terça-feira, 3 de novembro de 2009

Saudades




Os seus olhos cansados voltaram a engolir ávidos o retrato verdadeiro da terra onde nasceu. Como num filme antigo, as imagens passavam rápidas sobre os anos e sobre as suas lembranças. A vista tolda-se-lhe por água que não é da chuva nem do rio mas humidade que nasce de mais fundo, das entranhas que choram a dor imensa das saudades transformadas no perfume da solidão, no pesadelo dos dias, no cansaço das noites, na insónia que perturba e abala quem as sente.
Passaram cinquenta anos desde a última vez que aqui veio ainda à procura dos restos da sua meninice lancetada, cortada a meio por um rio que adorava e que tinha sido o seu embalo. A vida levou-o, a ele e aos pais e irmãos, afastou-o do sítio onde pela primeira vez viu as claras madrugadas, as chamas prometedoras dos dias e colocou-o do outro lado do Douro a escassos metros de distancia mas demasiado longe para poder sentir o pulsar daquela aldeia de pescadores e mineiros, branca e pobre que tem colinas a matizar as fraldas da serra da Boneca e água a cercá-la quase por todos os lados.

É perto dizia-lhe o pai! É daquele lado, é como se estivesses aqui! Quando quiseres, vens de barco, ver os teus amigos, a rapaziada, nem saudades vais ter!
Mentira, as mágoas vieram certas com a ausência, doeram na alma de tal maneira que julgou ir morrer de coração partido. Era à noitinha, na abençoada hora do crepúsculo quando os corpos exaustos de quem arduamente trabalha para angariar o sustento, encontram finalmente a paz, que debruçado sobre o douro olhava o povoado de além sentindo a calmaria a descer sobre a terra como manto divino e protector. Nessa hora mágica deixava correr dos olhos algumas lágrimas furtivas e, preso só pela violência da separação, jurava ali mesmo nunca mais se esquecer dela.
Mais tarde à procura de melhor vida, abandonou também esta terra adoptiva e fixou-se para os lados de Ovar onde a pulsava um maior desenvolvimento capaz de lhe proporcionar um outro e possivelmente melhor modo de vida.
O tempo foi apagando essa dor com visões diferentes de mundos desiguais, de novas pessoas, amigos e colegas. Mudaram-se os hábitos, os costumes, as rotinas alterou-se tudo no rodopiar dos anos e, preso em outras novas ilusões, o coração sarou. Agora chegava para reviver o passado perdido. Enterneceu-se ao olhar Pedorido a sua terra adoptiva a reluzir do outro lado do Douro e sentiu no peito a dúvida do afecto. Qual das duas terras amaria mais!? As duas por igual! A uma e a outra quer como se quer a uma mãe. Ensaiou um suspiro e deixou-se prender por algum tempo nos laços das recordações. Percorreu a pé aldeia, foi ao centro do lugar em busca dos rostos da sua meninice rasgada e um misto de júbilo e tristeza apoderou-se de todo o seu ser ao tomar conhecimento das alegrias e tragédias que aconteceram durante estes anos todos. Reconheceu alguns do seu tempo, abraçou-os com a mesma força de antigamente num entusiasmo que sabia ser breve. Pouco ou nada se recupera da nossa meninice e juventude; se partimos, deixa-mos que se desliguem as amarras que nos mantinham presos a um mundo que por mais pobre que seja, transformar-se-á num tesouro incalculável. Ele tinha consciência disso, experimentou uma actividade nova num mundo novo onde se envolveu totalmente durante meia vida e, aos primeiros alvores de um Outono implacável, aconteceram mais vivas as saudades. Ia perguntando por este e por aquele, obtinha respostas que lhe magoavam a alma:
- O Raspa já morreu, o Ricardo, o Hélder, o Herculano e muitos mais num rol que parecia nunca mais ir acabar:
- E o Zé Abílio, perguntou? Esse anda por aqui, ainda há pouco aqui estava! E o Marau? Olha está dentro do café, espera, vou chamá-lo! Mais um abraço, mais um pedaço da infância a palpitar ali.

Olhava-os um a um aos antigos companheiros tentando reconhecer neles os meninos de outrora de rostos puros e alegres mas o que tinha na sua frente eram apenas despojos de juventude que o tempo traiçoeiro envelheceu.
A vida a fazer-se vida novamente nas lembranças. Imaginou-se criança, descalço a correr pelas ruas poeirentas desta aldeia e, as imagens desse tempo iam-lhe passando difusas pela mente poeirentas e a preto e branco. O subconsciente a levá-lo ao passado, a condená-lo por ter enjeitado e abandonado o seu torrão Natal. Sacudiu a cabeça como se pretendesse afastar a culpa,  meteu-se no carro e voltou lá para longe onde as saudades moram e decerto por ai ficará até fechar os olhos para sempre obedecendo aos apelos do sangue. De Rio Mau e Pedorido, lembrar-se-á sempre porque aqui jazem como fantasmas a sua meninice e juventude.

Ao meu amigo, Augusto Silva emigrante em Ovar

1 comentário:

Gaby Stuque disse...

O seu blog é como um convite ao embarque de fantasias !
Adorei os textos.

visite o meu se quiser :D
www.gabymyway.blogspot.com