quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Fado Falado

Anda cá, vem sentar-te no meu colo, apetece-me falar contigo hoje de homem para homem sem ter de partilhar com o mundo que não me quer ouvir, as razões por que as palavras podem ser um fado.
És ainda uma criança que não entende a grandeza do projecto que te colocaram nas mãos. Viver é muito mais que respirar, é muito mais que adquirir força nos músculos e empreender grandes caminhadas. Há só duas formas de viver uma vida; Uma é deixar que seja ela a escolher o caminho, a outra é sermos nós a definir o rumo e a marcar o ritmo das passadas no percorrer da direcção que pretendemos seguir. É como um barco que vai sempre para onde o comandante o manobrar.
A tua irmã e as tuas primas, brincam com bonecas, são mulheres, nascidas mulheres, sempre desempenharão o papel de dar amor, consolar, ponderar, discernir, eleger, conciliar, planear e procurar o ninho onde cresçam sob sua protecção os seus descendentes. Tarefa dificil, gigantesco empenho, vocação natural. Trazem dentro delas na carta mestra das suas origens uma lâmpada de Aladino que realiza sonhos e pode tornar em realidade as mais extraordinárias fantasias. Porém só lhes vai ser possível pedir três desejos que no limiar da vida se ressumem a virem a ser rainhas ou princesas e poder casar com o homem mais rico e mais bonito do mundo.
A lâmpada dos milagres esgota-se cedo, quando crescerem, chegará o dia em que vão ter de ser elas sozinhas a tentar realizar todos os sonhos que sonharam. Momento dramático esse meu pequeno em que sem ninguém que as possa amparar e aconselhar na tomada de tantas e dificeis decisões, sucumbirão em lágrimas aos golpes traiçoeiros do destino. Destino, lembra-te que segundo a mitologia grega, eram três mulheres, todas irmãs quem determinava o destino de todos os mortais. Mantém-se todavia dentro delas intacta a esperança, a mesma que vem de geração em geração a temperar os desenganos e as angústias dos dias que todos os que vivem experimentam. O sol que, aconteça o que acontecer, erguer-se-á todas as manhãs por detrás daquelas montanhas com a eterna missão de aquecer a terra e trazer de volta os sonhos e as ilusões que no dia anterior levou com ele.
Se respeitares a natureza inteira da mesma forma com que ela vai ser generosa contigo e te vai amar, virás a ser um homem realizado alcançando aquilo que é afinal o desejo comum a todos os mortais; viver em paz e ser feliz.
Respeita-a portanto acima de tudo e de todos por que sem ela jamais conseguirias pisar o chão deste mundo e se conseguisses, nunca sobreviverias num caos então tornado absoluto. Usa da mesma consideração para com os teus semelhantes e nunca permitas que conscientemente, dos olhos de alguém brote uma só lágrima de sofrimento causada pela tua indiferença e insensibilidade perante as fraquezas dos outros.
Ainda não te contei o que foi a minha vida mas temo que tenha sido uma fotocopia tirada na mesma máquina que regista e duplica as vidas de biliões de pessoas espalhadas pela terra, por humildade nem sequer te falarei nisso. Teve tudo e de tudo como as deles como decerto vai ter a tua com uma pequena particularidade comparada com as de muitos é que, apesar de ter sido ela a escolher o meu caminho, momentos houve em fui eu a comandar o meu barco e a traçar os desejados nazimutes. Nunca hei-de saber se o fiz bem ou se o fiz mal mas aprendi e fiquei a saber que, por nescessidade, algumas vezes todos nós teremos de agarrar com força o leme da nossa embarcação e marcar o rumo que nos pode levar ao porto da salvação ou a desfazer-se contra as pedras.
Olha duas rolas a cantar pousadas naquele pinheiro. Vieram de muito longe, atravessaram mares e continentes estranhos em busca de um lugar de paz onde criar os filhos. Tal como o seres humanos, invadiu-as um sentimento de melhor vida, um apelo do sangue herdado dos seus antepassados que num dia longínquo também para aqui vieram à procura do sol para criarem os filhos. Há um ninho naquele arcipreste, nesse mesmo ninho que vai resistindo às inclemências do tempo como ligeiras reparações feitas por eles. Dentro dele duas pequenas crias que os pais alimentam e desdobrando-se em permanente vigilância cuidam e protejem e fazem-nas crescer, há vidas dependentes nesse ninho tal qual como tu estás agora. Talvez nenhuma delas sobreviva e, depois de tantos desvelos e aprendizagem, deixem de voar vazadas por um tiro de caçador de mortes sempre prontos a destruir as belezas do mundo por que os homens gastam biliões para se instruírem e tostões para se cultivarem. Repete-se à frente dos teus olhos pequeninos as cenas centenárias que conduzem à preservação e continuação das espécies, caminho que a natureza percorre incansavelmente contra tudo e contra todos, sem ajuda de ninguém.
O sol vai a desaparecer por cima de Melres, é um enganoso por-de-sol, por que nesta fase o astro rei não pôe nada, tira tudo, leva dentro daquele clarão vermelho, muitas fantasias, os sonhos de alguns e outras abundantes ilusões que não chegaram a concretizar-se no efémero espaço de um só dia com luz.
Voltará amanhã então para repôr a esperança, vamos os dois vê-lo nascer do alto da serra da Boneca. Será um momento esplendoroso e inesquecível, maravilhosa e perfeita sinfonia que nenhum famoso compositor seria capaz de executar numa grandiosa partitura.
Primeiro um clarão enorme elevar-se-á no céu a Este, uma bola de fogo crescerá lentamente como se das entranhas da terra se soltassem em erupções fantásticas, todos os magmas ainda incandescentes. Iluminará as cristas das montanhas e fará ressuscitar a vida em todos os recantos onde chegar. Sem vacilar um instante que seja, descerá às profundezas dos vales onde correm rios como corre o douro que é nosso que, num cintilar de ouro e prata, despertarão também. Trará com ele novas e diferentes fantasias, outros sonhos e muito mais ilusões que poderão ou não sobreviver como aconteceu aos que ele leva hoje consigo. É um ciclo Afonso, uma roda viva que não pára repetindo-se eternamente.
Adormeceste no meu regaço, deves ter regressado agora no lugar de onde vieste, este mundo aflige, desilude e ilude, não é tão igual ao ventre de uma mãe onde toda a protecção é natural e todos os sonhos são permitidos, decerto nem conseguiste ouvir um terço das minhas palavras. Também não interessa para nada repeti-las por que a vida Afonso, não cabe em nenhum livro nem em nenhum filme e ninguém te poderá descrever por palavras o que ela é, como irá ser a tua por que apenas se conhece como foi parte da de alguns. A vida meu amor, é uma fado falado!



In "Insónias" de Manuel Araújo da Cunha

1 comentário:

Piko disse...

É verdade que o Homem nasce para realizar a Vida! E a Vida não deve ser apenas envelhecer, deve ser crescer! Estas duas concepções são bem diferentes!
Envelhecer qualquer animal envelhece; Crescer é uma prerrogativa dos seres humanos!
Gostei do contexto e da história!

Augusto Silva