terça-feira, 29 de agosto de 2006

O CRIME DE EIRA DE MELO

Enquanto os lobos uivam famintos na serra das Banjas e os ventos de Fevereiro sacodem inclementes as árvores da margem do rio, o Arnaldo da Picota atraca com perícia o Rabão no cais de Eira de Melo. Neste agreste e molhado entardecer, já outros barcos regressaram da faina de descarregar no Porto, no cais da Ribeira, as lenhas de peso, achas e rachões, o combustível requerido por diversas padarias que a cidade sustenta. O Olho Verde, o Moca e o Brinca, passavam já as sirgas nas argolas de ferro cravadas no granito do paredão, assegurando assim, mais reforço à precária estabilidade da grande embarcação sacudida pelo vento de leste. Regressaram do Porto e algumas mercadorias que carregaram ali, repousam nos taburnos, porões visíveis do barco, aguardando o início da descarga. São sacos de arroz, de açúcar e latas cheias de carboneto misturados com fardos de bacalhau com destino à loja do Martins Alves. Mais abaixo, no canto de jusante, outra embarcação balouça ao sabor das ligeiras ondas, enquanto o Albino Louseiro vai escoado a água acumulada no fundo. Os de Pédemoura irão dormir aqui, pois pela madrugada vão carregar novamente a embarcação com mercadorias destinadas ao Porto. É dia de feira em Melres e grande a azáfama no talho do Antonino marchante. Do improvisado e notável matadouro da casa em frente, saem postas de carne de boi que ainda quente vai ser retalhada em bifes e postas para assar. Os melhores, juntos com as costeletas e os lombos, vão para o padre da casa maior cuja criada já aguarda sentada no banco de madeira, tricotando uma peça de roupa, num canto do açougue. De seguida despedaça-se carne de estufar e uma posta do vazio vai inteirinha para o senhor da quinta da Coucela, homem de teres e haveres mas que mesmo abastado, não chega aos calcanhares dos Ferreiras. A carne sobrante deste despacho crepuscular arrefece prostrada em cima de toalhas de linho e amanhã será vendida aos pedacinhos de cem gramas nos talhos de Melres e de Rio Mau propriedades do Antonino.
O António Brinca rompeu pelas ombreiras da porta do estabelecimento a roer um naco de broa de milho e ao deparar com semelhantes postas de chicha ainda fresca, arregalou os olhos como se tivesse visto um fantasma. A tanta fartura diante das vistas famintas que cobiçavam tudo, até as lenhas de peso depositadas no cais e que iam desaparecendo sem que ninguém soubesse o seu destino, despertou nele um ímpeto tal que o havia de conduzir à morte. Levou no bolso um nico de chicha meio gorda para o caldo e no coração a sentença pelo pecado que os seus olhos namoraram.
Já serenou a povoação e o rio, as fainas amainaram e não tarda que os barqueiros adormeçam cansados. Dos montes, lá nos altos onde o mato é denso, estalam os uivos das feras nas Quebradas e o medo aparece na alma do povo. Reforçam-se as trancas e recolhe-se o gado por que os lobos com fome não poupam ninguém.
Os ecos ouviram-se por todo o lugar e até em Santiago. Na serenidade da noite, acenderam-se luzes difusas na madrugada invernosa e indagaram céleres as causas de semelhante profanação do descanso nocturno. Mas nada só silêncio a noite devolveu aos homens. Silêncio profundo de tumulo em cemitério abandonado. A manhã, a risonha manhã acordou o povo e revelou só um pouquinho da cobarde tragédia: O Brinca foi baleado por três tiros à queima – roupa, ali no cais de Eira – de – Melo onde atracam barcos e se transaccionam as mercadorias, tombou morto nas profundezas do rio e o seu corpo nunca mais apareceu à superfície apesar das buscas intensivas do povo que nem sequer sabe quem foi que o matou apesar da Guarda Republicana passar a pente fino o lugar e aqui permanecer dois anos
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