segunda-feira, 19 de junho de 2006

O Migalhas



O Migalhas
Conto


Uma chuva miudinha cai lentamente sobre a terra. De vez enquando um raio de sol rasga as nuvens e dá colorido à paisagem. No sino da capela batem cinco horas, o douro está sereno como um lago reflectido o casario da beira rio.
Migalha vem dos lados da adega onde certamente afogou a tarde em copos de tinto. Cambaleia o barqueiro, mas segue em frente num rumo há muito traçado, o banco de pedra junto à tileira.
Abeire-me dele.
- Boa tarde, digo.
Não respondeu, julgo até que nem deu pela minha chegada.
A chuva cai molha-lhe a roupa, molha-lhe o corpo, mas ele serenamente continua a olhar para o rio.
Assim permaneceu por algum tempo quedo, mudo, silencioso.
Repentinamente sai dos seus lábios um murmúrio de canção. Primeiro baixinho como quem chora, depois um pouco mais alto como quem canta
- Tu não sabes que dentro da minha alma, conservo aquele carinho que tive para ti. Tu não sabes, que nunca te esqueci, se lembrares o passado, te lembrarás de mim...
Agora há lágrimas no rosto do barqueiro, o fumo do cigarro é denso, tapa-lhe o rosto por instantes.
- Boa tarde, repito!
Nem um gesto nem uma palavra, continua a olhar o rio e a entoar aquela estranha canção.
-Tu não sabes, que dentro da minha alma conservo aquele carinho que tive para ti...
Olho-o como se fora a primeira vez, então o Migalhas tem alma? Uma alma que parece ter sentido um dia longínquo um certo carinho por alguém. Mas por quem!? Nunca lhe conheci namorada ou esposa, a minha lembrança deste homem, é remota quase se perde no tempo mas nela não consta qualquer relação de amor, fosse por quem fosse.
Agora canta ainda mais baixinho, quase não se faz ouvir:
- Desde o dia em que partistes sinto angústia no meu peito, que será que terás feito, do meu pobre coração...
Tira do bolso um lenço e seca as lágrimas que lhe afloram aos olhos e se misturam com chuva. Dá por mim, olha-me longamente com aqueles olhos de menino medroso.
- Boa tarde, digo!
-Boa tarde, respondeu o Migalhas ensaiando uma breve explicação para o que lhe pareceu um acto menos digno;
- Sabe, estava aqui a olhar o rio e de repente vieram-me à lembrança coisa da vida já de há muito tempo, de há muitos anos...
- Pois é ti Migalhas, às vezes a gente lembra-se do passado...
- Pois, você era uma criancinha nessa altura, sabe eu também já fui jovem, tive as minhas coisas, nem lhe conto...Algumas mulheres povoaram os meus sonhos da mocidade. Foi bonito de viver esse tempo, mas tudo passa, tudo morre, morre para o mundo mas não morre para a gente, dentro do peito fica sempre uma lembrança, uma recordação. Lembranças boas, recordações más, conforme.
- Esta era uma recordação boa ti Migalhas!?
- Era, era uma recordação boa, lembro-me como se fosse hoje; sentada neste mesmo banco ao meu lado o seu perfume misturava-se com o perfume da tília em flor, o seu sorriso meigo, o seu andar gentil de menina embriagavam o ar. Como amei essa mulher meu Deus, exclamou com um suspiro.
- Se a amou assim tanto porque nunca se casou, ou aconteceu alguma fatalidade!?
- Coisas da vida filho, coisas da vida.
Secou novamente as lágrimas e a chuva com o lenço, levantou-se lentamente, olhou o céu e a mim com um olhar estranho que pareceu durar eternamente.
- Até amanhã.
Fico-me a olhá-lo até ao fundo da rua a vê-lo desaparecer na esquina da casa da Sobreira. Falou mas não me contou tudo, haveria muito mais para dizer, pressenti-o nos seus olhos nos seus gestos. Certamente nunca o fará, morrerá um dia com ele esse segredo que carrega na alma há tanto tempo.
A chuva torna-se mais densa e uma brisa forte agita as folhas da tileira e parece-me ouvir novamente o murmurar daquela canção:
…Tu não sabes que dentro da minha alma, conservo aquele carinho que tive para ti. Tu não sabes, que nunca te esqueci, se lembrares o passado te lembrarás de mim...
- Até amanhã, ti migalhas!
Mas nunca houve amanhã. Nessa noite, Migalhas adoecera gravemente vindo a falecer poucos dias depois. Nunca me contou o resto da história e eu só pude sentar-me no banco da tileira pelos dias fora...
O tempo passou, nova primavera despontou, os pássaros cantavam enamorados, muitos perfumes se espalhavam pelo ar, as árvores despontavam para nova vida...mas a tileira, nunca mais deu folhas,nem flores, nem perfume...simplesmente secou.

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