sexta-feira, 2 de julho de 2010

O Lobisomen

Debruçado sobre a lareira situada no lado esquerdo da singela cozinha, sentado num banco de madeira comprido e remexendo nas brasas já mortiças com um pauzinho que se soltou da lenha amontoada a um canto do pequeno compartimento, o Lourenço contava aos dois netos, acachapados em frente do calor que o aparelho produzia, histórias tão mirabolantes que só mesmo os cérebros inocentes das crianças poderiam aceitar como verdadeiras.
Farto de rebuscar formas de ocupar o tempo nas longas invernias tão frequentes ali à beira do rio Douro, era com muita dificuldade que conseguia responder à natural curiosidade dos miúdos, espicaçados pela necessidade urgente de saber e aprender cada vez mais as coisas da vida e também única forma de matar as horas que a chuva impedia de passarem lá fora na rua a brincar.
É um homem aparentando ser já velho mas na realidade tem apenas cinquenta e seis anos penosamente contados nuns tempos pobres e agrestes que lhe maltrataram o corpo esforçado desde criança em trabalhos desumanos nas beiras do Douro.
Tem os cabelos matizados de branco, rosto aguçado e enrugado onde ao centro aparece um nariz robusto e por baixo dele um farto bigode caído nos cantos da boca e ligeiramente queimado pelo fumo do tabaco, que veste um casaco de bombazina castanha por cima de uma camisa de flanela azul com riscas amarelas que lhe entala o pescoço no colarinho e meio enfiada na cintura das calças de cotim militar. Na cabeça redonda e a cobrir a cabeleira grisalha, usa uma boina preta bastante russa de desbotada, a dar a impressão de ter incalculável idade.
A vida inteirinha passou-a no rio; primeiro na pesca do sável e da lampreia, depois nos barcos Rabões a carregar carvão antracite para o Porto. Dias, meses e anos a percorrer o rio com ou sem a claridade do dia num degredo que lhe consumiu a carne do corpo a par da juventude também sumida a remar como um galego neste pedaço do Douro. A filha Laurinda, sua única semente que germinou no campo miserável da sua existência, levou-a a tuberculose aos vinte e cinco anos de vida deixando-o amparo destes dois cachopos que além do sustento do corpo, reclamam dele cuidados e vigilância permanente. Ávidos de conhecimento e sem as atenções de uma mãe que pudesse satisfazer os naturais anseios dos filhos, parece que trazem com eles todas as interrogações do mundo e, o velho barqueiro rebusca na pálida memória as respostas que julga serem as mais sensatas e que possam ser a pedagogia mais apropriada a estes seres pequeninos. A mulher levou-a uma doença desconhecida apesar dos esforços do Dr. Amorim já lá vão dez anos. Teófilo o genro e pai dos dois moços, logo que se apanhou sem fêmea, abandonou as crias e enfeitado como um chibo com cio, partiu atrás da figura esbelta e avantajada de tetas da Esmeraldina da Seixinha por quem sempre manifestou estranhos apetites.
O barqueiro pousou o graveto na borda da chaminé, aconchegou-se um pouco mais para trás na espreguiçadeira e começou mais uma narrativa...
Aqueles uivos dolorosos que se ouviam bastas vezes em Cruz de Ferro inquietavam todo o povoado que surpreendido no meio do sono acordava transido de medo. Era um som angustiado como o lamento de alguém a quem roubaram a alma ou fêmea de cão desesperada a chorar a perda das crias. Todos sabiam da existência de lobos lá em cima na serra da Boneca mas nunca pensaram que as feras escolhessem precisamente a encruzilhada dos caminhos de Valmourisco para se exibirem todas as Sextas - Feiras à meia -noite, num queixa à lua que fazia estarrecer toda a gente.
Bem procuraram sinais que pudessem indicar o covil desses felinos predadores mas da mesma maneira que apareciam no ermo, também se evaporizavam de forma tão intrigante que se começou a pensar ser obra de seres de um outro mundo.
As duas crianças de olhitos arregalados, assistiam ao desenrolar da história que lhes despertava temores e umas não sei quantas interrogações. Com as vistas fixas no avô, sem pestenejar, aguardavam anciosas pelo momento em que podessem respirar de alívio. Tardava a conclusão e, como quem narra acontecimentos da sua própria vida, o Lourenço assumia a postura própria de um verdadeiro contador de histórias e, sem a menor hesitação, continuava:
O Tardo chegou a ser acusado na praça pública como o responsável de semelhantes desacatos nocturnos e só o Paulo Gigueiro, o mais evoluído do lugar que até chegou a ser soldado na Guarda Republicano, cancelou as fortes suspeitas ao lembrar num ajuntamento popular que o Tardo é completamente surdo mudo e só pretende brincar com as pessoas e fazer algumas travessuras transformando-se e assumindo a forma de qualquer animal conhecido. Dizia que quase todas as noites quando descia a Cancelos, figurado em cão, num em gato, numa porca com bacorinhos atrás e até em cavalo, o endemoninhado saltava à sua frente no caminho à beira da Fonte da Preguiça:
- Aquilo que berra lá em cima de noite, só pode ser o Lobisomem!
Ninguém acreditou nele, quem em juízo perfeito acreditaria num velho borrachão sustentado praticamente com aguardente e vinho!? Ferido no seu orgulho o guarda calou-se. O desgraçado guarda habituado a matar em cega obediência ao comando do Porto, tinha ficado célebre em Felgueiras por ter morto com um tiro de Mauser um pobre lavrador que defendia com unha e dentes as videiras americanas que a ruindade do Governo queria arrancar, emudeceu ali. Não por que a razão o tivesse abandonado, mas porque a sua alma negra que tenta em vão branquear com álcool, o mandou estancar.
Todo o povo, desaproveitando os palpites do Gigueiro, continuou a procurar as causas prováveis dos desacatos nocturnos; se eram lobos, o melhor seria deitar trancas aos portelos dos gados, enfeitar os cães com coleiras com espetos de aço cravados porque os bichos bravos com fome, até os cães estrucegam pelo pescoço e depois num autentico festim, devoram os restantes pedaços dos animais excepto a cabeça.
Falar, todos falavam a dar ideias uns aos outros que passavam quase todas por vigilância apertada e se possível lá bem perto da encruzilhada de onde pareciam vir os gritos dos animais selvagens, mas passar de conjecturas à prática, era quase impossível porque o medo condicionava todas as vontades até as dos mais avantajados de corpo.
Aqueles que mais falavam ali a dizer que faziam e aconteciam, eram os mesmo que à meia-noite dessas fatídicas Sextas-feiras se mijavam todos pelas pernas abaixo ou se refugiavam a tremer de medo nos regaços das esposas quando ouviam os lobos uivar.
O tempo ia passando vagaroso por Sebolido sem que nenhuma das pobres almas se atrevesse a desafiar a matilha que impreterivelmente fazia aquele horripilante espectáculo todas as semanas. Encolhidos nos seus próprios temores, evitavam conversar sobre o assunto e os lancinantes uivos, passaram a fazer parte integrante dos banais acontecimentos da terra com quem todos já se sentiam familiarizados e, só o terror permanecia, agora com dia marcado e só depois das trindades.
Numa noite, o Raposo que regressava a casa vindo de Aveiro da tropa e calcorreou os caminhos desde a estação de Campanha até ali, foi surpreendido ao passar por baixo nas Portelas, pelos uivos aflitivos dos lobos e com a coragem própria de quem dá gratuitamente o corpo ao manifesto em defesa da pátria, jurou logo ali que havia de passar a ferros aquelas ameaçadoras feras.
Se bem o pensou e jurou, também passou rápido à acção e logo no dia seguinte fez constar os seus propósitos por toda a população. Porém, desconhecedor das últimas e novas ocorrência da freguesia devido à prolongada e forçada ausência, não sabia que teria de esperar uma semana para cumprir a promessa que já todo o lugar aplaudia como o mesmo entusiasmo que se aplaude um touro que vai a caminho do matadouro.
Mesmo correndo com lentidão o tempo, a Sexta Feira chegou embrulhada na esperança de todo um povo que já respirava de alivio só de saber que havia um voluntário para enfrentar as fera e, logo um tropa habituado, pensaram, a lidar com canhões e outros tipos de armamento capazes de desbaratar uma alcateia inteirinha.
Bateram as onze da noite num sino algures do outro lado do rio Douro e já o Raposo armado de sachola na mão, esperava os bichos na encruzilhada de Cruz de Ferro. Ainda era cedo mas ele, na sua condição de militar tinha de definir antecipadamente as estratégias do combate e, nesse caso concreto, não há nada melhor que fazer antes de tudo o reconhecimento do campo de batalha. O sino voltou a badalar horas mas o militar nem tempo teve de saber quantas pois um vulto de homem surgiu no meio dos caminhos e num instante transformou-se num lobo.
O tropa venceu depressa a estupefacção e, antes que se lhe arrefecesse o sangue nas veias, avançou resoluto para o animal e espetou-lhe uma sacholada na cabeça que respingou sangue por todos os lados atingindo o Raposo na cara e ele sentiu como se tivesse sido varado por uma espada feita de gelo. Empunhando a arma numa atitude de fúria, viu o lobo transformar-se outra vez em homem e reconheceu-o naquele corpo a sangrar o embora filho de mães diferentes, seu meio-irmão Valdemar. Confuso, desorientado, completamente perdido no meio da encruzilhada experimentou a dor do corpo a metamorfosear-se e, em breves minutos era ele também um lobisomem a uivar como um louco para a lua. Tinha esquecido as orientações que aprendera na tropa e, como não sabia ler nem escrever, nunca tinha consultado os manuais de guerra que diziam ser, conhecer bem o inimigo, a primeira acção de um combatente. Ignorou outras não menos importantes e nem sequer sabia que quem for o oitavo filho varão de mãe que tenha sete filhas, não escapa a ser alma penada e também que, no acto de matança de um deles, quem receber no corpo pingos do seu sangue, virá a ser um Lobisomem.
Os pequenos suspiraram aliviados e a coçar os olhos enquanto o Lourenço parecia ter desperatado de um sonho. Depois de uma breve pausa, retomou a narração:
Sebolido acordou numa paz despreocupada ao verem o Raposo passar acompanhado pelo irmão Valdemar a caminho dos campos. Estava vivo, vencera a alcateia e acabara de vez com aquele inferno semanal. Todos se sentiam felizes e contentes mas longe de imaginar que na próxima semana haveria mais um lobo a uivar à lua.
Já há algum tempo que as duas crianças dormitavam, decerto nem ouviram toda a fantástica e tenebrosa história inventada há séculos com o propósito de lembrar às criaturas mais jovens os numerosos perigos que as sombras da noite agasalham.
Dormiam já tranquilos os anjinhos sob a protecção do Lourenço que com aquela renovada ternura que só um avô sabe dar, lhes pegou ao colo e foi deitá-los na mesma caminha encostada a um canto nos fundos da pequenina sala.
Ali muito perto o rio Douro repousava das freimas do dia, dormia em paz e tão serenamente como se fosse um Deus.

2 comentários:

Piko disse...

Naqueles tempos idos as histórias de tardos, lobisomens e bruxas andavam na boca dos mais idosos, que nem sabiam outras histórias para contar aos mais pequenos! Conheci adultos que viveram as suas vidas junto do rio Douro, convencidos por estas superstições e com muito medo pela noite...
Esta história vem relembrar as vidas dificeis das gentes da beira-rio, afinal, os nossos antepassados!...
PIKÓ

Mª Dolores Marques disse...

É uma delicia ler estas histórias que também conheço, através de outras palavras, outros lugares

Obrigada pelo seu contributo no meu blog.
Beijos