quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Milagre em Julho

O laínho contempla o rio com espírito saudoso. Tantas lembranças o assaltam nesta peregrinação pelo passado. Ajeita a velha boina remendada e permite ao pensamento divagar pelas memórias de um tempo que lhe fugiu por entre os dedos de umas mãos esqueléticas. No alto desta colina onde assenta a capela de S. João, observa o horizonte encantador e, por obra do acaso ou sugestionado pela proximidade do templo pensa em Deus, num ser de quem sempre ouviu falar e foi presença constante nas vidas de muitos mas nunca na dele. Magica na possibilidade de Ele existir na realidade. Quer uma justificação plausível e imediata para a emoção que o assaltou de repente quando julgava em bom rigor nunca vir a reflectir sobre tão remota e enigmática personagem.
Nunca aprendeu a rezar e obrigado a fazer pela vida, afastou-se da capela talvez cedo demais para poder entender a realidade da doutrina cristã apregoada ali todos os dias pelo velho padre Manuel. Agora, depois de ter percorrido uma vida de trabalhos e canseiras, pressentindo que o fim se aproxima a passos largos, sente tristeza por não ter essa esperança de fé plantada no peito.
O Laínho é um iletrado, não sabe ler nem escrever e por isso desconhece que não é absolutamente necessário um curriculum recheado de práticas litúrgicas para se alcançar as bem - aventurança após a morte. Nem tão-pouco lhe passa pela cabeça que o reino do Céu pode estar ao seu alcance. Sabe apenas que não rezou, que não assistiu a missas e isso é bastante para se sentir um condenado às terríveis penas do inferno. Se não sabe, basta-lhe perguntar ao padre que esse sim, mandatado para educar o rebanho na rigidez da sua fé, sem favor algum, o vai elucidar acerca dos tormentos a que Deus o vai sujeitar, logo que estique o pernil. No entanto, longe de se resignar a esse destino que apesar de tudo julga merecer, deambula pelas lindezas que a vida lhe deu, pelos momentos em que julgou ter estado muito pertinho dessa Divindade. Sentado nesta pedra centenária, revive as cenas que podem amansar-lhe o coração e a alma.
Lembra-se de um dia que ficou para sempre gravado no seu coração de ateu e na memória das gentes da aldeia de Rio Mau.
Foi num domingo de Julho que nasceu cedo em traços de calor.
Batiam as nove horas dessa ridente manhã no sino da capela quando a banda musical ensaiava um breve concerto no coreto situado ali no meio do largo.
O padre João perfilava as criancinhas, à frente as raparigas, logo atrás os rapazes.
Elas, vestidas com longos vestidos brancos e grinaldas nos cabelos, faziam lembrar as noivas dos lindíssimos contos de fadas. Eles, trajando a rigor, impecáveis, pareciam príncipes de contos antigos.
O céu profundamente azul a agasalhar o rio douro, estava a ser testemunha deste belo cortejo. Momento único feito de ternura, de carinho e emoção em que a alma das gentes parecia estalar no marejado dos olhos.
Bateram as e dez horas quando a banda principiou o toque da pequena marcha. De vez enquanto um foguete estoirava no azul do céu e o seu eco entoava pelas encostas dos montes mergulhadas na doçura da manhã. O sino repicava em alegria festiva, era uma melodia com sabor a pureza, o toque por que são chamados os anjos.
Alice passava, era a segunda a contar da frente. Por momentos o Laínho quedou-se nos rostos de cada um dos pequeninos que alinhavam tão graciosa procissão. Viu azuis de felicidade em cada um daqueles olhares deslumbrados e o brilho da tranquilidade dos seres inocentes e puros. Porem Alice não sorria, o rosto dela tinha-se fechado sobre a terra e era num mundo muito distante que flutuava o seu frágil pensamento. O mineiro franziu a testa porque notou naqueles olhos lindos uma imensa e profunda ausência.
A procissão entrou na capela de S. João e o padre iniciou a cerimónia:
- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo...
Pela manhã fora iria ser lindo estar ali.
Eis que chega o momento mais solene, aquele em que o sacerdote ergue solenemente a Sagrada hóstia para celebrar a eucaristia, o instante da ceia que antecedeu a Paixão de Cristo.
- Tomai e comei todos, este é o meu corpo...
Alice fitava sem cessar a imagem da Virgem Santíssima e, naquele rosto meigo de menina bailavam duas lágrimas que lhe rolavam docemente pelas faces e depois iam cair no seu gracioso vestidinho branco. De repente pelas portas grandes da capela abertas de par – em - par, irrompeu uma pomba branca que esvoaçou ao de leve sobre os presentes e depois foi poisar no ombro de Alice. Todos se entreolharam espantados...
- Uma pomba branca, uma pomba branca?!.
Padre João surpreendido, hesitou por alguns momentos, depois continuou...
- Tomai e bebei todos este é o meu sangue, derramado por vós e pela multidão dos homens para remissão dos pecados, fazei isto em memória de mim!
A pomba levantou ligeiro voo e foi poisar no ombro da imagem da Virgem Santíssima que do altar olhava para todos com a celestial bondade dos santos.
O mineiro repara em Alice e, nos seus olhos verdes da cor do rio, nota um brilho estranho, um brilho de imensa felicidade. Pareceu-lhe então que a mão de alguma divindade estava ali firme a segurar os fios do destino.
Logo que terminou a santa missa todos regressaram às suas casas onde os esperavam as bodas próprias de tão importante ocasião. A pomba mais uma vez levantou voo e saiu da capela enquanto Alice olhava o céu azul onde ela fazia acrobacias de sonho.
À tarde, pelas seis horas após brevíssima cerimónia, saiu a procissão que percorreu as ruas da terra. Quem subia nessa hora as íngremes escadas que conduzem à capela deparava com a pomba branca poisada à beira do sino.
Do alto dessa colina via-se o rio douro tranquilo, imponente e belo no seu verde azulado. A procissão desceu as escadas depois serpenteou em cânticos ao longo da estrada. No céu, a pomba voava e acompanhava o cortejo enquanto Alice não desprendia os olhos daquela aparição. Os sinos repicavam alegres, era o fim da festa, o fim da comunhão solene.
No adro da capelinha, Alice, com o seu lenço branco rendilhado, acenava à pomba branca que partia rumo ao por do sol.
Padre João aproximou-se e abraçou a criança ao mesmo tempo que lhe perguntava:
- Tanta felicidade Alice sinto-te tão contente?!
A menina, sem tirar os olhos do poente, respondeu:
- Senhor Padre, quando erguias a hóstia do Senhor, eu rezei muito e pedi à nossa Virgem Mãe:
- Minha querida Mãe do Céu, pede ao teu filho Jesus que deixe a minha mãezinha, que ele tem no seu reino, vir aqui nem que seja um só momento, ver como estou linda neste vestido branco da minha comunhão solene que é decerto igual ao que ela usa ai nesse lugar onde está. Vês Mãe Santíssima, estão aqui todos os pais e todas as mães dos meus companheiros e companheiras só a minha é que não!
- Viu Senhor padre aquela pomba branca!? Era a minha mãezinha que Jesus mandou do Céu para estar comigo neste dia. Sou tão feliz Senhor padre!
O sacerdote apertou a criança contra o peito, lágrimas gordas brilharam no rosto daquele homem. Ajoelhou ali mesmo, ergueu os olhos ao firmamento e comovido disse.
- Obrigado Senhor!
O mineiro, levanta a boina e coça na cabeça. Um sorriso enigmático desenha-se-lhe nos olhos, decerto esta recordação acabou de provar-lhe que afinal sabe rezar que, quem sabe se na sua hora final, em que sozinho em frente da cruz do seu rosário sem nada nem ninguém que lhe possa valer, também haja uma pomba branca para ele, enviada de um céu pela infinita misericórdia daquele Deus que sempre ignorou.
O rio Douro é um espelho que reflecte o lindíssimo rosto da mãe Natureza. Comovido, aconchega-se um pouco mais no leito e docemente prepara-se para dormir.

1 comentário:

Anónimo disse...

É extraordinário como ainda existem pessoas a escrever tão maravilhosamente. Que beleza de trecho, que modo sensível, agradável e elegante de tratar a escrita, a literatura portuguesa que julgava perdida.
Foi um verdadeiro "milagre" na minha já longa vida ter encontrado este blog.
Parabéns grande escritor.

Júlio Costa Ramos