quinta-feira, 29 de junho de 2006

O Jólim


O Jólim
Conto

- Fica ai Jolim! Até logo!
É o Marto para o cão arraçado de perdigueiro e podengo, travesso que o olha com uns olhos profundos e dóceis. De orelha tombada deu meia volta e deitou-se na borda do caminho. Aqui é o limite o fim da caminhada desde a Corga até Germunde atrás do dono à nove anos seguidos. Vai ficar a dormir todo o dia e quem passa, vê-o enroscado e sai o cumprimento:
- Olá Jolim! Ele abre os olhos inocentes, abana o rabito e embrenha-se novamente no sono que só seria interrompido pelo atirar das pedradas do Lesmia. Este nunca aceitara o bicho. A sua mente tacanha nunca viu com bons olhos tamanha fidelidade. O Marto não podia dar-se ao luxo de ter uma bem-querença fosse de gente ou de cão. Para ser fiel estava lá ele sempre a render vassalagem ao senhor Jean Tyssen. Raivoso não dá sossego ao animal.
Quando chegar as cinco e meia da tarde o Jolim interrompe o deleite. Com o rabito a dar a dar, anda numa fona de trás para a frente inquieto e frenético. Olha para baixo até que o Marto dê figura a aparecer por de trás da carpintaria. Chega a cima e é vê-los aos dois envolvidos em festas e carinhos que mete cobiça. O cão salta-lhe ao peito e ele puxa da saca de ganga azul e presenteia-o com restos de côdeas de broa de milho. Depois seguem caminho, um a arrastar as pesadas botas de água, o cão saltiteiro alegre e feliz à frente. O Jolim é um rico cão de caça, de vez em quando empeuga no carreiro e lá vai ele pelo monte fora atrás dum coelho que perseguido, entra na toca mas só depois de uma longa corrida.
O Marto aprecia e logo lhe vêm à lembrança os dias em que com o Manel Vasconcelos o encarregado da serração das Concas, de mota Harley Davidson se metiam à estrada até Barca de Alva às perdizes. Tempos bons esses. De arma Francot de Liége calibre dezasseis de canos truxados ao ombro presa pela bandoleira, batiam as encostas do Douro naquela lonjura. À ida paravam em Cernancelhe e temperavam a tarde com fêveras de javali e cogumelos silvestres
O Manel rapaz para uns vinte e tal anos, alto magro e bem parecido, carregando no peito um coração do tamanho dele, vestia a rigor os trajes da caçada. Botas caneladas, por dentro delas, calças de bombazina castanha a condizer com uma samarra tipo gabardina empelada no pescoço com pele de raposa e na cabeça um chapéu de feltro, com uma pena de perdiz espetada no laço completavam a indumentária do caçador.
O Marto usava a mesma roupa conhecida da mina só alterada pela ausência da sujidade negra que ficara nas águas da ribeira e na cabeça, em vez do capacete de chapa, levava enfiado até às orelhas, um boné de pano e couro que sobrara ao Manel. Entre os dois deitado ao través, ia o Jolim a filmar com os olhitos arregalados toda a paisagem da estrada. No suporte da mota atrás, amarravam uma pequena caixa onde levavam sardinhas que em Barca de Alva trocavam por bifes que depois assavam no meio do monte.
- Levantaram ali!.. Dizia o Marto e logo o Manel galgava terreno e ouvia-se o estampido do tiro que ecoava nos cabeços.
- Boca lá Jolim! E lá ia o cão em correria pelo monte abaixo.
- Já está marrado!...E dali a instantes haviam de aparecer com a peça atravessada na boca. Lá vinham as festas ao bicho que saltava perdido de contente. Depois punham-se de novo em andamento, agora o Marto por cima e o Manel por baixo. Nuns carriços, três perdizes saltaram picadas, ouviram-se dois tiros e o Marto corria a bramir com o cão.
- Vai de asa...boca ó ferido Jolim! Mas era inútil, a perdiz ferida corria ao baixo à procura da água e foram de baldes os esforços do cão.
O Marto passa o lenço na testa suada com a querer afastar aquela recordação, mas há ali uma testemunha, já velha cansada e meio cega. O Jolim. Os anos apagaram no bicho e nele próprio, o vício terrível que os fizera correr montes e vales. Os anos e a rudez da vida e o trabalho penoso que o tornou velho antes do tempo
- Então...vais dormir aqui?
É o Milheira a lembrar ao Marto que a Corga ainda é longe. Ele sacode a cabeça e retomam a marcha.
Veio a noite aquela que seria a mais negra da vida do Milheira. Perdera-se o Marto nas profundezas da terra.O Milheira vai apanhar o caminho da Póvoa à beira da carpintaria. Lá o Jolim enroscado na berma abana o rabo alegremente a olhar o mineiro com os olhos tristes.
- Anda Jolim! Anda pequenino! Mas nada, o bicho olha para baixo e não arreda pé,
- Anda Jolim! Não vale a pena, o animal cumpre à risca o mandato do Marto, só avançará somente à voz do dono. Enroscou-se novamente e meteu o focinho no meio das patas da frente e ficou à espera.
O Milheira vai já a desaparecer na curva e mais uma vez se volta para trás insistindo:
- Anda Jolim! O eco da sua voz perde-se por entre o barulho medonho da lavaria. Segue então vergado ao peso da notícia que transporta.
- O Marto morreu.
Na ponte do Ínha volta-se olha para trás, parece-lhe ouvir os passos do companheiro nas tábuas rangentes da ponte, mas não é o vento a agitar com força os salgueiros da margem. Começa a subir e a pensar, sempre a pensar. Como é que ia enfrentar a Chica, a Rosalina e o bando de filhos do amigo, sentados à espera na parede do grilo!?
Angustiado segue lento, tão lento contrastando com as apressadas batidas do seu coração inquieto, atónito, desorientado. Mas não será preciso que o Milheira fale. A notícia não vai no seu coração, esse leva a dor o sofrimento, a notícia vai nos seus olhos espantados, escrita com lágrima, clara como clara fora a madrugada que os trouxera a Germunde. Não faz minga que fale, que a voz se lhe embargue na garganta presa, comovida, basta um olhar silencioso e todos compreenderão a tragédia. Morreu o Marto súbito e precocemente, ignorante das coisas que o rodeavam, das angústias da Chica das negruras das noites da Rosalina. Morreu sem saber que a sua morte decidirá a vida do neto que não iria conhecer nunca. A Chica não foi a Lever.
O Jolim esperou pela noite fora. Esperou sempre deitado, enroscado no pó negro, sem comer nem beber por dias a fio. De vez em quando dava uma volta por ali, mas a força do seu instinto diz-lhe que não pode avançar mais. Impaciente gira de um lado para o outro sempre à espera do Marto. Desanimado, volta ao sono que será eterno. O Lesmia passou por lá como de costume. Sorrateiramente aproximou-se na mira de lhe espetar dois pontapés mas, ao constatar a morte do animal, estacou de repente. Ninguém bate num cão morto. Um sorriso cínico atravessou-lhe o rosto. Virou as costas e subiu feliz e certo de que a partir de agora só ele era fiel ao patrão.
Pela manhã, o Milheira piedosamente, com a mesma pá que enchia o carvão, cobriu o seu corpo morto com entulho.
Findou assim a fidelidade ao dono. Nove anos de dedicação total pedindo em troca, côdeas de broa e algumas carícias. Deixou de saltar alegre à frente do mineiro e de Barca de Alva, das perdizes, já nem recordação guardava. Cumpriu até ao fim a sua missão. Morreu no seu posto como um soldado firme sem arredar pé, à espera do Marto indiferente a tudo, até á própria morte.

Sem comentários: