domingo, 27 de junho de 2010

Serenatas

As guitarras trinaram num parque de campismo algarvio. Foi em Quarteira numa noite quente de sabores diversos a pairar num espaço verdadeiramente comunitário onde pessoas de muitas nações, conviviam e partilhavam usos e costumes durante uns dias de férias nesse ainda paraíso, ainda virgem e quase perfeito lugar da terra. Foi há muitos anos e para me recordar de tudo o que vivi então, recorro a algumas memórias desse tempo mantidas com carinho no meu imenso tabernáculo desta vida.
Às dez horas da noite começaram a ouvir-se os primeiros acordes que rapidamente se espalharam no ar e levaram ao grande acampamento os sons distintos de Coimbra, a melodia de encantos, uma expressão artística musical difícil definir, não só pelas vastíssimas influências musicais e culturais que geraram a sua raiz, mas também pelo infindável rol de sentimentos que no ouvinte desperta. No entanto, após se mergulhar na sua sonoridade, a consigamos caracterizar em três adjectivos: singular, profunda, marcante.
Originária música popular de executar diferente que lhe confere sons divinos parecidos com lamentos ou gargalhadas de deuses que, uma grande parte dos estrangeiros presentes, nunca tinha conhecido e escutado. Música dos estudantes, do antes e do depois, dos que de terras distantes em Coimbra sofriam a dor da ausência, os tormentos próprios de que sofrem todos os que almejam o saber.
À guitarra, instrumento construído de encomenda pelo mestre Grácio, estava o Fernando Cunha Pereira (Figueiras) moço em plena juventude a quem a permanência numa insigne faculdade transformou num dos melhores guitarristas do seu tempo. Marcando os compassos com mestria na viola, estava a Tucha, esposa do Fernando e, no centro da imensa roda que se formou num instante, aparecia o Quim de Lourido e eu um ser nascido e criado à beira de um rio, na força dos meus trinta anos, sem trajes académicos merecidos a cumprir a praxe, a dar voz aos poemas que sempre constituíram o repertório das serenatas monumentais da Sé Velha.



Se tu quisesses ser minha
Minha nau, dos meus desejos
Dava-te a vida inteirinha
Dava-te a vida inteirinha
Num ramalhete de beijos



Foi com este poema, o Fado dos Beijos que iniciei os meus cantares. Em todas as serenatas que fizemos um pouco por todo país, aparecia sempre uma mulher diferente a inspirar e a alterar o calendário antecipadamente acertado que, rapidamente e devido às emoções do momento, deixavam de fazer sentido assim como todas as escolhas premeditadas.
Era de uma de beleza extraordinária aquela holandesa, qualquer coisa só imaginada num sonho, uma perfeição de mulher, um espanto que produzia deslumbramento em todos os homens e e até em muitas mulheres da assistência.
Cada vez mais fascinado por aqueles olhos imensamente azuis, apurei o hino, aperfeiçoei a voz e num esforço muito para além das minhas limitadas cordas vocais, enfeitei ainda mais aquela noite de sonho.



Preferia, ò minha amada.
Ser um pobre, não ter pão.
Antes morrer sem ter nada.
Antes morrer sem ter nada.
Mas sem beijar-te, isso não.



Foi ela a inspiração do cantor que rendido a semelhantes encantos lhe dedicou esse fado. Lembro-me que ela sorria o que me fez convencer que estava a adorar a minha extremosa prenda, porém, vinha a saber depois, ela não entendia uma única palavra de português e, se mostrava tanta alegria ao ouvir-me, era apenas sensibilizada pela melodia suave e mística da guitarra e pelo maravilhoso encanto que a canção de Coimbra tem.
A noite acabou tarde com os sons das guitarras a entoar a balada da despedida e, um clarão de vozes em unissono, fez os olhos emocionados de muitos portugueses e de alguns estrangeiros tomarem o tom de água quando repercutiam no silêncio que se fez e, a minha voz transformada em lamento, dizia a cantar as palavras do belíssimo poema.



Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.



Não me tentes enganar,
Com a tua formosura,
Que para além do luar,
Há sempre uma noite escura.



Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.
E as lágrimas do meu pranto
São a luz que me dão vida.



Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.

Quem me dera estar contente,
Enganar a minha dor,
Mas a saudade não mente,
Se é verdadeiro o amor.



Calou-se a musa, finou-se o encantamento e eu decepcionado, jurei ali mesmo nunca mais participar em serenatas mas, passados uns dias, já em Ponte de Lima nas velhas escadarias de pedra do soberbo solar da Quinta de Fontão,   propriedade do Sr. Abílio Teixeira e da esposa D. Lurdinhas simpático par que foram elegantes e magníficos anfitriões, se ouvia numa noite tão bela como o são todas as noites daquela encantadora terra do Minho, o trinar da mesma guitarra, da mesma viola e a mesma voz a entoar as mesmas canções coimbrãs dedicadas a uma outra mulher, não tão linda e deslumbrante como a holandesa de Quarteira mas tão ou mais merecedora da minha extremosa prenda como o são todas as mulheres deste mundo.

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