terça-feira, 18 de maio de 2010

Germunde

Germunde

Germunde é uma terra feia, carrancuda e fria. Aparece estampada na encosta junto ao rio Douro, como um ovo podre atirado a uma parede com as claras negras e viscosas a escorrer até à água. Súbita se venho dos lados das pequenas povoações da Póvoa ou de Pedorido. Da terra de Melres, que espreita no outro lado do Douro, vê-se como nódoa sombria a escurecer a serra em frente. O entulho desprende-se cascalhudo e solto até entrar nas águas do rio a imortalizar a imagem que antecipa um inferno. Enormes pavilhões cobertos com chapas de zinco e fibrocimento, assemelham-se a escangalhadas tendas de campo de concentração abandonado. Mais ao centro em zona previamente escolhida e bem longe dos barulhos da lavaria, há casas que são vivendas misturadas com grandes prédios urbanizados e barracas pré-fabricadas que abrigam o pessoal médio. No meio destas existe um campo de ténis, piscina, bar luxuoso e restaurante asseado e limpo para os mais ganhadores de salário.
Por baixo de uma enorme placa de betão, fica o refeitório da classe operária, designada por indiferenciados. Dentro deste espaço austero e frio, há mesas de madeira alinhadas na totalidade do comprimento da cave com bancos corridos também alinhados sobre um chão de cimento bruto. A delimitar as diferentes zonas, há cedros e ciprestes plantas que emprestam um ar de cemitério a este local sinistro.
O sol ainda não despontou em Germunde e decerto não vai despontar, distante lá em cima no céu, passa por trás desconfiado e ensombrei-a a terra que já de si é preta. A claridade chega pelas oito e define um pouco mais a estrutura esquelética do aglomerado. Germunde não é cidade, não é vila, nem aldeia. Nem uma coisa nem outra, o que mais parece, é um espinho cravado na encosta do monte. Ninguém é de Germunde, a história não reza esta estranha espécie de vida aqui, mas ela existe trazida de longe, importada, alguma aciganada, tipo gente infeliz dos colonatos árabes. Ninguém se conhecia antes como não vão ficar conhecidos depois. Convivem nas tarefas mas ignoram-se, partilham estes espaços de terra, buracos no chão e toneladas de entulho, como quem partilha a água de lavar tripas de porco. Germunde transformou-se um nicho para alguns vampiros que chupam o sangue a quem lhes cair nas mãos. Servis e fiéis a terceiros. transformam o castigo desumano e duro, em obra de misericórdia abusando da debilidade e falta de sustento desta infeliz gente. Aqui só se pára para morrer ou mijar e até a água das nascentes é férrea e preta a condizer na perfeição com o flagelo que inutilmente tenta lavar. Bem se enfeitou ela de natureza vinda de fora, mas em vão, aqui não nasciam cedros, nem ciprestes, nem rosas, neste local só crescem urtigas azevinho e mato. De Germunde ninguém gosta, até os que aqui circunstancialmente hão-de de nascer, vão abalar para longe na primeira oportunidade que surgir e decerto não voltarão mais a este deserto terível. Em tempos remotos ouve uma outra espécie de vida em Germunde, o edifício onde funciona o restaurante, foi solar de fidalgos, lavradores abastados no nome, que quem lavrava a terra eram outros. Tinham cavalos e coches meio de transporte para se deslocarem aos salões do casino da Granja onde desbaratavam à sorte o que os outros produziam. Os almoços também eles lautos, eram no restaurante Galo de Ouro em Aveiro e começava sempre por uma avantajada caldeirada de enguias a que se seguiam bifes de vitela enfeitados com tartulhos. Empanturrados adormeciam e ressonavam alto. Ficavam por lá dias e dias até gastarem dez anos de salário de um cavador de terra a beber champanhe como quem no dia quatro de Agosto na festa do S Domingos, bebe uma esturraçada de água fresca do cântaro do Fome Negra.
Esta era pois a espécie de vida que em tempos antigos proliferava em Germunde, mas nesse tempo ainda não se adivinhava o calvário que vinha a seguir. Aquilo era só o prelúdio de uma tragédia que haveria de levar à destruição de centenas e centenas de vidas. Germunde é uma terra propícia às maleitas, nasceu ou foi criada à imagem e semelhança do inferno
Bem ao centro do cenário, assente em patamar de entulheira, discreta mas presente, o possível disfarçada, fica a boca do suplício; a entrada da mina. Por aquela escancarada boca vão entrar as filas dos desgraçados que vieram a caminhar há horas através dos montes. E ai estão eles. Os gasómetros prenhes de carboneto que balouçam nas costas dos mineiros vão entrar em acção.
Uns atrás dos outros, desaparecem ao fundo da ampla galeria transformando-se em pequeninas luzes trémulas e difusas. Lá vão o Marto, o Pestana, o Maneta, o Isidro, o Rã e os outros todos. Caminham cem metros pelo lado do trilho das vagonetas e ao fundo deparam com três enormes poços. O denominado PG1 à direita e mais à frente à esquerda, fica o PG2 e na galeria da Santa Bárbara fica o trinta e cinco.
No primeiro, dois elevadores fazem a descida. As Jaulas que consistem num patamar de madeira de dois metros e oitenta, por um metro e trinta, cercado com grades de ferro, é a cabines onde vão os homens misturados com os materiais. Quando um desce, o outro sobe carregando uma vagoneta cheia de carvão. Os mineiros descem também aos poços por escadas de madeira que de dez em dez metros têm um patamar e assim sucessivamente até atingir os trezentos metros de profundidade.
Chegados ao fundo, novas galerias se formam onde se faz então a distribuição do pessoal pelas diversas frentes de serviços. Uns para um lado, outros para outro, dispersos pelas travessas a começarmos nas seis e acabar nas trinta e cinco. Uns cavam o carvão, outros enchem à pá pesados carros de mão construídos em madeira.
Vê-los agora é penoso. Quais toupeiras, essas escolhem o terreno onde pretendem cavar, eles não. As marcas foram definidas antecipadamente e seja duro ou seja mole, tem de se avançar sempre. Inclemente e dura a vida lá debaixo da terra. Molhados, sempre ensopados, se não é do suor é da água negra que pinga incessantemente do tecto das galerias vão torcendo as negras camisolas único aconchego e protecção do tronco. Das mãos e dos braços com feridas feitas pelas pedras afiadas e soltas, escore sangue que se mistura com a massa preta do carvão antracite. Transfigurados em camisola interior ou de tronco nu e em cuecas, assemelham-se a penduricalhos vivos. Nenhuma máscara lhes protege o nariz e a boca e o pó negro entra livre até aos pulmões provocando a fatal silicose.
Ah mineiros do Pejão! Que erigirá o templo das vossas memórias! Quem lá há-de chorar o vosso inenarrável sofrimento. Que cá fora a nortada sopra  agita as águas do rio e as folhas dos salgueiros tentando desesperadamente abafar os vossos aflitivos gritos. Ela que vos conhece desde meninos, que afagou o rosto da vossa juventude lancetada, sofre também em rajadas de revolta.
Pára rio Douro, escuta os lamentos dos homens enterrados vivos e lava-lhes as feridas do corpo e da alma com as tuas doiradas águas.
Abrandai e respeitai-os barcos rabelos que da Régua chegais desfraldando ao vento as vossas velas brancas e nas pipas trazeis guardado o precioso néctar que outros escravos fizeram, mas que não corre nas gargantas dos pobres.
Acalma-te vento, norte não vês que é impossível abafar o desespero destas almas famintas de luz!? Deixai todos que se faça silêncio, que cá fora a noite desça solidária com a noite deles e que Deus e Santa Bárbara os protejam e velem então pelas suas desamparadas almas.

4 comentários:

Valdemar Marinheiro disse...

Os anos que aqui trabalhei, nas crivas e nas minas, verdade indesmentivel do autor,que nfaz um relato real. Mas confesso que esses anos me enchem de felicidade.Fui feliz nesses anos dos 14 aos 20.
Passo lá semanalmente e recordo várias passagens maravilhosas com miúdos do meu tempo das fregueisas circunvizinhas.
Parabéns a este magnifico relato, nós os mineiro teremos de te agradecer o teres perpetuado esses anos de tempos difíceis e em muitos casos mortiferos, fosse pelos acidentes, ou pela doênça mortal da Selicose.

Piko disse...

O autor descreve Germunde com uma exactidão, só possível a quem pisara aquelas encostas e que tenha de alguma forma convivido com as realidades que a sua memória guardou e que agora nos oferece com total LIBERDADE, coisa que nem o Jornal dos Mineiros de outrora fora capaz de fazer, embora todos saibamos porquê...
Um texto com valor histórico para esta vasta região do Couto Mineiro do Pejão!
PIKÓ

Unknown disse...

Hoje parei neste espaço e estou maravilhado com a tua escrita.
Uma preciosidade difícil de imitar ou pintar em quadros de cores vivas.
Irei seguir-te pois estas letras me enchem a alma.
À dureza do campo ainda se juntam os trabalhos nas minas.
Parabéns pelo texto.

Anónimo disse...

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