quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Lavradores

Lavradores



Cortiça é terra de lavoura alpendrada nas arribas do Douro estende os campos em socalcos até lá abaixo às beiras do rio. Dali mira-se Midões e Gondarém encravadas no sopé da montanha receber os ventos do rio que parecem eternos. O povo é muito mas raro o casario. Daqui mingúem sai durante toda a existência que proventos novos em horizontes próximos não existem e mesmo por de trás das montanhas, nas lonjuras avistadas do alto de S. Domingos, pouco ou nada há onde um um homem possa ganhar o sustento. Tudo mirrado e abandonado nestes confins do mundo onde nunca chegou a mão protectora que gerasse progresso que se visse. É então na terra e no rio que o povo deposita a esperança de sobrevivência pescando, amanhando leiras, tratando das vinhas, das oliveiras e de algumas árvores de fruto que aparecem dispersas ao longo da encosta numa batalha terrível para se manterem de pé. Ninguém quer saber deles, abandonados nestas bandas desoladas, só alcançam algum consolo da alma nas festas e romarias que um pouco ao redor de cada uma das ermidas plantadas nos altos dos montes, se vão matematicamente realizando todos os anos.align="justify">
O Labaredas e a Júlia Ricardina passaram a vida a pescar e tratar dos campos. Ano após ano, dias intermináveis de uma vida a fazer da terra a fábrica do pão, o sustento de toda a família, amealhando migalha a migalha a parca riqueza com o suor do rosto tendo como objectivo uma meta distante que os fazia correr e sofrer.
Os dois filhos, na esperança de futuro melhor, partiram para terras estrangeiras em busca de melhor pão e por lá ficaram casados, também com filhos, acolhidos sob pátria diferente que lhes dava tudo para sobreviverem condignamente.
Muitos anos passaram pela vida deste par de idosos sem a presença de quem poderia dar algum consolo numa velhice que trás sempre o desconforto das maleitas, feita de manhãs e tardes sentados no velho alpendre da humilde casinha plantada ali numa arriba do Douro a desmoronar-se sobre a água, no pedaço de chão que os vira nascer, com os campos todos estendidos à frente dos olhos cansados e o rio Douro a correr sinuoso e sereno lá em baixo nas profundezas dos penhascos de Cancelos, trocavam afectos e carinhos e desfiavam lembranças de tudo o que de feliz e doloroso ficara irremediavelmente para trás, nos anos da já longínqua existência, sorrido todavia e esperando calmos por um dia que haveria de ser o derradeiro.
-Lembras-te Júlia da Festa de S. Mamede em sessenta? Foi lá que o nosso Afonso encontrou a Joana. E aquele beijo e abraço na desfolhada de Paços quando ele encontrou a espiga do milho - rei?

Se não fosse o milho - rei
O que seria eu não sei.
Não há desfolhada, animada.
sem milho - rei?
Se vem uma espiga, rapariga.
Cumpre-se a lei.
Um abraço, tens de dar.
Não te podes escusar.
Era o gira-discos do Correia brasileiro quem tocava essas saudosas músicas do baile! Melodias com sabor a terra, genuínas de um povo tão ilustre como a nação que o tem.
-Se me lembro António, ele dançava rapioqueiro e levava-a presa nos braços a voar pela eira toda!
-E o casamento do Fernando, retorquiu ela? A igreja estrumada de gente só para o ver casar com a Rosa! A cachopa era jeitosa, linda e ele apanhou-a num repete!
-Ah, mas os bailes eram de satisfazer um homem, repicava ele a seguir sempre comovido as suas saudades.
Lembras-te do Verdinho?
A voz sem já timbre do Labaredas procurou a música e a letra da velha cantiga numa memória quase apagada:

Ai verdinho meu verdinho.

Esquecer-te não há maneira.

Escorrega devagarinho.

Apaga-me esta fogueira.

Que importa o vinho ser verde

E me faz cantar na rua

Ai verdinho meu verdinho

Não há côr igual à tua.

Gosto muito do verdinho

Nem que seja de Amarante

Na caneca ou no copinho

Desaparece num instante.

Ai verdinho meu verdinho

Que nasceste da videira

Tu para mim és pão e vinho

E cor da minha bandeira.

O António escondeu-se nos confins das suaves recordações por alguns momentos enquanto ela trauteava baixinho a sua modinha predilecta:

A pantufa de flanela do António batia ao compasso da cantiga na madeira pôdre do chão do varandim e, na magia do imaginário, vislumbrava o rancho de Santa Marta de Portuzelo a evoluir no palanque da festa do Senhor dos Remédios em Rio de Moinhos e o ramalhete de oiro agarrado aos pescoços das moçoilas, balançava rico ao sabor do enfeitado som das concertinas.

Ó minha Rosinha eu hei-de te amar.

De dia ao sol, de noite ao luar
De noite ao luar, de noite ao luar.

Ó minha Rosinha eu hei-de te amar.

Ai a lai a larai a lai

Ó minha Rosinha eu queria-te tanto.

Como a rosa branca nascida no campo
Nascido no campo, nascida no campo.

Ó minha Rosinha, eu queria-te tanto.

Ai a lai a larai a lai
Ó minha Rosinha bailaste, bailei.

Bailaste no adro que eu bem te mirei
Que eu bem te mirei, que eu bem te mirei.

Ó minha Rosinha bailaste, bailei.

Ai a lai a larai a lai
Ó minha Rosinha do meu coração.

Tu vais p'ra Lisboa, não levas paixão.
Não levas paixão, não levas paixão.

Ó minha Rosinha do meu coração.

Ai a lai a larai a lai
Ó minha Rosinha cartas são papéis.

Não quero que gastas comigo dez reis
Comigo dez reis, comigo dez reis.

Ó minha Rosinha cartas são papéis.

Ai a lai a larai a lai

Ai a lai a larai a lai.

Ela calou-se; nos seus olhos lindos de épocas distantes apareceu o brilho da mocidade e aquele rosto sofrido de mulher do campo, voltou a ter as belas e mimosas faces de menina.
Depois vinham as longas pausas, o deixar fluir as lembranças no silêncio crespuscular do rio e da generosa terra como quem fala e agradece ao Criador pelo alcançar de tantos e felizes objectivos.
A Júlia Ricardina e António Labaredas, figuras singelas de um mundo ainda rural onde alegres e livres cantam passarinhos, os ares são ainda de pureza e há bosta de boi caída nas ruas, entretidos no amanho das terras, nunca imaginaram na sua humilde simplicidade, nunca poderiam ter imaginado, que o destino muitas vezes é cego e cruel e raramente distingue o trigo do jóio e vai pregando partidas com uma crueldade que estarrece um santo.
Assim apareceu a doença, um flagelo que incapacitou Júlia a camponesa por quem o tempo passou oitenta e cinco vezes e deixou marcas, feridas que não sagram mas acumulam constantemente dor e sofrimento, rendida a um calvário indescritível, vivendo presa numa cama sem se poder mexer, num estado de coma quase profundo, dependente de tudo e de todos, sobrevivendo apenas pela dedicação e o amor solidário do velho marido.

-Júlia, Júlia sou eu, estou aqui à tua beira; abre os olhos, fala comigo!

Nada! Só a mão direita da muribunda lavradeira responde ao desesperado apelo crispando-se na mão dele como se a dizer-lhe, estou aqui.

A amargura e o desespero viveram com o Labaredas estes últimos anos fazendo estragos irreparáveis na sua alma.
Foi cuidado dela como pode amarrado ao infortúnio, vergado pela má sorte, torturado e já no limiar de tantos anos de vida de canseiras e trabalhos, quando mais necessitava e julgava mercer algum apoio e carinho, uma réstia de ternura e conforto para os últimos tempos de existência, foi abandonando as terras por amor à esposa vendo o destino a tornar-lhe o fim num verdadeiro suplício.
Tempo longos a viver de braço dado com a dor, nunca sentiu a mão amiga de ninguém que lhe estendesse uma manta de aconchego, uma alma generosa que procurasse ajudar este homem a quem a desgraça bateu à porta.
Acentuou-se o abandono das coisas, a terra deixou de ter água, as roseiras secaram, as silvas evadiram os campos, o próprio sol deixou de lhes esquentar a alma e o desconforto daquela singela habitação desprezada, tornou quase impossível lá viver.
O Labredas olhava o horizonte do rio impaciente à espera que alguma embarcação viesse com auxilio. Nenhum barco cruza o rio neste tempo. Terminaram já as fainas da pesca e os Rabelos presentindo as asprezas do Inverno, ficam-se âncorados na Régua. Rezava, pedia a Deus que lhe renovasse a esperança que ia morrendo aos poucos em cada amanhecer, que permitisse um pouco de melhoras à esposa, que lhe minguasse o sofrimento que era demais e porque viver assim era já impossível.
Nenhuma resposta chegou vinda do céu nem mesmo da terra onde os homens loucos cultivam a insensibilidade e a descarada hipocrisia. Então, numa madrugada, num daqueles límpidos amanheceres que só o Douro tem, a Júlia deu o seu último suspiro. Ele, chorou agarrado ao corpo da mulher que o tinha acompanhado desde a juventude sem uma queixa, sem um protesto perante as asprezas das suas vidas comuns. Depois, já muito para além do desespero, abraçando agora a dor da solidão, pegou na caçadeira, amiga e companheira de felizes caçadas, sentou-se na varanda e olhou pela última vez o rio Douro e os campos que com tanta ternura cultivou suicidando-se de seguida com um tiro na cabeça. Houve um silêncio pesado na Cortiça que durou dois dias, o tempo suficiente para ser notada a falta do casal. Encontrara-nos finalmente
num dia em que o sol continuava a brilhar no céu, os passarinhos a cantar e o rio Douro a correr serenamente enquanto os dois seguiam prostrados em caixões a caminho do túmulo.
Os filhos atónitos vieram ao funeral sem compreenderem semelhante atitude do pai que fora sempre um homem honrado e crente, incapaz aos olhos do povo de tão horripilante proeza.
Destino malfadado que, quase sempre, inunda de felicidade a vida de muitos que passam a vida a rouba-la aos outros, enquanto tantos vivem em aflição permanente.
Ainda há lindas flores num cemitério em Canelas, ali onde o esplendor do Douro mais se acentua, que nasceram selvagens em cima de duas campas a par. A resposta do céu chegou tardiamente mas veio transformada em rosas.

Dizem que, em noites de luar, quando serena o rio e o silêncio se instala nos montes, as roseiras se entrelaçam e as rosa parecem beijar-se ternamente.

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