e fizeram-se à viagem de regresso à Régua de velas erguidas a todo o pano.
Ali, um pouco acima da Queda, os barcos raspam com o sargo no fundo do rio e então soa aquele grito de socorro:
- Boieiro!
A resposta vem rápida acalentada na alma do Balaído e dos filhos que de bois à soga respondem ao apelo. Depois é lançar a sirga aos barcos e, os animais fincam as patas na areia puxando frenéticos à voz do Daniel que não lhes poupa incentivos:
- Ei cabano força. Ei amarelo, prá frente
Com a vara aguilhoada vai espetando os bichos no lombo o que provocava uns arranques incertos nas cordas esticadas. Duas horas de esforço e estão safos os barcos. Agora param um pouco ao cimo do galheiro a fazer contas à vida e a beber uma pinga.
O sol esconde-se em Branzelo, o suão amainou, as águas do Douro tranquilizam-se tomando uma cor verde azulada, o horizonte ruboresce e tinge os olhos das águas de um vermelho vivo. Uma doce melancolia invade os homens e finalmente a noite desce macia apaziguando a terra.

1 comentário:

Piko disse...

COMENTAR OS PESCADORES E AS MEMÓRIAS DO RIO DOURO:
É um previlégio para mim poder comentar este saudoso texto sobre os Pescadores nesta zona do Douro!
Devo confessar que ainda miúdo acompanhei de perto estas lides piscatórias no areal de Pedorido, e, onde se empenhavam as gentes de Rio-Mau e de Pedorido e ainda conheci o citado MANEL ROUXINOL, assim como presenciei várias vezes as àguas do Douro ocuparem parte da casa do VICENTE no REMOINHO,isto em RIO-MAU, do mesmo modo que vi em PEDORIDO, as águas cobrirem por completo a Ponte Centenária sobre o ARDA!... Eram cenários de arrepiar, mas, também era verdade que os povos das duas margens já estavam acostumados a este tipo de atitude do GRANDE RIO e nos INVERNOS mais rigorosos!...

Em contra partida esse DOURO já não existe e em troca, ironia do destino, arranjaram-nos uma espécie de LAGO, que não tem a personalidade do seu antecessor e de quem gostávamos mais! É natural! Depois e para cúmulo,"esconderam-nos"para todo o sempre, todos os BELOS AREAIS da margem direita e esquerda onde fomos tão felizes em quase todos eles!... Espanta-nos que apelidem pomposamente de MODERNISMO estas obras de Engenharia, mas não são capazes de perceber que poderão ter posto em causa a felicidade das pessoas em toda a zona baixa do DOURO... Eu, que ali vivi até aos VINTE ANOS, confesso que sinto frustração, sempre que dou de caras com o DOURO actual, julgo até que estou a ser enganado e pergunto a mim mesmo se não serão as minhas MEMÓRIAS que me pretendem baralhar?!... Ou será que estou a ser " atraiçoado " por uma sensibilidade que já não terá razão de ser no limiar do século XXI e em que os fins passaram a justificar os meios? Sinto-me baralhado, devo confessar, mas sobretudo, sinto-me triste.
O que importa é que adorei o texto, que me diz muito, e, porque tive a alegria e a felicidade de ter conhecido alguns dos intervenientes desta HISTÓRIA!

MUITOS PARABÉNS AO AUTOR!