quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Marcha ao Alvorecer


Marcha ao Alvorecer

Conto



Em fila indiana, no centro da madrugada escura e fria, gasómetro pendurado na gola da camurcina de ganga azul, capacete de chapa enfiado na cabeça, os homens que minam o interior da terra em Germunde descem o empedrado granítico da rua do Remoinho, arrastando pesadas botas de água, de marca pinta - amarela.
As silhuetas recortadas nas coçadas pedras da calçada pelo difuso clarão de uma alvorada que se declara ainda afastada, fazem lembrar estranhos fantasmas de gente ou fila de condenados à morte a caminho da forca.
Na realidade, escondidos nas sombras desta noite constelada, irmanados no idêntico sentimento de uma aflição redobrada, movem-se como autómatos sem vacilar para um desfecho silencioso e lento, às vezes abrupto, mas sempre inexorável. Esta estranha marcha poderá ser a derradeira e, muitas vezes, para alguns deles é. Apesar da bestial realidade, do fantástico drama humano que por repetido se adivinha, esta é uma ocasião de beleza rara com o manto da noite a cobrir as terras, a desenhar os contornos das serranias na débil claridade. É colossal a força que vem dos lados de leste a elevar-se vagarosamente rasgando com um gigantesco clarão de luz, todos os mistérios da natureza que as sombras nocturnas agasalharam. Que maravilhoso momento é contemplar o nascer do sol no alto da serra de S. Domingos. É um esplendor fantástico este que deixa os nossos olhos deslumbrados perante a magnífica obra celeste.
O rumor surdo das pesadas botas a pisar as pedras da calçada, corta o absoluto silêncio dos pobres condenados. Não falam, há muito que se esgotaram as palavras pela ausência de quem afectuoso as ouvisse e, a violenta realidade desta hora convida ao silêncio e à meditação.
São muitos a povoar a noite. De variadas e diferentes procedências, algumas situadas muito longe das beiras do rio douro onde igualmente se não pode ficar imóvel à espera do sustento, todos se reencontram aqui na confluência dos caminhos que atravessam montes e vales e, quase sem um cumprimento ou outro qualquer gesto de saudação, completam o resto da jornada lado a lado envolvidos numa mudez terrível e assustadora. Todos eles carregam nas pernas, além do resto do sacrificado corpo, as mais complexas emoções que um ser humano pode experimentar em semelhantes circunstâncias. Cada alma destes mineiros é uma alma desamparada e sozinha, entregue a si própria, sem passado, sem presente, sem futuro e até sem Deus. Os olhos que reluzem nas duas cavernas ao cimo do rosto, deixam perceber a medonha angústia que os deteriora e mal reflectem as semelhantes que a vida produz, arquivadas à força no espírito e que se manifestarão num noutro tempo e em outros diferentes lugares. Não desapareceram por qualquer arte de magia, foram apenas substituídas pela mais pavorosa de todas; serem enterrados vivos.
Na funesta procissão que rabisca pelos caminhos do monte em frente a S. Domingos e já a aproximar-se do leito do rio, vai o Alberto Minhoca que delgado pela magreza carrega nas pernas um metro e noventa de corpo esquelético. Ao cimo da cara cumprida reluzem espantados uns olhitos claros e imóveis. Na cabeça uma boina preta e, por cima desta o capacete de chapa enfiado, cobrem-lhe a quase totalidade dos cabelos castanhos. Na sua companhia e deveras taciturno vai o Isidro Sardão sujeito que aparenta ter à volta de trinta anos vestindo uma indumentária que em pouco varia da do companheiro e parece ser manifestamente uma figura desempenada que assume a mudez matinal muito embora a mente lhe trabalhe, ruminando pensamento. O Alberto submerso dentro de si próprio, pensa na mulher prenhe de nove meses prestes a parir e na incerteza dessa hora feliz e trágica da sua vida. Já é pai de três filhos e, a inevitável possibilidade de nascer mais um, agita compulsivamente todo o seu ser. A ideia consola-o e ao mesmo tempo aflige-lhe a alma, pela certeza de que o pão que dia a dia procura, não vai chegar para todos.
- E se é hoje!? Pensa!
- Se calhar vai nascer e eu na mina!
A tortura da ausência obrigatória faz-lhe doer o peito mas logo vem o lenitivo débil, intemporal, quase ridículo.
- A ti Joaquina toma conta dela, Já foi ela que pôs os outros cá fora. Não vai haver nenhum perigo!
Num ápice dissipa-se o medo, esclarece-se a dúvida, ganha forma a esperança. Mas que esperança? Conhecedores do antigo provérbio usado ao longo de séculos - enquanto há vida há esperança, sabem perfeitamente que pode haver vida, que embora palpite o coração, pode não existir qualquer espécie de fé num futuro melhor.
São poucos ou nenhuns os adjectivos capazes de qualificar o estado de espírito do Minhoca. As muitas adversidades quotidianas são o somatório de infindáveis amarguras, são mágoas acumulada ao longo da vida a sangrar e a doer em carne viva. Por isso o Alberto tem sempre presente que, enquanto avança por instinto na existência, pode já ter acabado toda a esperança.
O companheiro de anormal estatura ostenta na cara oval, onde esvoaça mirrado um sorriso permanente, uma barba que aparece rara e combina com cor dos cabelos. Vem de longe, de Cabroelo e já traz nas botas duas extenuantes horas de caminhada a atravessar de lés – a – lés a serra da Boneca. A sua preocupação é real e todavia patética por tão desajustada ao drama presente:
Não há dinheiro para comprar foguetes para a festa de S. Mateus. O pouco que resta vai leva-lo a banda musical de Lagares. Ele é um dos mordomos e, só a possibilidade de falhar ao compromisso assumido na roda da última festividade momento em que pela primeira vez se sentiu orgulhoso, massacra-lhe o espírito. Já fizera três peditórios, ele e os outros mordomos. Foram esmolar às freguesias da Capela, Canelas e Figueira mas apesar de se terem empenhado, pouco rendeu a recolha. As vidas andam baixas. Não há tostão nos bolsos do povo.
- E se fosse às Termas de S. Vicente, pensou!
Aquela é uma terra farta, pelo menos consta-se. Dizem haver lá lavradores a colher vinte e trinta pipas de vinho e dez carros de milho. Pensando melhor, havia de lá ir no próximo fim-de-semana, talvez no Domingo. Saia cedo e era capaz de chegar no fim da missa encontrando assim o povo todo reunido A correr pelo melhor, podia render uns trezentos a quatrocentos mil réis. Era bem bom, já se comporiam as coisas. Duas ou três dúzias de foguetes, bombas umas seis, o resto de revolta e seriam plenamente atingidos os fins a que como festeiro se propôs. Os habitantes da vizinha povoação da Capela, sede da freguesia a que pertence, haviam de ver então, quem é que canta-de-galo.
A sua mente simples e tacanha já o transportava à festa e, no seu subconsciente, no precário imaginário da mente, via o Coelho regedor encolhido e envergonhado perante tal afronta e, ele Isidro Sardão todo enfiado num fato de mescla, com uma gravata às riscas ao pescoço a sair tombada por entre os colarinhos da camisa de popelina branca, ao lado da corpulenta mulher, satisfeito com a vida.
A alvorada aproxima-se, a barca que vai transportar este grupo na travessia do rio acaba de atracar e, todos em fila calcam a improvisada prancha de madeira e entram na embarcação amontoando-se em pé cabisbaixos.
Germunde a terra negra para onde se dirigem, está à vista lá ao fundo na outra banda do douro e já lhe adivinham a sombria fachada enquanto as suas almas amarguradas começam a rezar baixinho.Parecem ter entrado no momento pavoroso da submissão. O espírito etéreo abandona por algumas horas o corpo que vai mergulhar na terra. O alma procura a luz e abomina as escuridões sem nunca cooperar com este intolerável enterro de pessoas vivas e assim sendo, ficam só os articulados esqueletos mecanicamente a avançar para o buraco onde a noite se perpétua. Não existe permitida determinação própria nestes pedaços de carne humana. Simples seres sem quaisquer direitos, manejados por vontades interesseiras que não contemplam a análise da dor, do sofrimento e da desumanidade do trabalho, vergados e impotentes perante semelhante desdita, totalmente desprotegidos caminham como bizarras marionetes para uma labuta que quem ordena torna desonrosa e desprezível.
Não há homens em Germunde, as figuras estrambóticas que passam na escuridão são a matéria, a energia barata que vai ser usada a cavar o chão. Estas despersonalizadas criaturas pouco valem aos olhos dos patrões, ou melhor, não valem nada. Cada um representa-se a si próprio e, se alguma vez se lhes enfeita um sorriso nas caras enegrecidas pelo carvão, é fugaz, passageiro e maculado por uma névoa de mágoa e tristeza que nunca lhes abandona o olhar.
É difícil entender, compreender o que surpreende mais nestes mineiros se a sua submissão ao trabalho sem um protesto, se a apatia com que deixam passar os dias e os anos a morrer aos poucos nas profundezas da terra. Tal abandono à sorte vai ter de ter um fim.





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