sábado, 20 de março de 2010

Sonhos

O primeiro sonho guardou-o numa caixinha de fósforos usada. Era um sonho pequenino, tinha a ver com beijos e abraços de ternura que a mãe lhe dava quando despertava dos sonos de menino. Foi em cima do armário da cozinha que guardou essa pequena caixa de magia. Lembra-se que teve de subir acima da mesa para poder colocar esse cofre atrás das panelas grandes que raramente eram usadas. Guardo-a lá embrulhada num pedacito de jornal velho e continuou a sonhar.
O segundo sonho, era uma pouco maior, era um sonho com uma bola, que tinha um rio  e homens e mulheres lá dentro a quem ele e os companheiros de escola davam pontapés e atiravam para longe. Enquanto a bola subia no ar, ele ficava a pensar porque é que os homens e as mulheres que estavam dentro da bola não se importavam de andar aos salto, atirados de lado para lado e não fugiam de dentro da bola. Então no sonho viu o mundo, que era uma bola, com os homens e as mulheres lá dentro e ficou feliz por lhe poder dar pontapés e brincar com a bola que no sonho era o mundo.
Esse sonho tinha personagens verdadeiras e conhecidas dele, misturadas com algumas que lhe eram estranhas de corpos transfigurados como se fossem fantasmas. Enquanto a bola subia no ar ele via as pessoas a serem projectadas umas de encontro às outras num espaço vazio, lá dentro da bola. Depois a bola caìa no chão com estrondo e as pessoas dentro da bola caìam também desamparadas no chão vazio da bola e faziam gestos grotescos, e gritavam desesperadas dentro da bola.
No meio desse sonho, quando o seu peito arfava aflito viu criaturas a tentar sair de dentro da bola mas a bola, redonda, compacta e hermeticamente fechada, não tinha sitio de fuga possível como o mundo que é uma bola. Farto do espectáculo de horror que os seus olhos estavam a observar, deu um pontapé com muita força na bola e a bola ficou algum tempo a pairar no espaço e, todas as pessoas dentro da bola sorriam felizes. Ele ficou feliz também porque ficou a saber nesse momento que as pessoas gostam de andar no ar dentro da bola que é redonda como o mundo que também tem pessoas e rios lá dentro. Lembra-se ter tido algum medo e de se agachar a tremer no meio do calor dos cobertores. A mãe disse-lhe depois que aquilo era um pesadelo e que havia de ter muitos mais sonhos desses no decorrer da vida. Apesar do incómodo e da angústia que lhe causou essa quimera, resolveu guardá-lo numa caixa de sapatos vazia. Pensou que um sonho mau como aquele tinha de ser enterrado na horta por baixo da figueira onde as galinhas depenicam ervas daninhas. Era mais seguro, um pesadelo assim, teria de ficar bem longe da casa e fora do seu alcance porque ele nunca mais queria voltar a sentir o desespero daquela noite em que sonhou com a bola que era igual ao mundo com rios  e pessoas lá dentro.
O terceiro sonho foi lindo, foi maravilhoso. Foi um sonho com raparigas vestidas de noiva a dançar numa festa em que ele era a figura principal e o rapaz mais desejado por todas as lindas mulheres vestidas de noiva. Lembra-se de uma que o fascinou nas voltas de valsas lindíssimas do sonho e o prendeu tanto nas elegantes mãos, que só um súbito acordar desfez esse feliz enleio. Esse que foi o seu mais belo sonho, guardou-o numa lata que tinha sido de tinta e pendurou-a amarrada com um arame ao lado da roda do carro de bois. Um sonho destes, pensou, tem de estar sempre perto e ao alcance de uma mão. Fechou o sonho na lata e depois nunca mais se lembrou dele.
Um dia de repente,deixou se sonhar e rebolava-se horas e horas na cama à espera dos sonhos que tardavam em chegar. Ele queria sonhar outra vez com as raparigas vestidas de noiva mas por mais que tentasse,o sonho não aparecia. Uma noite os sonhos voltaram e um deles, tinham a ver com uma bola que era igual ao mundo com rios e pessoas lá dentro que as crianças atiravam ao ar e davam pontapés. Neste novo sonho, ele estava do lado de dentro da bola que evoluía no ar e ele e as pessoas todas que estavam lá dentro sorriam felizes. Ao bater no chão a bola fazia um estrondo e ele era projectado para o chão vazio da bola de encontro às outras pessoas que gritavam desesperadas presas dentro da bola e tentavam sai de dentro da bola que era compacta, hermeticamente fechada e não tinha sitio de fuga possível como o mundo que é uma bola.
Acordou desse sonho e ficou a pensar que o mundo é uma bola com rios e pessoas lá dentro e que só as crianças podem brincar com ela, dar-lhe pontapés e atirá-la ao ar e que, as pessoas não podem sair de dentro da bola porque a bola é compacta, hermeticamente fechada e não tem sitio de fuga possível como uma bola.

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