quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

A Primeira Dança

Pedorido acordou frio embrulhado num manto de neblina de um branco imaculado, lençol de puro algodão com que a Natureza acaricia quem a estima. Das serras que delimitam a aldeia nem sinal, perderam-se na nuvem gigantesca que avançou sobre ela e só um pedaço da povoação se avista lá ao fundo recolhida na margem do rio Douro.
A manhã avançou sem pressa espreguiçando-se sobre a água e, aos primeiros alvores da tarde o sol espargiu uns raios de luz sobre aquelas almas perdidas num deserto tão longínquo da civilização que provavelmente ninguém neste mundo teria conhecimento da sua existência.
Tem campos estendidos em socalcos por uma área limitada com matos e, como num jardim babilónico, as bastas oliveiras, carvalhos, laranjeiras e alguns choupos são as únicas árvores inclinadas para o céu. As videiras que produzem o vinho americano, alinham-se em bardos perpendiculares uns aos outros até quase tocarem no rio Arda que quebra a meio a povoação e desagua ali perto por entre choupos que, perfilados, parecem grandioso exército em cerrada formação, parecendo aguardar a hora de um combate final. A claridade alastrou enfim mostrando a soberba paisagem envolvente onde, do outro lado do rio Douro a linda aldeia branca de Rio Mau, surge altiva debruçada sobre a água numa cumplicidade permitida há séculos e, já com meio caminho percorrido no céu, o astro rei principiou a aquecer medroso os povoados.
Fumegavam os matos, as oliveiras, as vides e a serras em volta eram um processo inteiro de evaporação dos cristalinos orvalhos que o nevoeiro deixou. Um cheiro acre e doce espalhou-se pelas aldeias que assistiam serenas ao evoluir de mais um dia tão igual a tantos outros de que nenhuma história fala e de que só os poucos habitantes destes ermos vão acumulando no baú das recordações como quem acautela incalculável tesouro da cobiça de olhos alheios. Depois de demoradas actividades no recolher dos milhos lá em baixo onde uma reentrância de água aguarda o último estremecimento do rio Arda, refresca e permite o cultivo do cereal, a noite veio antecedida por um entardecer fantástico onde as cores da paisagem se modificavam em cada segundo e os rios eram fios de oiro e prata a serpentear lentamente no seu milenar leito, imperturbáveis e sossegados, sem fazerem contas à longa vida que já tinham e que haveriam de conservar por toda a eternidade.
Os melodiosos sons de música de concertina, viola, violino e cavaquinho espalharam-se sobre a eira onde o Sebastião comandava o racho de mulheres e homens que desfolhavam espigas e os cantares ao desafio formavam o despique de nostálgica doçura. Depois veio o baile em que rapazes e raparigas evolucionavam no estrado de ardósia negra, descalços, ao ritmo da chula do Douro e do importado vira do Minho.
Margarida estava sentada na sua cadeira ao lado das outras e via-as felizes rindo esperançosas de uma dança. De vez em quando, num compasso entre as músicas, lá vinha um rapaz e ela de olhos suplicantes, com um alvoroço a crescer-se no peito, ansiosa, aguardava agitada o desejado pedido que a metesse no baile e a fizesse rodopiar nos braços de alguém no improvisado palco. Eles passavam de pé pela mole de raparigas expostas e, às vezes prendiam-se mesmo a seu lado numa cachopa mais bonita que ela. Nessas alturas, obressaltava-se-lhe o coração cada vez com mais força ao ver que já quase todas bailavam e ela a quem a Deus não favoreceu de cara perfeita e corpo elegante, magra e desengraçada, permanecia quieta a sofrer as dores do abandono. Dentro do peito, no seu jovem coraçãozito que pulava assustado, fervia a esperança e a ardente promessa feita a si própria de, se por um acaso algum a desejasse, se lhe prestasse atenção, o recompensaria pagando-lhe com gozos a prenda de uma dança, fosse quem fosse a figura de homem que deixasse cair um olhar sobre o seus olhos castanhos e lhe estendesse a mão que convida ao abraço.
Naquela noite fria mas quente de emoções quando já tudo fazia prever mais um desconsolo na sua alma despedaçada, apareceu o Sebastião que retardara a entrada no baile ocupado na recolha das espigas. Era um rapagão alto, de olhos verdes, com a camisa de flanela aberta no peito, parecia um anjo enviado do céu ao encontro das mulheres desejosas. As outras excitadas pela presença do rapaz, compunham os cabelos, faziam poses de artista e as mais arrojadas, sorriam-lhe de longe e mostravam a brancura das coxas trespassando as pernas joelho sobre joelho. Ele veio caminhando de uma ponta à outra da eira, parou à sua frente e perguntou-lhe:
-A menina quer dançar comigo?
Margarida não esperava semelhante convite de um homem assim pois nunca nenhum, malparecido ou formoso se aproximou dela e a convidou para dançar e, se fosse verdade, se por obra do acaso ele não estivesse a brincar, seria a coisa mais importante que alguma vez lhe aconteceria na vida. Como envolvida no torpor de uma alucinação, de faces coradas, deixou-se envolver pelas fortes mãos do rapaz que a conduziram levitando como uma pena por sobre toda a sua colossal emoção. As outras morriam de inveja segredando a um canto e ela feliz volteando nos braços daquele moço, príncipe encantado que a vinha resgatar de medonhas humilhações sofridas no recente passado, parecia um anjo a subir a um céu só imaginado num sonho.
Rodopiavam os dois agora solitários no meio da eira que Margarida ia transformando no centro do universo durante aqueles minutos. Instantes encantadores, todos a olha-la perplexos e espantados, quase esquecidos da própria dança, rendiam-se ao inesperado e inimaginável acontecimento.
Margarida era agora uma mulher perfeita, a mais bela de todas, a única, a escolhida do homem que todas desejavam. Sebastião ia-lhe falando ao ouvido nas voltas da dança que agora era um tango e as sua mãos fortes cingiram-lhe mais a cintura fina apertando-a contra si com força e ela feliz sorria com lágrimas nos olhos. A dança acabou e ele veio traze-la ao lugar agradecido e as outras olhavam-na espantadas e ciumentas enquanto ela segurava um lacinho que apertava no peito o vestido de chita fingindo-se ocupada para esconder a enorme felicidade que pela primeira vez sentia na vida.
Olhava para o fundo da eira cheia de esperança. O rapaz voltaria? Não, decerto foi por engano que a veio buscar; agora iria dançar com outras muito mais atraentes e bonitas que ela. A orquestra começou a tocar uma musica dolente e Margarida ia entristecendo a cada acorde, quando Sebastião entrava mais uma vez na eira. Quem seria a escolhida deste homem agora? Talvez a Rosa, de todas a mais fascinante e cobiçada por muitos, também à espera como as outras de brio ferido por não ter sido a escolha primeira daquele rapaz bonito. Sebastião levantou os olhos por sobre todo o espaço do baile e sorriu, sorriu para Margarida lá do fundo da eira.
-Ai minha Nossa Senhora de Fátima, rezou ela apreensiva de olhos outra vez marejados. Lá de longe, Sebastião com um dedo apontando para ela perguntava-lhe em mímica se ela queria dançar. Ela sorriu como o rosto iluminado que dizia, sim! A improvisada orquestra tocava a balsa da meia-noite e ele apertava-a contra si, ela a sentir-lhe o bater do coração, o calor do corpo, o sangue a ferver-lhe nas veias e a respiração quente pertinho da sua boca. Ergueu um pouco a cabeça, olho-o na profundidade daqueles olhos verdes e depois semi-cerrou os dela suplicante da carícia do seu primeiro beijo. A música progredia no espaço da eira num sussurro mágico e Margarida perdida no sonho, agarrada a ele, sentiu pela primeira vez na vida a quentura de uns lábios pousarem nos delas.
O nevoeiro voltava a formar-se sobre o rio que parecia sorrir e, lentamente ia subindo as serras fazendo Pedorido e Rio Mau desaparecerem mais uma vez do mapa do Mundo.



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