segunda-feira, 25 de setembro de 2006

ALBERTO MINHOCA

Alberto Minhoca
Conto

O Alberto chega a casa esbaforido. No banco corrido da lareira a mulher mexe o caldo de couves, feijão e batata que ferve em panela de ferro de três pernas. Magra, esbatida e desolhada parece que foi desenterrada à minutos. Um raio passa-lhe no pensamento, vai à sala e na cama de ferro embrulhado num cobertor, está um rapaz ai para três quilos com uns olhitos ainda cegos a reluzir no escuro. O seu primeiro impulso foi pegar-lhe ao colo, despertara nele aquele carinho que a rudez da vida apagara há muito. Perdeu já a lembrança do dia em que pele última vez acariciara um filho, só ralha e bate por tudo e por nada. Não por ódio mas toldado pela inclemência da vida que lhe faz perder a paciência, a tolerância para com os outros, descarrega assim brutalmente a dor que o consume. Mas esta criatura ali deitada indefesa, inocente a florir para a vida, merece dele um gesto muito mais ousado. Estanca de repente, a pequenina criatura é demasiado frágil para ser pegada por mãos tão calosas e negras. Olha só emocionado. Volta novamente à cozinha e no lavatório de lata passa as mãos com sabão rosa tentando tirar o negro que não sai e mesmo esfregando bem, ficam visíveis aquelas marcas azuladas cicatrizadas que parecem mal a qualquer um. Olha-se no espelho encaixilhado e pendurado de esguelha na parede que reflete a sua imagem apalhaçada e preta, treme de medo e de vergonha perante tão desgraçada visão. Vira-se então para a mulher e diz em jeito de desconcertante compensação; - Sábado vamos à feira a Melres! Nesta frase simples e sozinha, estão implícitos embora disfarçados, a ternura e as carícias que morreram no dia seguinte em que vestida de noiva a levara à capela de S. João. E o amor!? Esse nunca existiu ali, houvera na verdade mas não por esta mulher que trouxera no ventre estes filhos todos mas por outra de quem a última carta desbotada de letras, acendera a lareira alguns anos atrás. Morrera a ilusão definitivamente e num gesto já sem esperança, queimara o último capítulo desse doce e idílico romance. Tudo acontecera há quinze anos. Em plena juventude o seu coração dava largas a uma paixão desenfreada a uma espécie de loucura que nada mais foi do que isso mesmo. Foi na Senhora das Amoras que conhecera aquela que havia de se tornar no grande e único amor da sua vida. Era de Guirela a mocetona alta e bonita de cabelos soltos pelos ombros abaixo em cascata, com um sorriso desenhado no rosto que encantava qualquer um. Mas foi ele o Minhoca a ser de todos o único a sucumbir à beleza infinita da Cristina. Correu para lá meses a fio. Atravessava o rio nas tardes de domingo correndo a pé pelo monte fora até à terra da noiva. Como risonha e feliz foi essa época em que movido primeiro pela desmedida paixão, deixou-se prender todo pelas garras de um amor que julgou de ser eterno. Eterno! Como se alguma coisa deste mundo enganador permanecesse e vingasse aos ventos maléficos e cruéis desta vida. Nada resiste, a terna e pura amizade, a paixão mais ínclita o amor mais verdadeiro, todos sucumbem perante a crueldade do mundo e a maldade de muitos. Assim como nascera se apagou a chama daquela ilusão. Os pais da Cristina abastados lavradores com criados e tudo o mais, não podiam aceitar e não aceitaram a ligação da filha ao mineiro. Lembrança terrível esta! E as palavras do Sr. Arnaldo!.. -Ò homem, você tem lá sustento para dar à minha Cristina. Ela está habituada a fartura e a vida mimosa...Vai lá agora ser criada de alguém...Lavar roupa preta todos os dias e você nem para sabão ganha. A mina não é vida para ninguém...É um cemitério, trabalho de pobres e analfabetos! - Mas!.. - Não há mas, nem meio mas...As coisas são como são e de mais a mais tenho coisa melhor em vista para a minha filha...Agradecia que desandasse daqui...Ela vai para Cabeçais para uma casa farta, está tudo tratado!.. Foram estas palavras ditas secas que o encheram de vergonha e de raiva. O último adeus ao seu amor, foi feito ali do neio do caminho num acenar de mãos trémulas. Tudo se perdera naquele instante. Moeu aquilo pelo caminho de regresso a casa vergado ao sofrimento maior do ser humano arrastando consigo um coração desfeito e uma alma dilacerada e meia morta. Como dói ainda essa lembrança, remexeu nas cinzas do passado e encontrou ainda um brando lume teimoso em se extinguir, talvez aquele que a última carta acendera. O que vale a vida perante esse momento de elevação suprema reprimida toda ela, deixada desde então ao sabor do acaso!? Nada, apenas o mesmo que vale a existência de um cão vadio que conhecera o dono e fora abandonado por ele. Pobre Alberto sabe-se lá qual foi a dimensão do teu crime primeiro que te sujeitou a tamanho castigo. Como nasceu, também se abafou o sentimento repentino, fechou-se novamente a porta do sacrário da sua alma. Quis voar por instantes mostrar num afeiçoado gesto de carinho e de ternura, sentimentos que reprimia no peito há muitos anos mas que por breves instantes ultrapassaram sem ele querer, as barreiras da mudez assumida. Mas tem de recordar, falta-lhe a derradeira lembrança desse amor, a tragédia que lhe ensombra a existência que ainda lhe dói e muito na carne. Nesse dia a Cristina ouvira tudo em silêncio, do pai já esperava aquilo, da vida muita uma mão cheia de felicidade. Ruiu naquele instante todo o projecto futuro, enlutou-se-lhe o coração e de alma já prometida ao mineiro nunca haveria de trair aquele amor fatal. Foi um Domingo pela madrugada, enquanto o povoado ainda dormia foi à arca da mãe e do enxoval, tirou o vestido de noiva antigo e branco e vestiu-se com ele. Na cabeça colocou uma grinalda de flores de malmequeres presos a um pequeno véu e assim preparada saiu de casa. Percorreu descalça os caminhos da terra aqueles que lhe traziam maior recordação. Depois foi sentar-se na pedra da mó local onde aos domingos trocava juras de amor com o Alberto.
O dia nasceu por entre as badaladas do sino a convidar para a missa e ao mesmo tempo a Cristina lançava-se em voo do Penedo da Águia. Toda a aldeia a procurou aflita presentindo a tragédia mas só pelo meio-dia o povo viu ao fundo da ravina o corpo despedaçado da jovem. Ao vento balouçava a fita dos cabelos, o vestido branco perdera a alvura e transformara-se numa enorme mancha escarlate. A aldeia chorou como nunca o fizera por ninguém e há quem diga que naquele local onde nasceu uma roseira brava, quando a brisa sopra mais intensa se ouvem sons que parecem gemidos de mulher. Uns dizem que é o rio Arda a bater nas pedras, outros que é o vento nos fraguedos e muitos outros dizem serem suspiros da noiva infeliz. Ao certo ninguém sabe, mas que se chora naquele local, essa é a verdade. A dura realidade sobrepõe-se ao bater do coração, o Alberto enfia a boina remendada na cabeça, pára na soleira de lousa da porta, puxa do bolso o atado dos cigarros fortes e acende um com as mãos negras e vacilantes. Grossas nuvens de fumo envolvem-lhe a cara ocultando duas lágrimas que rolam desesperadas pelas faces negras de carvão abrindo dois regos paralelos. Foi preciso muito para o mineiro chorar, nem a rudez a inclemência da funesta existência, a perda do seu grande amor o conseguiram, mas a visão destes olhitos sem futuro à procurar de luz, humedece e rega aqueles olhos verdes.

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