quinta-feira, 6 de julho de 2006

O PESTANA


O Pestana
Conto

O Pestana não parou, meteu a direito pela linha da máquina na borda do Arda até à Estação. Ali subiu a encosta a pique até Oliveira do Arda. Leva-va no cansaço das pernas uma outra carga de dor e sofrimento. De vez enquando, passava o lenço tabaqueiro na testa a enxugar as grossas gotas de suor que lhe escorriam para as vistas. Parou por instantes na íngreme subida e, os seus olhos molhados, perscrutam o horizonte inquietos. Tudo é difícil de entender para o Pestana, por mais que desse voltas à cabeça, nunca conseguirá explicação ou consolo para a angústia que lhe invadia o coração. Tudo se passou de repente, como se por magia, como se na verdade tivesse sido apenas um sonho. As paragens do caminho, não eram mais que tentativas de encontrar a realidade que, para seu desespero, lhe fogia há algumas horas. Olhava o horizonte em aflição como se procurasse ali as silhuetas ou os passos dos companheiros perdidos. Tudo em vão, tudo inutil que ao fundo do vale só corre o Arda silencioso e, no céu, apenas algumas nuvens matizam um azul permanente. Estva de facto sozinho, fora então verdade a tragédia que teimava em admitir. Mas, se nada o retirar do sonho, basta-lhe dar ouvidos às badaladas do sino de Pedorido. Esse diz tudo claramente, não se sabe quem, mas fica-se a saber que morreu gente.
Avançava de novo na costeira e ao suor da testa juntam-se-lhe umas poucas de lágrimas que rebeldes saltavam daqueles olhos encovados e mortiços. Já ia a passar em frente ao hospital, quando lhe pareceu ouvir um recado trazido no som da ligeira brisa:
- Pára camarada. Entra na morgue onde jazem em pedra fria os teus irmãos. Ordena-lhes, em nome do Deus que lhes estendeu os braços da libertação, que se levantem do leito da morte. Pede-lhes as mãos lívidas agora, diz-lhes que não receiem, que venham, que não se envergonhem da condição de mortos, que morto também foi Cristo e ressuscitou. Tira-os dali, antes que os médicos lhes cortem a carne e lhes serrem os ossos à procura das causas da morte que foi óbvia. Não os deixes escrever na folha; morte natural, é mentira, tu sabes que é mentira.
Leva-os contigo. Sobe com eles de mãos dadas ao alto de S. Domingos, mostra-lhes a paisagem que ignoraram em vida, o arda a beijar o douro, as terras do Porto e de Gaia ali tão perto. Escutai a Banda dos Mineiros do Pejão, vossos camaradas, a entoar no coreto uma marcha triunfal. Senti o arraial pejado de gente, que pelas fraldas da serra se delicia com farnéis trazidos de longe.
A seguir a Banda vai tocar o Inferno e o 1812, com rigor com perfeição como só ela é capaz. Nenhum de nós há-de lá estar para ouvir. Tu Pestana, de um salto estarás em casa, em Serradelo que é já ali; eles abraçados subirão ao céu que é muito perto, por detrás daquelas nuvens que vêem dos lados da serra da Freita; eu descerei os carreiros da serra, que me vão perguntar pelo Maneta, num pulo estarei na Senhora das Amoras; chegarei ao Choupal a Pedorido; atravessarei o douro até ao Remoinho; subirei a calçada íngreme e vou sentir nas ruas de Rio Mau, o cheiro das sardinhas assadas; ouvirei rezar o terço dentro de todas as casas, a oração dos pobres, o apelo àqueles que julgam ser os únicos a poder salvá-los. Deixarei a noite fechar-se sobre mim, sobre a terra que me viu nascer. Deixarei os corpos dos mineiros, esgotados, doentes de alma infinitamente sofredores, tombarem nas camas de ferro coroa-de-rei de enchergas de palha, descansarem enfim, adormecerem e sonharem com uma risonha Primavera
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1 comentário:

Piko disse...

Comentar este Conto não é nada fácil para mim e já irão perceber porquê... O PESTANA que é o personagem desta história era natural de SERRADELO e creio que fez toda a sua carreira profissional na CARBONÍFERA, onde começou na Crivagem,que era por onde começavam os miúdos e ali se mantinham até aos dezoito anos, pelo menos, seguindo depois a maioria deles para as Minas! Era este o percurso "normal" e os rapazes sabiam-no bem,e, por isso, uma grande percentagem procurava o futuro profissional fora da Carbonífera, chegando alguns a emigrar para as Américas, especialmente para o BRASIL!
Não foi esta a saída que o PESTANA escolheu e terá decidido continuar a apostar no COUTO MINEIRO e ali se foi formando como profissional e como homem sob as ordens do "velho" A. CORREIA de Pedorido e também, creio, que do NUNES de Rio-Mau! Ah, falta acrescentar que também me recordo muito bem de ter visto inúmeras vezes o PESTANA a passar a pé em Pedorido para o trabalho em GERMUNDE e vice-versa, o que confirma em absoluto o conteúdo da narrativa. Só faltará dizer mais uma coisa acerca do PESTANA e que por amor à verdade vou ter de acrescentar:- Era um rapaz esmerado consigo próprio, muito limpo, e quem o visse a passar pelos povoados de OLIVEIRA do ARDA e de PEDORIDO não diria que o seu trabalho era a lidar com o carvão oito horas diárias e sei que tanto o CORREIA como o NUNES gostavam do seu profissionalismo!

Entretanto, chegamos ao ano de 2001 e o Conto aqui narrado não podia prever, ninguém poderia prever, que uma grande tragédia iria atingir as gentes da RAIVA, SERRADELO e OLIVEIRA do ARDA, com o estúpido acidente da Ponte de ENTRE-os-RIOS!... Eram quase todos mineiros ou familiares de mineiros do Couto Mineiro do Pejão e nunca mais irei esquecer que o velho A. CORREIA, que havia sido seu Encarregado na Crivagem, foi ele próprio que a chorar me deu a triste notícia de que o PESTANA também fora uma das vítimas da queda da Ponte em Entre-os-Rios!...
A partir daquela data, vivo com a ideia de que o meu amigo da adolescência e que foi o PESTANA, e, com quem deixei de conviver desde os MAGNÍFICOS anos SESSENTA, porque, entretanto, procurei outras paragens, dentro do nosso PORTUGAL, vivo diàriamente com a ideia de que o PESTANA já não está entre nós, mas guardo-o como uma referência, não por ser melhor que os outros, mas por ser diferente de todos os outros!
Obrigado PESTANA por teres sido um bom amigo e um muito bom exemplo!

Por último resta-me dar os parabéns, que são sinceros, ao autor da narrativa, porque sou um incondicional admirador destas terras e destas gentes que se inserem em todo o Couto Mineiro do Pejão! E não sinto vergonha, bem pelo contrário, de vos confessar que me emociono até às lágrimas, sempre que relembro os maravilhosos anos que ali vivi e foram sòmente VINTE ANOS!