segunda-feira, 22 de março de 2010

O Pregador

O dia continua a progredir neste imenso vale do Douro e com o despertar da aurora, fumegam as casas das aldeias dispersas pelas margens do rio. Retoma-se todas as tarefas da vida nestes presépios de pobreza onde não chega um sopro de progresso e só exigências de mais produção se abatem sobre os ombros de homens, mulheres e crianças.
No largo da Sobreira considerado o centro da aldeia de Rio Mau, o Ernesto ensaia os primeiros retoques do que vai de ser um quase improvisado discurso.
Vem de longe, das beiras do Porto, percorrendo a distância a pé pelos trilhos dos montes. Alto e crestado do sol, da chuva e do vento, deixa cair pelo rosto abaixo uma barba longa e loira. Os olhos de um azul celeste, parecem abrir-se em invulgares espantos e oceanos de interrogações. As mãos, sustentam uns dedos esguios, esqueléticos de onde aparecem umas unhas compridas e perfeitamente talhadas. Não fora a rasca indumentária composta por umas calças de pano - cru e a cobri as pernas e uma camisa de flanela cor – de – barro a tapar o tronco esquelético, poder-se-ia dizer tratar-se de um autêntico cavalheiro. É-o na verdade, apesar do desregro e versatilidade da roupa mas apurado nos gestos e nas palavras que profere.
Delineia a vida, a sua e a dos outros, em pinceladas de romance e poesia entrecortadas de quando em vez por desvairos de consciência. Trata toda a gente elegante e educadamente, mas à canalha tem verdadeiro asco. Ali, no largo da povoação onde a história se faz sem pressa, junta-se-lhe o Abraão, moço ainda jovem, pária e vagabundo como ele. Tem as mãos grosseiras e a cara redonda que lhe dão estranhas parecenças com uma cabaça e a indumentária deste indigente, muito pouco variada em relação ao primeiro. Veste roupas já usadas por terceiros que se nota não serem adequadas ao seu corpo atarracado que o transformam numa espécie de espanta - pardais andante.
De vez em quando um esgar risonho rasga de lés a lés uma boca fina e ficam à mostra duas carreiras de dentes certos e brancos. Também ele desprovido do juízo certo que lhe conferisse estabilidade na vida, hospedando na cachimónia um cérebro onde se misturam ideias de jerico com outras perfeitamente normais, desgarrou-se e deixou Trancoso sua terra primeira e, percorrendo atalhos que se estendem por montes e vales sempre distantes do quinhão natal, chegou a Rio-Mau.
Estudara num seminário do norte onde a severidade da clausura, a fraqueza e a deficiente nutrição lhe provocaram o bloqueio do conhecimento.
O Ernesto é decerto o ser mais bizarro que demandou estas bandas porque dotado de extremas filosofias, faz constar que no seu entender não vale a pena nascer. Para ele, o simples acto de vir ao mundo, é só por si um desperdício total:
- A vida é pois a pior herança da humanidade! Quando se nasce marcado pelo ferro de uma morte que pode ser tardia ou breve, mas sempre inevitável, herdamos logo ai a funesta razão de existir!
Porque nascestes vós!? Porque não ficastes no limbo, no desconhecido, onde o corpo não sofre e alma não é nossa!?
É assim que o louco raciocina e explica uma certa aversão aos mais pequenos, talvez usando numa espécie de sentimento de protecção a que se julga obrigado.
Trinta e dois anos de vida, dez deles a carregar na mente a pavorosa loucura, agravaram definitivamente a doença que lhe retira a postura e o coloca irremediavelmente às portas da total insanidade mental.
Tinha sido estudante universitário mas o frágil poder do seu arquivo não foi capaz de suportar tamanho conhecimento; enlouqueceu!
Dirige a sua revolta ao Criador e, é frequente usar da palavra horas a fio a desafiar as Suas leis. No meio deste largo onde dão a volta as procissões, assume uma postura erecta de pregador estendendo as mãos e ergue o rosto para o céu e com firmeza de voz inicia o eloquente discurso:
- Já sei que hoje não vai haver paz para mim, começava o pregador.
- Neste dia que nasce, não sentirei a Tua presença! Nascerá um novo sol mas não será para me iluminar! Aquecerás as vidas de muitos, mas não a minha. Eu sou pobre, um desgraçado a quem Tu, nem a memória deixaste progredir. Por inveja, ou por maldade, arrancaste-me a alma que dizes ser tua propriedade! Fica com ela, para que quero eu uma alma se nunca a vou poder utilizar neste falso presépio que Tu criaste!? Aqui não há lugar para quem tiver uma alma, abandonados por Ti, somos obrigados a rendemo-nos ao poder dos mais fortes!..
- Agora o rosto toma uma forma dolorida onde se desenha um sorriso imbecil.
- Nunca Te pedi nada. Afinal o que é que tens para me dar!? Tu que deixastes o Teu único filho nascer na mais extrema miséria, desprovido de tudo, e permitiste que morresse às mãos de um povo velhaco, nada, absolutamente nada terás para oferecer em troca das minhas orações! Eu não Te adoro, tão pouco creio em Ti. Arrasto pela vida uma cruz bem maior e bem mais pesada que a Tua. É este o meu castigo, mas não fui julgado como Tu foste, ninguém me perguntou nada sobre nada e no entanto condenaram-me! Diz-me onde estavas nesse momento!? Em lado nenhum, porque Tu certamente não existes. Até podes existir, mas não como o Deus dos mais necessitados porque não ouves as súplicas dos sedentos de justiça! Posso até reconhecer-te, não como Deus misericordioso, mas como aquele que permite esta miséria imensa pelo mundo! Sou eu quem Tu diz! Nada posso perder, pela simples razão de que nada tenho. Por isso Te falo de homem para homem, longe de temer as Tuas hostilidades. Sim porque Tu, és rancoroso. Houve tempo em que acreditei em ti. Mas foi tudo uma ilusão, cedo me apercebi que nunca haveria de fazer parte dos teus planos de salvação, que entre ti e satanás, não há escolha possível. Sois iguais, divergis dos meios mas não nos fins que são os mesmos. O que vos alimenta é a ideia de posse das nossas almas infelizes.
O Abraão ouve em silêncio e retorce as mãos em desespero.
- Fala-lhe de mim, diz o seminarista assumindo uma atitude de pedinte.
As mãos estendem-se-lhe numa súplica angustiante e, o rosto adquire uma expressão caricata e grotesca.
- De ti!?.Fala-lhe tu, pois é bem possível que Ele te dê ouvidos! Tu, membro e sócio fundador da sua quadrilha de benfeitores, estarás decerto em melhor posição para lhe falar! És cúmplice Dele, eu sinto as dores da discriminação e do desespero, Tu não; aceitas o castigo que julgas generoso curvando-te perante a razão que desconheces. Tão pouco sabes se ela existe e não protestas. Tu Abraão, és realmente um pobre! Dás-me pena! Inspiras-me dó e piedade. Apesar de tudo perdoou-te! Perdoou-te por uma razão simples...és meu irmão!
- Mas eu rezo, diz angustiado o Abraão.
- Rezas!?
- Tu sabes lá o que é rezar Abraão! Recitas palavras usados por muitos sem as sentires no coração. Rezar é abrir a alma, é comungar com Deus dos sentimentos que nos preocupam e angustiam. Rezar é isto irmão! É falar com Deus e dar-lhe noticia das nossas aflições, dos nossos desesperos! É fazer com que veja e repare a miséria brutal a que fomos votados!
- Sabes uma coisa Ernesto, eu acho que tu blasfemas!
- Blasfemo!?
- Cala-te desgraçado, tu não atinges a essência da questão, cortam-te o corpo e o espirito a golpes de espada e não protestas, sequer sabes quem empunha a arma causadora do nosso desespero! Acaso dar notícia da verdade e da vergonha é blasfemar!? Deita-te ai irmão, dorme o sono da ignorância eterna e deixa-me protestar pois um dia virá, em que por farto dos meus protestos ou por divina piedade, Ele nos abençoará! Acaso tu não sabes que o tempo urge!?
Faz uma pausa e de seguida vira-se novamente para o alvo das suas críticas, o Céu.
- Porque não desces daí do Teu Céu esplendoroso e vens aqui reconhecer as Tuas faltas! Vem confrontar-te comigo cara a cara! Não me respondes, nem Tu nem ninguém! As minhas palavras são o eco das minhas palavras, do meu sofrimento do meu imenso desespero, desta minha lúcida loucura. E, apesar de tudo, ainda Te espero Deus mudo, Deus, ingrato. Vem quando quiseres, todos os povos precisam urgentemente de Ti. Eu não, mas eles amam-te, adorna-te e acreditam que virás salvá-los! Vem antes que se me aflorem os nervos e deixe de ser responsável pelos meus actos. Lembra-te que também eu sei castigar!. Prova-me que existes, que és realmente o salvador olhando a turbulência deste mundo injusto, o teu rebanho tresmalhado sem esperança! Faz alguma coisa, não os abandones a esta sorte tão madrasta!
As mãos, ainda há pouco em riste, fecham-se-lhe sobre o peito penitenciosas e, o azul daqueles olhos toldou-se de lágrimas. Vagarosamente, estendeu-se no chão ao lado do amigo e ficaram horas prostrados ali, sem dar sinais de vida. Todo o orvalho desta madrugada fria humedeceu estes dois corpos desamparados.
Regressa a solidão que reflecte a insensibilidade do mundo perante a doença da loucura, da indiferença com que o planeta cuida daqueles cuja capacidade mental se alterou por qualquer razão. O Homem não quer saber! Numa atitude hipócrita, esconde tudo o que reproduz as suas fragilidades colectivas. Despersonificado, sem qualquer esperança, segue uma ilusão irreflectidamente, tentando por métodos absurdos torná-la realidade. É muito mais que a constatada falta de fé e de esperança, é a solidão que se ganha por se matar o amor dentro de nós. Por isso o Abraão e o Ernesto se estendem na laje fria do largo da Sobreira sem um gesto de piedade de ninguém. Quantos mais não o farão no futuro, nesta maravilha de mundo que gira há milénios num frio e austero universo sem culpa de nada. Lá em baixo corre um rio aflito que quer rapidamente chegar à foz. Ele afasta-se das miséria humanas o mais depressa que pode e, em turbilhões de espuma e redemoinhos amarelos, parece que leva com ele as fúrias do inferno

1 comentário:

Valdemar Marinheiro disse...

Tudo é perfeito.
Juntando ao que de muito bom nos relatas ainda nos presenteias com essas maravilhosas e pitorescas aldeias onde em cada uma delas também tenho um pouco de mim.
DOURO - RIO MAU e PEDORIDO. Mais palavras para quê.
Foi bom recordar.