quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O Guarda - Soleiro

Tudo se alterou em poucos anos. Os homens da ciência e da técnica transformaram de tal maneira o mundo que seria difícil estabelecer comparações entre o antes e o depois sem causar sérias dúvidas nas criaturas mais jovens. Surpreendem-nos todos os dias com novas invenções e ultra modernos processos de atenuar atrasos milenares. Tudo começou não faz muito tempo, há menos de cem anos antes da Revolução Industrial, a actividade produtiva era artesanal, quase tudo era feito manualmente e usavam-se algumas máquinas simples. Quase todos os trabalhos de manufactura, eram realizados em oficinas existentes nas próprias casas dos artesãos e esses profissionais da época dominavam muitas das etapas do processo produtivo.

A história que te vou contar passou-se há cerca de trinta anos. Como poderás imaginar o processo de expansão dos novos conhecimentos, foi moroso, arrastou-se pelo tempo fora até aos dias de hoje com evidentes prejuízos para as populações.

Parecia impossível mas mal amainavam os calores de Agosto, acabavam as romarias e deixava de se ouvir o estalar dos foguetes nas redondezas e Setembro entrava pela terra dentro melancólico com o céu carregado de nuvens a ameaçar chuva, e logo se ouvia o som estridente daquela gaita de timbres desconformes por todo o lugar.

O som monótono e discordante do aparelho musical, quebrava o silêncio da povoação que ia procedendo às colheitas do vinho, das abóboras e demais produtos que a terra generosa deu e, como autoritário aviso de regedoria, informava o povo que o consertador de guarda-chuvas acabava de chegar a Sardoura vindo não se sabe de onde mas incrivelmente pontual como tem sido ao longo de muitos e incomputáveis anos.

A carroça era um laboratório ambulante suspensa em duas rodas de antiga bicicleta de pedais e tinha formas de bizarro instrumento multifacetado que adquiria formas diferentes quando o artífice resolvia entrar em acção. Os rodados onde se movimentava toda a estrutura da incomum oficina, mudavam repentinamente de função e posição, transformando-se em rodas livres onde assentava uma correia de transmissão de tela que por sua vez fazia girar um esmeril apto a aguçar tesouras, facas, foucinhas e outros artefactos domésticos e agrícolas, obedecendo ao ritmo das firmes pedaladas do Lourenço.

Pendurados por todo o espalhafatoso mecanismo ambulante, viam-se restos de protectores de chuva já irremediavelmente perdidos para o acto mas que iam fornecendo material num concerto ou noutro que exigia maior intervenção de peças usadas.

Era baixo atarracado de pescoço grosso e mancava de uma perna. A cobrir a carne do corpo, vestia um fato-macaco de ganga azul com fecho de correr que abria a vestimenta até ao umbigo e nos pés calçava umas botas da tropa, sem atacadores e demasiado usadas para conseguirem oferecer alguma protecção e aconchego aquela figura castiça. Na cabeça redonda usava um chapéu preto de oleado de abas caídas que não deixava distinguir-lhe perfeitamente a brutalidade das feições mas adivinha-se pelo pedaço visível, que eram negras e curtidas pelo sol e pela chuva e seguram uma barba onde navalha de barbeiro nunca deve ter entrado. Aparentava não ser ainda velho mas tanto podia ter cinquenta como duzentos anos ou até ter a idade do mundo pois desde sempre, de geração em geração, se ouviu falar por aqui do Lourenço guarda –soleiro.

O povo juntou-se em volta do invulgar estabelecimento ambulante que estacou ao pé da igreja onde iria permanecer durante algumas horas. A alguns traziam nas mãos armações de varetas móveis que os últimos temporais deixaram danificados misturados com tesouras, facas e outras ferramentas que o serralheiro reciclaria a troco de dez mil reis.
A tarde avançava por entre o gemer do aço a sofrer no esmeril e do alicate de pontas que dobrava os arames danificados da varas que sustêm arcaboiço onde iria assentar o pano de luto protector de chuva. De vez em quando, e já com uma faca aguçada, experimentava o corte nuns tronchos de couve:
- Olha que maravilha, está como nova, até corta papel!

Por entre conversas circunstanciais e para ter sempre a logística sob controlo enquanto trabalhava, deitava os olhos pela multidão assegurando-se de que nenhum fiscal da câmara rondava o estabelecimento. Porém nem tudo corria de feição ao fazedor de maravilhas, as contas, as malditas contas acabam sempre por ter acerto apesar do tempo ter passado e apagado das memórias alguns concertos menos felizes do ano anterior. Pode acontecer, um artista só é verdadeiramente perfeito quando estão reunidas todas as condições necessárias ao bom funcionamento do seu atelier. A oficina ambulante não permite grandes feitos, tem algumas limitações, é um remedeio.

- Ó senhor Lourenço, o ano passado deixou-me este traste numa miséria, nem dois dias durou, grande concerto senhor Lourenço, mais valia ir-me ao bolso e tirar-me o dinheiro!

Era a Lucrécia a mulher do Antunes Perneta a reclamar dos maus ofícios do homem artista.

- Ò mulherzinha, quem aqui andou o ano passado foi o meu avô, eu nem pôs aqui os pés, andei por Cabeçais e Canedo minha santa!

- Ai foi, e há dois anos!? Foi por acaso o seu pai que me amolou as tesouras da poda que a partir dai só serviram para cortar sabão rosa e marmelada!? Acha que isto é coisa que se faça a uma velha como eu!? O que você precisava era que lhe partisse os restos do guarda chuva no lombo, no seu, no do seu avô e se calhar também no do seu pai!

- Ó mulherzinha remedeia-se já aqui o mal, disse o guarda - soleiro visivelmente agastado, pegando num guarda-chuva dos tais pendurados na oficina; fica com este, é dos bons, tem varas reforçadas e tudo, até lhe digo mais, era do falecido padre de Souzelo e nunca teve uma avaria.

- Dum morto!? Vossemecê anda tolo homem, esse dê-o à sua mulher se a tiver, aqui a Lucrécia nunca quis nada usado, nem guarda – chuva, nem homem!

O Lourenço calou-se, arrumou a tenda que se transformou em carroça e pegou na gaita que passou nos lábios cor de vinho tinto e aquele som desconsolado tomou conta de tudo.





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