quarta-feira, 17 de março de 2010

O Pão de Deus

No centro do lugar de Rio Mau o dia começa a espairecer e a noite sucumbe lentamente ao golpe da claridade. O Zé Marques e a Maria moleira amarram a mula  Andorinha na argola de ferro presa na parede da venda da ti Albertina. Já vêem lá de cima das entranhas do monte onde os moinhos formam uma carreira nas margens do rio em Estivada de Baixo. Levantaram-se cedo, ainda com noite cerrada e meteram-se ao caminho pelo meio do escuro.
Pelo carreiro suspenso nos barrancos que ladeiam o ribeiro e lhe dão pitoresca margem, caminham apeados e o Zé segura nas mãos de pele castanha com manchas negras a guita presa à cabeça da muar carregada com as sacas de farinha e marca em passo militar, a marcha e o destino das maquias.
Com calma de velho e livre das pressas da mocidade, desapertou a soga e o torniquete que segurava os sacos e os prendia à barriga do animal e depois, um a um, carregou-os às costas despejando-os na caixa de madeira dentro da mercearia. A transacção foi feita logo ali. Alguns fregueses esperavam já ansiosos pela fornada. O Marques e a Maria não foram os primeiros a chegar, já há muito que a ti Maria Valongueira que atravessou a serra da Boneca com a canastra dos biscoitos à cabeça tinha dado sinal de vida. Vinha de Valongo e no aconchego da toalha de linho branco que cobria a giga, deliciosos bolinhos com formatos de peixes, de pombas, de porquinhos, de estrelas, de carrinhos e até de cãezinhos, ainda arrefeceriam dos calores do forno.      Uma arroba de farinha, treze quilos de milha e dois de centeio, é a taleiga de um forno familiar. Uma fornada capaz de produzir quatro broas que garantiriam a sobrevivência por mais alguns dias.
Na cozinha da ti Albertina a Maria Carriça começa a peneirar a farinha e depois mistura-a com água na masseira. De mangas arregaçadas até ao cotovelo, transforma o pó numa volume disforme e acastanhado enquanto o suor lhe escorre pela cara e vai cair no preparo em grossas gotículas. De vez em quando acrescenta água quente à mistura  e despeja a malga do crescente ou fermento  na massa. Preparada a farinha, formando um monte no centro da vasilha de madeira, a Maria traça com o gume da mão direita uma cruz no preparado consagrando assim o futuro pão às mãos do Senhor e deixa-a a levedar em repouso até à tarde. Por volta das cinco já o forno arde em labaredas gigantes e, os tijolos burros das paredes, vão adquirindo um tom esbranquiçado e prestes a estalar de quentura. É o sinal, o ponto certo para se iniciar a cozedura. Então entra em funcionamento a pá de madeira rabuda ao mesmo tempo que a massa pulita na Escudela e é dividida em bolas de cerca de três quilos. Entram quatro pela boca escaldante da fornalha esborrachando-se um pouco ao tomar contacto com o barro quente da laje . Terminada esta tarefa segue-se o fechar da porta de ardósia que será vedada com bosta de boi.
Ao cabo de duas horas naquele inferno, já a farinha se transformou em pão e no abrir da porta, deslumbrantes broas  tostadas e bonitas, aparecem num cenário farto e fumegante. Fazem as delícias de qualquer um, é o sustento do povo garantido por uma semana. É o pão que Deus prometera vindo do céu dos moinhos da Estivada, trazido pelo Zé Marques, pela Maria e pela mula Andorinha.
O sol desenha cores prateadas no rio e, sentados na parede do Constantino os dois moleiros petiscam sardinhas fritas e bebem uma pinga de vinho verde tinto que lhes tinge as bocas da cor do sangue.   

1 comentário:

Piko disse...

Era exactamente assim, que nas décadas de Quarenta e Cinquenta era fabricado o pão dos humildes, nestas lindas e laboriosas aldeias que quase "mergulhavam" no rio Douro!
Seria ainda maravilhoso, que os que restam desses tempos não muito distantes, soubessem e QUISESSEM ter a HUMILDADE de não esquecer e ainda transmitir, sem arrogância, aos filhos e à comunidade o que foi necessário "passar" para que o futuro dos mais humildes fosse um futuro de ESPERANÇA, que ao fim e ao cabo foi o que se conseguiu!...
Os meus sinceros parabéns ao autor, pela fiabilidade posta na narrativa, não deixando "cair" um dos processos alimentares que muito contribuiu na época, para a sobrevivência das boas gentes de todo o COUTO MINEIRO do PEJÃO.
Adorei recordar!...
OBRIGADO MANUEL!