quinta-feira, 16 de novembro de 2006

A TABERNA


Tira-lhe os olhos, chega-lhe a roupa ao pêlo, parte esse estupor, esse sacana, essa besta da trampa, põe-lhe as tripas cá fora, dá-lhe com a caneca!..
É o Bicha-Cadela a incitar à luta o Concertina movido por ódios antigos que nem sempre foi incapaz de concretizar nessa altura transformando-os em pancadaria. Agora por obra do acaso, dispõe do meio para atingir esses malvados fins. Pegas antigas guardadas dentro do peito por anos a fio, contidas por alguma necessidade e mais tarde pela incapacidade da força do corpo que já se esgotou nos barcos, nos Rabões e o transformou num cangaço velho e mau. Reformado há mais de vinte anos, arrasta ainda aquele corpo retorcido alquebrado e doente, morada de reumatismo e albergue de queixas e ódios sem limites, até aqui à taverna do Cunha.
No tédio dos intermináveis dias, ele e muitos outros vêm para a venda transformar as tardes num autêntico arraial. Ignorantes das dinâmicas do Mundo, transformaram-se numa espécie de penedos inactivos. Uns afogam as horas em canecas de vinho tinto, outros pintam o tempo ora de cores sinistras, ora de uma beleza tão mentirosa como irreal. Histórias intermináveis são contadas e saboreadas quase todos os dias que ainda lhes faltam viver. Começadas, perdem-lhes o fio a meio engatando noutras sem pés nem cabeça. Qualquer presente desconhecedor do meio, às páginas tantas, fica sem saber de que terra é. Confusos são eles e as conversas, desafinados da mente por força do álcool, falam, falam sem dizer coisa com coisa. Muitas vezes se desentendem, comungam o mesmo pão da demência efémera que os vai cada vez mais embrutecendo. Então brota dos malvados instintos, o ódio dissimulado e disfarçado a custo.
Tudo é pouco claro nesses momentos de fúria. O beijo colectivo na caneca de porcelana branca dá lugar ao nojo destas bocas porcas. Surgem do interior deste mundo fantástico, as pragas infernais, as injúrias despropositadas, as gratuitas ofensas a todos e a tudo.
-À seu filho de uma cabra! Hoje é que vais morrer sacana! A tua mulher a dá-lo no areio, e tu aqui armado em cão com pulgas! Tens comichões!? Eu tiro-tas, meu animal! Racho-te as hastes a meio. Faço-te em pantanas num instante!
Sai tudo e de tudo. As ofensas são o menos repetido que são dia sim, dia não, já há muito perderam o autêntico significado. Pior é a ousadia do desafio à porrada; está tudo muito bem, mas isso, não tem perdão. Inicia-se então o arraial de pancadaria nas costas e murros na cara que vão pondo os olhos de alguns à Belenenses, avermelhados em volta e mais tarde roxos e negros. De vez em quando, se a luta teima em durar, lá vem a tranca de ferro empunhada pelo Cunha, restabelecer a paz. E restabelece.
- Ò Pinto, esteja ai quieto nesse canto, você não é para aqui chamado...ouviu!?...
É o Afonso, o regedor advertindo o velhote que procura a pistola que traz á cinta. Velha e ferrugenta é duvidosa a sua eficácia a disparar.
-Vai já fogo! Mato dois ou três num instante!... São todos meus inimigos!...Diz o Pinto a espumar da boca e a tossir como um cão.
- Esteja mas é quieto e calado homem...Se você em vez dessa porcaria, trouxesse ai à cinta um ou dois salpicões, não lhe faltavam amigos, ora com esse ferro velho e a dizer que mata, só pode arranjar a levar no pêlo!?...
Uns minutos de silêncio sucedem-se à bulha e, a confirmar a súbita calmaria houve-se forte a voz do Besouro:
-Ó Sr. Cunha deite aqui mais um quartilho. É a senha, o anjo mensageiro da tranquilidade precária. A caneca de porcelana branca com asa de metal circula novamente no recolher dos beijos tintos de todos eles. As mulheres acocoradas ao longo das escada do Cipriano, vão-se afligindo durante as bulhas e molhando o bico na caneca às escondidas dos homens. A noite restabelece a fragilidade da paz que só vai durar até ao outro dia.
A nortada falece. O Douro amacia e muda de vestes tornando-se um lago. Os galos anunciam a recolha crepuscular e cantam em diferentes lados do povoado. Os fumos das lareiras sobem no ar convidando às ceias antecipadas da reza do terço. Nesta hora mágica nasce algum carinho e alguma ternura dentro das quatro paredes de xisto e todos se entregam à providência Divina de
alma e coração.

Sem comentários: