quinta-feira, 21 de setembro de 2006

Chico Marta

Chico Marta
Conto


- Quem é Deus!?
A pergunta estala na quietude da tarde, o eco explode nos vitrais coloridos da igreja de S. Paulo em Sebolido e mais parece um ribombar de trovão produzido na garganta do padre examinador:
- Quem é Deus?
Aqui, no meio da canalha quase ninguém sabe, só o Chico Marta ousa explicar:
- Deus é o meu pai!
Aquele som arrastado sai a custo da garganta e mais parece um grunhido agonizante. Os olhitos pequenos aparecem e desaparecem por entre um pestanejar nervoso e rapidíssimo.
- O teu Pai do Céu? Pergunta o padre.
- Não senhor abade, o meu pai Zé Maria!
A resposta é lógica e admirável por vir de um cérebro tão atrofiado. O resto da canalha, das pequeninas ovelhas, ri a bandeiras despregadas.
O Chico liga Deus à hóstia consagrada, ao pão de trigo sem fermento que lhe alimenta a alma e o corpo. Ele sabe, sente desde a nascença que o verdadeiro Deus está ali materializado naquele pedaço de pão tão doloroso como se todo ele fosse o próprio corpo do Senhor.
- Tomai e comei todos, este é o meu corpo!
É aqui que o Chico bebe a verdade de que precisa. Pão, dor de o conseguir, esforço tenaz e sofrimento, por tanto igual a Zé Maria Marta
O homem da batina preta fica calado por instantes, entende o conteúdo da resposta mas não lhe interessa divulgá-la, mas sabe que o Chico tem a razão toda. Deus é o pão de cada dia, aquele que alimenta, que acarinha, que protege, que ama e não castiga. Deus é para o Chico, o Zé Maria Marta, um borrachola, que nas tardes ingere o maduro até se perder nele. O que chega a casa ébrio e resmunga com a mulher. O que mija e entorna o carboneto do gasómetro no quinteiro. O que cava o chão de Germunde, um mineiro, um letrado que busca a notícia nos poucos jornais e livros que lhe chegam às mãos. Jornais velhos que já embrulharam sardinhas, livros antigos sebentos pelo uso mas a quem o Marta arranca as últimas letras como se de perfume se tratasse. O que discute na taberna as questões políticas que a poucos interessam. O que fala na consciência colectiva, no poder da classe operária organizada, na democracia. O que tem cartão da empresa que lhe permite comprar alimento na malfadada cooperativa dos mineiros e barqueiros do Pejão, aquela que lhe fica com tudo, ou melhor com o resto do todo. Deus para o Chico é o seu próprio pai. Esse patife que consome os seus dias a cavar o carvão nas profundezas da terra sem nunca ter tratado de si. Este é o Deus do Chico, uma figura simplória e ridícula, um homem, um imbecil que nunca soube o que é o assentar de um fato de fazenda no corpo, só a ganga azul da camorcina e das calças do fato da mina. Um se humano exactamente igual a todos os homens, feito por Ele à sua imagem e semelhança.
O Zé Maria Marta não é Deus não senhor. É apenas um homem como também o foi Cristo Redentor. Todos o sabem, mas o Chico dá essa resposta no exame para a comunhão solene.
- Deus é o meu Pai!
O padre passa à frente, disfarça, dá como válida a resposta ao consenti-la e, o Chico vestido a rigor e de sapatilhas azuis, vai professar e assumir a responsabilidade da fé que lhe indicaram num Domingo quente de Agosto.
Nada se alterará na sua vida a partir desse dia. A demência envelhecerá com ele restando-lhe apenas uma certeza; vai perder o seu Deus para sempre por que o Marta vai morrer!
Então, vagueará pela vida inquieto, quererá rezar mas não saberá a quem. Por isso, vai contorcer as mãos em desespero quando ouvir as badaladas do sino da igreja de S. Paulo. O Chico é meio anormal como diz o povo. Não tem as luas todas, é meio inocente como dizem alguns. Mas o certo é que, o Chico sofre e chora por saber que vai perder o seu Deus.

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