quarta-feira, 24 de março de 2010

O Exorcismo

O Exorcismo

Margarida, denominada bruxa de Fontão, apareceu mais uma vez aqui para realizar um acto de exorcismo. Avançou sem pressa em direcção à porta principal da entrada da capela de S. Domingos, antes porém, deixou prender-se-lhe os olhos na deslumbrante paisagem que se avista do alto desta serra. Tinha estado há momentos na parte mais a sul do monte onde um improvisado crematório vai consumindo as muitas ceras deixadas em promessas por seres aflitos à vista de Folgoso. Ela também acabara de depositar um braçado de velas e rezado recolhida em si mesma enquanto o fogo ia consumindo as oferendas, a simbologia da luz que já se extinguiu em muitas almas e que ela, gozando de um privilégio raro, reacende e vai dando nova esperança. Ainda há gente que julga ser possível acontecer o milagre; almas simples que desamparadas por quem tinha a obrigação de as proteger, se vira para o céu como último reduto das suas esperanças. Pobre mundo que tudo o que de útil descobre, vende caro em vez de proporcionar mais felicidade aos seus habitantes.
As vistas pousara-lhe comovidas na imensidão do vale que é verde matizado aqui e ali por manchas de povoados vivos e o rio Douro a serpentear por entre as serras e a desaparecer lá ao fundo na Lomba, borrata com liquido a aguarela da pintura e, até a cidade do Porto aparece lá longe na linha do horizonte indefinida como miragem, a marcar presença constante na beleza do quadro.
Logo que colocou o pé direito na soleira da porta principal do templo, o doente que já se encontrava lá dentro, entrou em altos roncos estrebuchando como se fosse um animal ferido. Os quatro homens que o seguravam, aguentavam a muito custo as fortes cordas que entretanto lhe passaram em volta do tronco tentando estabelizar aquele corpo em fúria.
Da boca do endemoninhado escorria abundantemente uma espuma branca e os olhos revirados, estalavam-se ora de um branco mortal ,ora de um vermelho de sangue, moribundo numa a cara contorcida e desfigurada que ostentava um sorriso ignóbil e era atravessada por um esgar de raiva satânico.
A cena era verdadeiramente dantesca e desumana; como podia uma criatura tão frágil adquirir tamanha força era matéria que espantava Jorge Correia, o doutor que veio propositadamente do Porto para assistir pela primeira vez a um acto desta natureza e incrédulo, procurava situar-se no momento, mas o seu espírito sobressaltado não encontrava qualquer explicação lógica para semelhante alteração da personalidade humana.
Além da vidente, a presença de um sacerdote recolhido na sacristia, constituía para ele um dado novo em tudo o que vinha analisando há uns tempos para cá sobre esta matéria. O seu cérebro habituado a deslindar os mistérios do conhecimento científico, recusava-se a admitir este retroceder no tempo até estas formas de primitivismo que julgava longínquas e que sempre pensou já não existirem.
Era de espanto o seu olhar, sentia grande confusão na mente que bloqueava e recusava aceitar como reais os acontecimentos que estava a viver nessa ocasião.
-Só posso estar a viver num sonho!
As grossas gotas de suor que lhe caíam pelo rosto abaixo, faziam-no voltar à realidade dessa hora dramática e, era com o lenço que mecanicamente tirava do bolso das calças que ia limpado a testa franzida e gelada. Sacudiu a cabeça como se quisesse afastar de si a brutalidade da visão mas deu de novo de caras com um quadro demasiado autêntico para ser um sonho e voltou a fechar os olhos por alguns instantes. Da sua boca seca saiu a frase que atestava o limite até onde tinha ido o pensamento.
- Não pode ser! Isto é completamente impossível!
Margarida aproximou-se de um rapaz aparentando cerca de doze anos meio moribundo que à medida que o tempo ia passando se tornava cada vez mais agressivo. Empunhando o crucifixo usado em muitas outras ocasiões, a bruxa iniciou o exorcismo:
-Em nome de S. Caetano, de Santo André Avelino, eu te arrenego anjo mau que pretendes introduzir-te em mim e perverter-me. Pelo poder da Cruz de Cristo, pelo poder de Suas Divinas Chagas, eu te esconjuro maldito para que não possas tentar a minha alma sossegada. Ámen.
Margarida disse esta oração três vezes ao mesmo tempo que ia fazendo o sinal da cruz sobre o seu peito. O padre Luís que entretanto entrou no templo, espargia água - benta sobre o possesso que ao senti-la no corpo berrava como um louco agitando-se sem parar e, a um sinal da exorcista, começou também ele a leitura de uma esconjuração em latim.
O doente espoliava-se cada vez mais disparatado e raivoso, esticavam as cordas que os homens a custo sustentavam nas mãos, círios tombaram pelo chão movidos pela força das patadas daquela criatura endemoninhada. Da testa do sacerdote escorrem bagadas de suor que pingavam pela cara até á boca. O possesso agitava-se num estrebuchar diabólico e, só muito a custo os quatro homens seguravam as amarras também eles quase no limite das forças. O padre começou uma oração:
-Ecce crucem Domine viest seu Radix do vielin nomine Jesu omne genustutantor coelestum terrestrum infernorom it omnis Língua Confititur quiadoemonus Jesu Cristuns in gloria est Dei patri vist Deus ille crucem Dominete tribu Judá Radix David fugite partes adversa veribilium in nomine Jesuomne genus tutantor celestrum terrestrum infernorum omnia Língua Confititurquia Dominos Jesu Cristus in gloria est Pater, amem.
Houve uma pausa e de repente com firmeza de voz o sacerdote ordena ao demónio:
- Em nome de Jesus Cristo sai do corpo deste se humano!
- Não, respondeu uma voz que se julgou vir de além-túmulo mas que parecia sair do corpo do rapaz. Não era a voz própria do infeliz, era um som rouco, forte, cavernoso, desumano e carregado de ódio.
- Pelo meu poder sacerdotal, ordeno-te que saias dessa criatura, prosseguiu o padre Luís:
- Aggghh, rosnou a estranha voz.
- Tu não tens poder para me ordenar que saia, daqui jamais sairei!
- Sairás, em nome de Jesus Cristo, to ordeno!
Aproximando-se um poço mais do possesso, colocou-lhe a mão esquerda sobre a testa e com a mão direita encostou-lhe aos lábios o crucifixo ao mesmo tempo que dizia:
- Beija a cruz do Senhor teu Rei!
- Nunca, respondeu no meio de espasmos, convulsões e gritos o pobre desgraçado que se retorcia em desespero inenarrável. Descomposto, deitado no chão, movia-se com uma elasticidade estranha de ágil contorcionista e só por milagre aquele corpo não sofreria graves lesões.
O sacerdote ergueu-se todo no meio da capela com a estola na mão, depois aproximou-a da vítima e com uma voz agora mais forte ordenou-lhe:
- Retira-te já Satanás, vai para as profundezas do inferno, eu to ordeno, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo!
As luzes apagaram-se de repente e só permaneceu acesa a iluminar toscamente a cena, a candeia de azeite do Santíssimo Sacramento e lá fora, na negrura do monte levantou-se o pior dos ciclones e, os sons que chegavam dentro do templo, eram de árvores a quebrar e de pedregulhos a rolar pela serra abaixo. O sacerdote calou-se e a vidente sempre com ar penitenciado entrou de novo em acção:
-O Senhor seja comigo e com todos nós. Amem. Jesus, Maria, José, em nome de Deus Padre, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Amem. Em virtude de Deus Padre Santo, três pessoas distintas e um só Deus verdadeiro, por virtude da Virgem Maria e de todos os Santos Apóstolos Envagelhistas, patriarcas, profetas, mártires e confessores, por virtude de Santo Ubaldo Francisco, eu, criatura de Nosso Senhor Jesus Cristo, remido com o Seu Santíssimo sangue e feiro á Vossa semelhança em Vosso Santíssimo nome, te expulso Satanás e a teus companheiros malditos que regresseis ás profundezas dos infernos. Jesus, Jesus, Jesus, sede comigo vinde em meu socorro, Jesus, Jesus, Jesus, mil vezes Jesus, sede comigo. Jesus valei-me, Jesus acudi-me Jesus vinde de novo em meu socorro. Jesus sem vós nada posso fazer. Jesus, eu com o vosso Santíssimo poder expulso o demónio desta criatura.
Vai já para as profundezas do inferno! Abrace a terra já, Jesus, Jesus, Jesus defendei-me destes fantasmas que me estão a rodear para que eu não possa conseguir expulsar o demónio, Jesus, Jesus, Jesus venham em eu socorro. Retira-te Satanás que estás vencido, quebrei as tuas astúcias com o Santo Poder de Nosso Senhor Jesus Cristo. Retirai-vos fantasmas inimigos da natureza humana eu vos esconjuro em nome de Deus e pelo poder do Santo Lenho da Cruz em que Nosso Senhor Jesus Cristo foi crucificado, por esta mesma Cruz, eu te ordeno; retira-te Satanás fantasma inimigo de Deus e dos homens.
O silêncio que se fez dentro do templo naqueles longos minutos, só era cortado por leves estremecimentos do doente inanimado nas tábuas do chão do local sagrado. Eram uma espécie de convulsões por todo o corpo como se tratasse de uma a agonia lenta e dolorosa. Aquele ser estendido no tabuado estreme, era agora, apenas alguém inconsciente e desfalecido enquanto o Padre Luís limpava o suor da testa e desfolhava uma pequena brochura de onde retirou as leituras.
Quedando-se numa página assinalada com uma fita vermelha, voltou a citar os conteúdos do livro:
- Oremos. Dignai-vos Senhor, permitir que Pedro venha do Céu á terra fechar esta morada onde o maldito demónio teve guarida. Pois eu, em Vosso Santíssimo Nome ponho preceito a esse espírito do mal, para que, desde hoje em diante não possam mais entrar na morada deste infeliz, ser-lhe-á fechada porta perpetuamente, assim como lhe será fechada a do reino dos espíritos puros. Amem
Houve uma ligeira pausa e o padre continua:
-Senhor meu Jesus Cristo, dou-vos infinitas graças, pois pelos merecimentos da Vossa Paixão Santíssima, do Vosso Precioso Sangue, e por Vossa bondade infinita, Vos dignastes livrar esta criatura do demónio e de seus malefícios, assim Vos peço e suplico agora, Vos digneis preserva- lo e guardá-lo para que o demónio não possa mais molestá-lo de modo algum. Ele pretende e quer viver e morrer debaixo da protecção do Vosso Santíssimo Nome. Amem
-Pai Nosso! -Levem-no para casa e deixem-no descansar, disse o Padre dirigindo-se aos homens que ainda atentos seguravam as cordas.
Margarida saiu da capela seguida pelo sacerdote. Já no adro, o abade colocando-lhe uma mão no ombro dizia:
- Obrigado, sem a senhora nada seria possível
-Não tem de quê senhor prior, mas o senhor foi suficientemente forte para expulsar o maldito! Sem esperar resposta prosseguiu:
-Vou andando, ainda é um bom bocado daqui até Arreigada!
-Vá vá Margarida, o Senhor lhe pague este sacrifício!
Jorge Correia assistiu a tudo a um canto da capela. Como se petrificado, sentiu que era incapaz de fazer o menor gesto possível. Algo lhe tolhia os movimentos e, um nó na garganta impediu-o de emitir qualquer sonância.
Estava em estado de choque, a brutalidade da cena que presenciara, originara no seu espírito a angustia, a estupefacção e a incredulidade. Tinha atingido o limite até onde um ser humano sem preparação pode chegar. Apesar da sua instrução, que aliás julgava ser a causa responsável pela dificuldade em aceitar estas práticas, não conseguia situar ou enquadrar esta conduta do padre Luís em nenhum acto puramente litúrgico. No entanto ele ouvira as preces de esconjuração e, se uma ou outra não compreendeu totalmente, a ladainha dos santos com que o padre iniciou a estranha prática, era-lhe familiar.
Olhou os dois exorcistas à distância e procurou ver naquelas simples figuras algo de especial ou até de sobrenatural que podasse justificar semelhante poder! Aquele rapaz ainda inanimado levado em ombros por dois homens, era a testemunha, o vivo móbil que sem qualquer dúvida comprovava a existência de uma entidade diabólica com poderes destruidores de que sempre ouvira falar mas que considerava pertencer à mais remota das mitologias.
Contemplou pela última vez a paisagem maravilhosa que dali se desfruta com um rio todo ajoelhado ao fundo do vale e compreendeu finalmente que o verdadeiro poder do universo, está na Divina Criatura que arquitectou esta obra lindíssima e não em nenhum demónio por mais matreiro e destruidor que possa ser.


1 comentário:

Piko disse...

Assisti uma única vez a uma tentativa de exorcisar o "mafarrico" de um boi, já adulto e que estaria possesso, a avaliar pelo dito de um indivíduo, que fora chamado pelo lavrador e que me pareceu ser antes do mais um impostor, a julgar pela porrada que em determinada altura o pobre do bicho teve que aguentar, que até a mim me doeu!...
Afinal, o animal estaria com problemas que lhe tiraram o apetite para se poder alimentar, mas como o falso exorcista nada resolveu, o lavrador de seguida optou por vender a junta de bois e adquirir outra que a substituisse...