quinta-feira, 29 de junho de 2006

A Morte

A Morte
Conto

Doce é a noite que embala os barcos na calmia do rio. Doce é o manto estrelado,num céu profundamente azul e doces são os sonhos das gentes da borda de água.
O sossego total da aldeia engana o mais pintado. Nem vivalma se vê ou se ouve. Não fora o ladrar dos cães do Álvaro Moleiro, poder-se-ia dizer que aqui não habita ninguém. A noite medonha e feia é estimada como preciosidade. Ninguém ousa desafiar e rasgar com passos a quietude das gentes. O manto de estrelas é o manto caridoso de uma paz efémera.
Soam as quatro da madrugada nos Estercos, Joaquim Correia salta da tarimba sem enxerga lastrada de mato. O que cobre os fetos e as carquejas secas, são retalhos de mantas já velhas. A tarimba formada por barrotes de eucalipto toscamente pregados, tem por baixo dela mais duas iguais onde dormem os filhos amontoados.
Saltou o rego de água que atravessa o compartimento único da casa. Abriu o postigo e uma baforada de ar envolveu-lhe o corpo. Fez o mesmo à porta e foi à cortelha coberta de lousa que faz de cozinha onde a Balbina a esposa, mexe a panela de ferro, onde um caldo de couves feijão e batatas, ferve a bom ferver fazendo vir à tona de vez em quando, um naco de adubo de porco, que ali vive há muito tempo.
Ele partirá breve para a faina do rio, ela afreimada subirá a serra na apanha da carqueja queiró e chamiça. Calcará lousas, calhaus e pedregulhos que lhe provocam gretas nos pés nus, vergada arrancará com mãos extremes os matos do monte com que vai fazer molhinhos. Atados, levá-los-á para o cais do Remoinho onde barcos abateirados os carregarão para as padarias do Porto. Comerá as papas que o diabo amassou sem um gemido sem um protesto, esse ficará retido na alma e no corpo para sempre a tornar as noites dolorosas recheadas de dores horriveis nas costas. Amargo é o ínfimo pão destas bocas, puro fel misturado de suor e muitas lágrimas silenciosas que jamais hão-de eclodir neste espaço perdido do mundo.
-Ò Balbina, já está amanhado?
- Vai para dentro homem, calça-te...olha a suféca!
O sol vai a pino neste dia quente entrovoado, lá ao fundo o comboio passa na ponte Dona Maria e faz ranger os carris e os ferros entrelaçados que sustentam a passagem do comboio.
Do chão empedrado da rua do Freixo, parece sair lume tal é a força do sol a crestar os paralelos coçados.
O Rufino desce a rua a pé trazendo no braço,presa pela asa, a cesta de vime que trouxera carregada de ovos. Fora levá-los a vender à padaria Corneta ali próximo da estação do comboio, em Campanhã. É quantos haja, já lhos pagam bem, dois tostões cada um, vinte e quatro tostões a dúzia, ora a multiplicar por seis, dá catorze escudos com quatro tostões. É bem bom. Com a outra mão apalpa o bolso das calças onde meteu as moedas. Dobra a esquina da fábrica de fundição Mário Navega e avista o barco encostado ao cais. Mais à frente vira-se para a foz e sente na cara a força da nortada. Um largo sorriso inunda-lhe o rosto. Apressadamente caminha para o barco. Os homens descansam na ré exaustos, recuperavam ainda forças para em breve fazer a viagem de regresso pelo rio sequeiroso, cheio de galheiros e de caroços no meio, que fazem lembrar carecas a crestar ao sol.
A ordem veio seca do arrais.
- Alar companheiros!
De um salto, os homens erguem-se para começar a faina. Soltam as amarras, a Verga sobe ao Capelo do mastro, rangem as Drinças, as Troças e a Ostaga, o Estaio estica na proa, os Vergueiros sustentam a vela, o Ougue afina também, os Braços fincam na ré e os Mancebos e as Relingas caem a prumo. Começa a navegação de regresso interrompida logo à frente no galheiro de Ribeira de Abade. Três saltam para fora descalços com as calças arregaçadas. O Pereira em ceroulas, o Rufino dá frenético à espadela.
É penoso vê-los, mais parecem bois cavanos a espumar da boca, puxando o arado.
Alar companheiros! Grita o Rufino.
- Está parado!
- O Malhado respondia esbaforido.
- Está encavernado! Aqui é baixo!
- Afinca-te homem. Grita o arrais.
Bem se afincam eles e a nortada que sopra e enfola as velas desfraldadas, mas em vão. Pregado ao fundo, o barco mal se mexe. Rangem desesperadas as madeiras e o mastro oscila perigosamente.
É assim na subida pelo rio acima, até à Varziela. Aqui,é o cabo dos trabalhos. O rio apresenta apenas um estreito carreiro a serpentear por entre um enorme caroço, seco, baixo não dá calado ao barco. Os três homens no limite das forças dão o máximo. A grossa corda sucada nos ombros e nas mãos, fere-lhes os ombros desnudados.
O Joaquim Correia cai de sufeca. As cordas e as Drinças amainam. A Espadela ergue-se da água e mostra a nu o Paíl, a Crista e o Coração. O arrais grita desesperado:
- Passa a laçada...sustenta! Amaina!
As cordas fazem vergar as árvores da margem onde foi passada a corda, sustentando aquele peso bruto a lutar com a corrente. Os barqueiros correm a pegar nos braços o companheiro abatido.
- É a sufeca! Diz o Pereira.
- Deitem-no nos taburnos! Grita o Rufino... Espera-se que acalme!
O sol é um braseiro no meio do céu. As pedras da margem queimam os pés. O Malhado dá de beber ao Quim com a Escudela, mas este parece não querer vir a si.
- Tem de ir a Melres ao médico!
Sentencia o Rufino.
- E depressa!
No silêncio da tarde estalou a ordem seca do comandante.
- Alar companheiros! Soltem as cordas!
Todos se entregam novamente à tarefa de tentar mover o monstro fazendo das tripas coração numa tremenda luta contra o tempo. A vida foge ao Correia e eles já se aperceberam disso.
Chegados a Melres, o Malhado vai a correr à farmácia onde o doutor joga dominó com o farmacêutico
- Ò senhor doutor é o Correia...está pronto!
- Está assim tão mal?
Perguntou o doutor
- Já não dá sinais de vida...é vir depressa...antes que seja tarde!
O médico vem à beira-rio. O farmacêutico deixou a farmácia de portas abertas e seguiu também, levando na mão uma pequena mala com primeiros socorros. Demoraram coisa de um quarto de hora e, quando chegaram ao barco já era demasiado tarde. O Joaquim Correia era um homem moribundo o doutor ainda o oscultou, mas foi apenas para confirmar o irremediável, o barqueiro finou-se ali.
O sol encobriu no céu, um trovão medonho abalou os montes e a chuva cai em bagadas grossas e dispersas.
- A voz do médico faz-se ouvir autoritária.
- Arranjem um lençol e levem-no para casa...faz-se de conta que morreu lá...é melhor assim!
O Rufino ainda deixou escapar um princípio de palavra talvez um protesto, mas é logo cortado pelo doutor
- Já te disse...levem-no para casa e enterrem-no! O meu colega passa a certidão depois!
É daqui que o mal provém. A indiferença da vocação (?) perante a desgraça alheia. Já de si a morte é a suprema perda o bastante para despertar num cão certa piedade, aqui ela ausentou-se da arte de tratar, do coração daquele, que mais que ninguém, tinha e devia de mostrar compaixão. Mas só os quatro, o Malhado, o Rufino o Pereira e o farmacêutico, à palavra morto reagem; tiram as boinas e descobertos com um joelho nos taburnos do barco, se benzem e rezam um Padre-nosso.
Chora rio doirado que aquele que te curtia as margens com os pés nus, que te afeiçoava os galheiros, que te conhecia as secretas manhãs, que te bebias as madrugadas, que te deliciava os poentes, teu adversário sim, mas nunca inimigo, se quedou morto na derradeira luta. Chora por entre salgueiros verdes onde rouxinóis cantam a última canção. Depois espraia-te no mar e diz às gaivotas que o marinheiro vencedor do rio, partiu para sempre.
A trágica notícia corre célere levada nas cristas das ondas do Douro pelos Rabelos que passam ao cimo e ao baixo. Assim se espalha e cria uma onda solidária. Todos os barcos que passam arreiam as velas em sinal de respeito. Os arrais mandam amainar o andamento. Os marinheiros sustêm os remos paralelos ao casco. O da espadela perfilado, mantém a rota e tira a boina em sinal de luto.
Passaram dois dias, fina-se mais uma tarde quente entrovoada. Um céu cinzento segura nuvens encasteladas que sobem do lado da Póvoa e outras que crescem das bandas de Cabroelo. O choque torna-se eminente, um ar suspenso numa calmaria diferente povoa estes mil anos de silêncio quando o enterro do Quim desce a Godinha. O céu empoeirado rasga-se à luz dos relâmpagos, faìscas caem para os lados de Folgoso. O ar torna-se pesado seco e quente, quase irrespirável.
A quietude da tarde só é cortada pela trovoada que entretanto estoirou e pelos gritos lancinantes da Albina, secos, que dos olhos já se sumiram as lágrimas há muito, choradas lentas por anos e anos de extrema miséria. Grita a morte do homem e a perda do sustento dos filhos pequenos que desamparados agora, não entendem a dimensão da tragédia. Mandaram o Quim para casa amortalhado num lençol trazido pelas mãos rudes dos companheiros. É melhor assim, o seguro não pagará nada e Albina irá receber uma pensão de noventa mil réis com dois tostões por mês.
A urna trazida por seis homens Barqueiros pára a meio da encosta. Numa casa em frente por cima das portas fronhas espetada num mastro pintado de azul, desfralda-se uma bandeira. Um distintivo ao meio com um barco desenhado a ouro, ladeado por duas palmas, encimada por letras também bordadas a ouro que rezam assim:
- Sindicato dos Barqueiros e Fragateiros do Pejão.
É ali a sede da organização criada por eles. O primeiro sindicato independente deste nosso Portugal.
Terminada a breve homenagem oféretro retoma a marcha. Muitos Barqueiros seguem atrás em duas alas e à frente, dois pequenitos seguram os dobrões doirados que pendem da bandeira estampada ao centro com a figura do São João. Os outros gozam descalços a vestidura da opa.
O enterro chega à Sobreira e começa a ouvir-se o badalar do sino na torre da capela. Um vento repentino envolve e levanta a folhagem em redemoinho pelo ar seco. Um relâmpago rasga a negrura do céu e cega os homens. Um estampido enorme estremece a terra. O Malhado murmurou baixinho ao ouvido do Rufino:
- Já chove em Pedorido

Sem comentários: