segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Cipriano


Por entre os primeiros alvores do amanhecer, Sebolido aparece ao fundo da serra da boneca, encravado entre as fragas da Abitureira os Penedos da Sombra e o rio. Estende dois braços lancinantes na paisagem. É terra de lavoura de pescadores e de mineiros. Casas afidalgadas alinham-se aqui e ali no caminho que conduz à igreja de S. Paulo. Não há luz eléctrica em Sebolido como não existe nas outras terras vizinhas. A luz é de candeias, de lampiões a petróleo e de velas de cera. As noites são escuras como breu e, só muito raramente cortam as cerradas trevas os difusos clarões das artesanais lanternas quando algum ser aflito procura ajuda no lugar ou ainda se alguma bruxa vai lavar roupa à presa de Junçadelo. Fazem alarido, batem com as mãos na água e agitam-se desesperadas no meio da noite. Cobrem os corpos nus com longos lençóis brancos que lhes emprestam um ar ainda mais sinistro nesta escuridão. Dizem ser as mesmas que assombram as margens do rio mau. Aparecem pontualmente nas noites de lua cheia atulhadas de assombros e espalham o medo e o terror por estas bandas. Dizem uns que são bruxas, outros que são mulheres viúvas que vivem em solidão e, encobertas pelas trevas dão largas a angustiantes perturbações reprimidas durante a claridade dos dias. É gente que vive em desespero alimentando penoso isolamento que as tornou desequilibradas, aflitas comportam-se como mortos -vivos.
Sentado no cruzeiro edificado no largo da aldeia, o Cipriano vai assistindo ao passar dos companheiros.
Está de baixa há seis meses e doente, muito doente. É pele e osso o mineiro. A carne, se é que alguma vez existiu ali, já há muito se ausentou definitivamente. Ficou esquelético, tísico, um fiapo de gente.
Vencido pela silicose, acalenta ainda uma réstia de melhoras mas tem consciência de que se fora já a terna juventude, o jogo do peão e da pincha dos botões. Agarrou-se na infância ao trabalho da mina para poder casar e sustentar a mulher e os filhos. De uma vez só, rendeu-se ao tormento que no íntimo sabia que acabaria assim.
Breves foram as ilusões da mocidade perdidas entre alguns dias de escola e da saca das pinhas que apanhava no monte para acender o lume. O sonho da meninice era lindo e abrasados, ocupara-lhe o peito na peregrinação dos anos.
- Ser pescador do rio.
Mas a arte de cercar o peixe, não dura mais que três meses. Depois, com os primeiros alvores do verão, finda-se em tentativas infrutíferas de lanços e lanços perdidos. O rio dá o pão em fartura. Prenhe de lampreia e sável, sacia as barrigas dos pobres por algum tempo mas acabada a sazonal migração dos peixes, deixa o povo de mãos atadas à cabeça, sem saber o que fazer à vida.
O Cipriano passa a mão no cachaço e observa o horizonte largo que têm pela frente. Há rugas nas faces do mineiro. Traços adquiridos pela severidade da vida e não pela idade que ainda não justifica esta velhice precoce. O cigarro forte baila-lhe nos beiços apagado, como se tivesse nascido ali e fosse perpétua a sua estadia. Queima ainda o resto de vida que pode existir naquele corpo.
Pouco dorme, a tosse rouca e profunda, é um tormento e, a falta de ar nos pulmões, provoca-lhe uma tosse convulsa que o arruína e sufoca Ergue-se da cama muito cedo, ainda com noite cerrada e, é para aqui que vêm matar saudades dos amigos, da labuta, ou então, do magro salário que perdeu por ter metido baixa.
Olha as mãos onde a vida lhe seca desesperada. Quer gritar, soltar ao vento deste florir do dia, a revolta que acolhe no peito há muitos anos. Nem um som produz a sua voz embargada, parece que nunca será capaz de tal atrevimento. Há-de ficar-se pelo silêncio eterno, levará para o túmulo todo esse sofrimento, todo esse sentir demolidor. Não há lágrimas nos olhos parados deste homem, por mais dolorosas que sejam as angústias e as dores, um mineiro não chora, apenas se lhe nota a quebrar a aparente serenidade umas gotas de suor gelado na testa franzida. Tudo é sombras, tudo é silêncio neste claro amanhecer. A mágoa, cada um sente-a no peito e é só sua. Mais ninguém, só Deus o poderia ajudar se quisesse. De vez em quando reluz junto ao cruzeiro, a trémula luzinha do cigarro que o Cipriano reacendeu calmamente e que lhe vai antecipar o fim programado. Aqui, neste recanto onde dão a volta as procissões, está sentado um homem que nunca aprendeu a rezar.
O tormento que o vai minando começou há muito tempo. A tosse, a falta de ar nos pulmões impossibilitavam qualquer esforço mas foi-se mantendo animado escondido na ténue esperança de melhoras, que no fundo sabia não existirem. A partir de agora, é a piorar a olhos vistos. Já viu outros mais novos do que ele, entrevados pelo mesmo mal embarcarem para a terra fria. O médico da empresa, na consulta de rotina, todavia não fora peremptório:
- Isto é pó Cipriano! Abifa-te homem que isso passa, senão, mete-se a reforma, ficas a receber uma tensa, és capaz de dar trinta por cento de pó, são mais quinhentos por mês!
- Abifa-te!
Esta palavra martelava incessantemente a cabeça do mineiro.
- Abifa-te!
Como é que podia abifar-se, se nunca na vida tinha visto um bife à frente dos olhos!?
- Abifa-te!
O doutor deve estar tolo! Ele saberá quanto custa um quilo de carne de vaca? Então a certificar a realidade por todos ignorada, vêm-lhe à cabeça as cenas diárias da ceia. A mesa da cozinha estreme, em redor os oito filhos fraldrucas, no centro um prato de barro com um galo desenhado no fundo a criar ilusões e, em volta deste, dez garfos de ferro com cabo de madeira à espera dos bifes. Eles vêm, redondos, castanhos com casca e, por cima deles, mais bifes compridos, escamudos com cabeça e tudo.
- Abifa-te Cipriano ou morres!
Não há escolha fácil entre as duas possíveis opções.
- Abifa-te ou morres!
Os bifes são sardinhas, cinco para dez bocas, mesmo assim não é mau de todo. O dinheiro da baixa não dá para mais. Meio salário, como meia é agora a cabaça do vinho. A farmácia que não pode evitar leva tudo. Sendo assim, morre Cipriano, decide pela parte mais barata, não há outra hipótese, só te resta morrer.
Esta é a realidade nua e crua, tão verdade, tão nua, tão crua, que o sino da igreja de Sebolido o irá confirmar muito em breve, dobrando a finados.
Que desgraça de vida!
No entanto há cães em Sebolido e Rio Mau que comem bife todos os dias. Os que se marram nas perdizes da Fraga Amarela e os que empeugam nos carreiros do areio de Hortos atrás de coelhos. Cães de raça, tratados melhor que gente.
O Cipriano vai falecer esganado pelo pó, faltoso de ar nos pulmões, aflito na agonia e por falta de bifes. O médico está farto de saber o que o espera desde a primeira consulta. Já deu esta receita a muitos, a mesma, a certidão de óbito antecipada, sem nome, sem data, sem critério, desumana, injusta e cruel.
- Abifa-te!
- Ele o doutor, abifa-se. O Toninho de Melres sabe quem lhe pode pagar a carne e abre-lhe as portas do talho de par em par. E os galos e cabritos que recebe por dar baixa a alguns malandros e lhes facilitar as reformas? Abifa-se o homem tanto, tanto, que há-de morrer novo. Talvez não faleça de silicose, mas certamente de fartura de bifes.
- O Cipriano fica ali parado como estátua erigida à silicose a ver os antigos companheiros desaparecerem na curva do caminho enquanto a claridade começa a descobrir Sebolido.
O Douro serenou mais uma vez; é um encanto. Espelha uma magnífica lua prateada e parece um poema de amor, uma sinfonia silenciosa, o canto de uma possível esperança ou o choro dos puros.

1 comentário:

Piko disse...

Não tenho nenhuma dúvida que o Conto que fala do CIPRIANO foi verídico, e, todos sabemos, que a Silicose era a doença mais temida pelos mineiros e que muito cedo os atirava para a cova, mas, que, antes disso, lhes roubava toda a qualidade de vida, fazendo-os sofrer durante muitos anos e sem hipòtese de cura!... Parece-me, que,só nas últimas duas ou três décadas, os mineiros no Pejão, tiveram melhores condições para executarem, em Segurança, a tarefa difícil de extrairem o carvão das entranhas da Terra! Até lá, os pulmões de centenas de mineiros pagaram uma factura de valor muito elevado e a maioria desses homens mineiros eram recrutados nas aldeias do Couto Mineiro, mas, também acontecia, encontrarmos mineiros que distavam TRINTA E QUARENTA quilómetros!
Sei do que estou a falar, porque vivi em Rio-Mau até aos sete anos e a seguir em Pedorido até aos vinte! Recordo-me muito bem dos muitos Ciprianos vítimas da Silicose, tinham um rosto e um ar muito cansados e onde era visível um permanente sofrimento...

Por toda a involvência que a história nos relata, e, onde ressalta toda a nudez e toda a crueza da vida difícil do que era ser mineiro, por volta dos meados do século XX, a história do Cipriano tinha razões de sobra para ser incorporada num determinado manual escolar. Aos entendidos na matéria da Educação aqui fica o repto!
Dou os parabéns ao Autor que merece ser incentivado a prosseguir nesta nobre e bela causa que é a LITERATURA!

OBRIGADO!