quinta-feira, 8 de maio de 2008

A Promessa

A Promessa

Ainda existe a frondosa nogueira a sobreviver num aluvião formado pelos detritos que violentas cheias deixaram na foz do rio Mau como se o tempo não tivesse passado por ela. Aquele pequeno promontório feito de areia e lodo conserva no silêncio das coisas materiais dramáticas histórias das vidas de gentes que por ali passaram anónimas ao longo de dezenas de anos. Algumas, por tão banais que foram, esqueceram-nas definitivamente os homens e nunca mais eclodirão nos céleres espaços das memórias; outras, talvez aquelas que mais e maior dor provocaram, permanecem como ferida a sangrar pelos tempos fora sem qualquer possibilidade de cicatrização. A vida é feita de gostos e desgostos e de muitos mais adjectivos que qualificam os momentos em que acaba a fraternidade nas pessoas e começa a hipocrisia. Nem tudo o que reluz é oiro e se muitos, em paz, se julgam cumpridores dos deveres que têm em relação ao próximo, falece-lhes a tranquilidade da consciência por haver ainda tanta gente a sofrer inocentemente por esse mundo alem.
Sítio de beleza inigualável onde a imensa massa montanhosa se deixa enfeitar por esta corrente líquida, transparece reluzente nas profundezas de um vale só imaginado num sonho. E são precisamente os sonhos, antes esporádicas alucinações que nascem e morrem todos os dias como gritos imediatamente abafados mas teimosamente a sobressair do abandono e da miséria quase absoluta que por aqui campeia forçosamente aceite sem claros queixumes mas anseio permanente de revolta por parte de um povo generoso, herdeiro de tradições milenares, conservador e continuador das artes de navegar e pescar neste rio que é um prodígio da Natureza. Artífice na construção dos próprios barcos e redes com que ganha o sustento, é objectivo, e pragmático mas infelizmente vive preso nas garras de obsoleto poder.
Quem vem dos lados de Entre-os-Rios, surpreende-se com a terra encravada num recanto do rio com as casas debruçadas sobre a água numa harmonia perfeita, numa cumplicidade permitida por ambos só raramente quebrada por cheias descomunais que afligem, destroem e matam o resto da esperança.
Vista do lado de lá, da margem onde Pedorido tenta progredir, é um presépio que Deus quis deixar ali. Rio Mau é decerto um dos locais mais paradisíacos do rio, mas isso de pouco ou nada lhe tem valido porque beleza não enche barriga e moça bonita raramente casa rica.
Havia a viver numa barraca de madeira situada por baixo desta árvore centenária uma rapariga que sonhou vir um dia a ser feliz. Viam-na ali parada a olhar um horizonte feito de céu e rio a procurar na bruma daqueles tranquilos amanheceres, um pequeno barco azul que vira partir num dia já meio esquecido na sua lembrança e era como se uma grotesca e imóvel estátua de gesso esculpida por algum tresloucado escultor.
Nessa embarcação de madeira, alguém tão importante e essencial como o ar que respirava fora-se nas distâncias da sua plena e airosa juventude rumo ao país da árvore das patacas carregando aos ombros montanhas de ilusões à mistura com sonhos trazidos pela carta de chamada enviada lá de longe pelo seu primo João.
— Vou para o Brasil, Maria do Céu! Voltarei rico para te levar comigo, meu amor! Vais viver como uma princesa! Espera por mim! Prometo-te que voltarei!
Os seus olhos inocentes ficaram pregados àquele barco que partia do cais do Remoinho. Correu desvairada pelo carreiro pedregoso da margem acompanhando a embarcação até ao promontório e viu-a desaparecer lentamente na curva das entulheiras de Germunde. As lágrimas vieram depois suplantar a alegria da promessa como se o céu desabasse todo nesse instante. O coração sente primeiro que a razão e, embora a esperança se mantivesse intacta, lá dentro onde o peito é sacrário inviolável, começava a nascer o sofrimento.
Tinha então dezoito anos a menina, qual mariposa em flor que emanava a angélica beleza de uma rapariga criada na doçura das brisas do rio, tão delicada como nenúfar a boiar na superfície de um lago tranquilo. Semanas, meses, anos se passaram desde esse dia fatídico que marcou a espera feita de uma esperança tão cruel como devastadora na sua vida de mulher a quem prometeram um sonho no azul imaculado de um maravilhoso conto de fadas.
Ali na foz do rio Mau onde se vislumbra a liquidez que o barco sulcou, estava sempre alerta a figura transformada em louca de Maria do Céu desgrenhada, um fiapo de gente que o tempo alheio a tão grande sofrimento ia consumindo sem qualquer piedade. Olhava uma paisagem de abandono, às vezes enegrecida pelo fumo de uma locomotiva que passava em Pedorido, puxando vagonetas de carvão, a caminho das lavarias de Germunde.
Se um barco aproava o horizonte de Fornelo e as velas se distinguiam pequeninas em frente a Moreira, ela levantava-se como um falecido do caixão e indagava aflita quem viria nesse batel, mais parecendo um morto que procura o instante antecessor de uma abrupta morte que lancetou a felicidade e todas as aspirações de um ser tão inocente como ela. Tanta amargura contida nos seus imensos tempos de solidão fixada num único objectivo que a transformou nesse farrapo humano desamparado no mundo sem receber uma carta que fosse do seu amor, uma notícia do distante Brasil a refazer a esperança que morria lenta e inexoravelmente dia após dia.
Muitos barcos passaram no rio numa sina de viagens constantes ao longo destes cinquenta anos. Rabelos desciam desde o Alto Douro carregados com pipas do generoso vinho a caminho dos armazéns de Gaia e mais tarde regressavam vazios pedindo socorro nos galheiros. Outros cruzavam as águas nas fainas da pesca mas nenhum deles era azul nem aproou ao cais do Remoinho trazendo a bordo o moço que tinha sido o seu enleio. Esperou sempre, enfrentou frio e calor a morrer de saudades todos os dias e ele sem nunca voltar.
Morreram-lhe os pais e os irmãos devorados pela tuberculose, deixando-a aqui abandonada como espólio inútil de antiga batalha. Passou natais a consoar sozinha a ceia da amargura, a ver os sonhos dissolverem-se todos neste sítio descampado e outros amores que lhe surgiram a volatilizarem-se negados pela fidelidade ao juramento de amor e felicidade que um dia lhe tinham prometido.
Os cabelos desgrenhados ficaram ralos, transparentes como rede de pesca apodrecida pelo uso. O rosto enrugou-se e já não tinha a beleza de outrora. Os olhos embaçaram-se, perderam o brilho na contemplação sem descanso daquele pedaço de rio. Suja, andrajosa, comia restos de peixe deixados por pescadores e dormitava enroscada na terra do chão:
— Pobre louca! — Diziam sem saberem e conhecerem o drama que a consumia e a fazia ser assim tão desleixada. Ninguém lhe manifestava qualquer afecto e nunca houve um ser que a fitasse bem nos olhos e que parasse no caminho tortuoso da sua existência e a abraçasse como irmã, como mãe, como amiga, como um ser humano perdido neste oceano turbulento que é o mundo. Alguma pessoa a quem ela abrisse o coração e pudesse dizer toda a verdade, aquela que dói e que paciente sentisse e compreendesse o seu medonho sofrimento, a dor que a tinha enlouquecido.
Já completamente desgastada, vencida pelos anos e quando a fragilidade do corpo se recusava a leva-la mais uma vez ao porto da sua esperança, num esforço derradeiro, arrastou-se pelo chão de cascalho até ao Remoinho quando a lua cheia definia os contornos do lugar numa noite estrelada tão bela como são as noites deste sítio deslumbrante e, deitada nas pedras húmida do cais, viu brilhar lá longe, na sua última alucinação, a embarcação azul tão esperada no seu coração despedaçado que trazia à proa a figura querida do seu adorado António. Nas suas últimas forças, ergueu os braços em acenos desesperados em direcção ao barco fantasma, gritando como uma demente:
— António, António, voltas-te para mim! Olha, eu esperei-te aqui sempre, sabia que me virias buscar um dia como me tinhas prometido!
Fez-se silêncio no cais do Remoinho nessa noite deserta em que só alguns barcos dormiam encostados uns aos outros e nem vivalma cruzava por estes solitários caminhos. A sorrir com a aparente felicidade dos loucos, exalou o seu último suspiro. Morria ali à beira do rio que lhe levou tudo num barco tão azul como o céu do seu nome e o frágil corpinho rolou já sem vida até cair na água.
Na manhã seguinte, encontraram-na a boiar na transparência líquida e o Douro era um esplendor translúcido e rendilhado de espuma branca a envolver o cadáver daquela infeliz. Julgaram que se matou e levaram-na embrulhada num lençol branco e enterraram-na sem honras cristãs fora dos canteiros enfeitados do cemitério, num local sem lápide com um nome, que todos pisam com os pés, destinado aos suicidas, àqueles a quem muitos tolos julgam que até Deus não abençoa.
Passaram-se vinte anos desde esse momento, mas há quem conte que um certo dia um barco azul aproou a Fornelo e trazia em pé na linha da proa um homem já velho vestido de fatiota branca. Dizem que devia ser o António, que procurou pela mulher que um dia aqui deixou à sua espera e que se entristeceu e comoveu ao saber que já não era viva e que, vergado como quem vai a caminho da forca, subiu a encosta na direcção do cemitério e que levava um ramo de flores brancas nas mãos que lhe tremiam.
Na água e no recanto defronte à nogueira em que o corpo de Maria do Céu apareceu morta, nasceu um tapete de nenúfares que todos os anos florescem e ali permanecem ainda hoje apesar de o rio ter mudado totalmente de aspecto.
A velha nogueira deu sementes e agora são três árvores soberbas a enfeitar aquele sítio de rara formosura.

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