sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Libras de Oiro

O Lopes andou pelo Brasil trinta anos. Chegou lá com uma mão à frente e outra atrás, teso como um virote mas transportando no peito uma gigantesca e inabalável força de vontade de enriquecer depressa e voltar de seguida à terra onde nasceu.
Embarcou para fugir às inclemências da guerra das guerras em 1914, terrível conflito mundial que deixou estas bandas num autêntico campo de concentração sem alimento e também por receio de ser mobilizado para África onde tropas portuguesas juntas com os aliados, já combatiam os alemães nas fronteiras.
Foi do porto de Leixões que largou num cargueiro inglês e cheio de saudades, deixou para trás Sebolido a sua terra natal e a ditosa pátria entregue a si própria.
Enquanto outros emigrantes portugueses se estabeleciam e se dedicavam ao fabrico de pão que abastecia a cidade do Rio de Janeiro, ele recolhia embalagens usadas, sacos de transporte de cerais, café e outros produtos de importação que ali chegavam a granel e eram transbordados em fracções que seguiam para as firmas importadoras.
Foram trinta anos penosamente vividos abdicando de tudo o que lhe poderia dar prazer na mira de amontoar lentamente a fortuna que viria mais tarde a transformar em libras de ouro. Voltou rico, muito rico e a primeira coisa que fez logo que pisou terra firme, foi comprar quintas e terrenos florestados no monte da sua terra de origem.
O Lopes vivia bem e, embora já entrado na idade sem grade dificuldade, acabou por casar com uma fidalga mantida pelos pais em reserva, aguardando o momento de a entregar a um homem de teres e haveres que lhe garantisse vida boa e farta. Muito mais nova que ele, a Serafina espalhava pela vida do Lopes enorme vitalidade de corpo que se tornou bastante e acabou por lhe dar dois filhos varões.
Poucas ou nenhumas vezes o Lopes saiu de Sebolido, da quinta que produzia vinho, milho e outros produtos que garantiam a subsistência da família bem como mantinha com pasto, quatro juntas de bois obreiros no lavrar dos campos e motores dos carros de madeira que transportavam todos os materiais necessários ao perfeito funcionamento de uma casa de agrícola como a dele.
Não há criaturas eternas, tudo o que nasce morre e, como tal, ricos ou pobres, todos acabamos mais tarde ou mais cedo por esticar o pernil abandonando com alguma tristeza tudo o que amealhamos nesta vida. Foi o que aconteceu ao Lopes, com oitenta e nove anos feitos em Agosto, viu por altura da feira das colheitas em Arouca, o anjo da morte a rondar-lhe a casa que tinha mandado construir no intuito de vir a ser um hotel, à espera que desse o seu último estremecimento para então lhe levar a alma, sabe-se lá para onde mas de certeza que não para o maravilhosos céu que o padre António lhe garantia sempre que contribuía com avultada quantia para a obra da igreja.
Pressentido o fim, sentido aquele aperto na garganta própria dos agonizantes, num gesto que parecia ser de generosidade, mandou chamar com urgência os dois filhos à cabeceira da cama.
-Estás aqui Bernardino? E tu Manuel, também estás?
Os olhos já só lhe distinguiam vultos, tão cegos como na hora do seu nascimento, deixaram que fossem os ouvidos sozinhos a identificar a sua criação:
-Estou aqui pai, sou Bernardino. Eu também estou aqui, sou o Manuel, não fale, não se esforce tanto.
A resposta chegou ofegante entrecortada pela tosse e, o inesperado aconteceu então:
-Ide ao Courel, ide ao Courel, balbuciava o moribundo.
-O que é que tem no Courel pai, perguntaram os dois em simultâneo.
O Lopes ia e vinha ao sabor da agonia, mais morto que vivo reuniu as últimas forças e desvendou o mistério:
-Libra de oiro, três panelas cheias de libras de oiro.
-O Courel é muito grande pai, diga o sitio onde as enterrou perguntou o Bernardino.
O Lopes ficou alguns momentos sem lhe responder, de olhos cerrados pensou-se que tinha exalado o último suspiro.
Os dois filhos possessos pela cobiça já não se importavam com o doloroso esforço do pai para falar, sacudiam-lhe energicamente os ombros, sempre a perguntar:
-Diga lá pai, diga onde enterrou as libras de oiro, diga!
O velho arregalou os olhos e agora na agonia final interpelou-os
-E se eu não morro!?
Estremeceu e ficou -se como um passarinho.
Os filhos nem esperaram pelo funeral, mal sentiram que o velho tinha morrido, dirigiram-se apressados ao Courele, munidos de enxadas e picaretas esburacaram a quinta toda mas nunca conseguiram encontrar as panelas com as libras.
Passaram-se muitos anos, o Bernardino e o Manuel já repousam na terra fria sem nunca terem gozado do ouro do pai mas quem ainda hoje for ao Courel, pode ver as muitas crateras existentes nos campos.

1 comentário:

Piko disse...

Esta emigração, que era uma prática muito corrente na primeira metade do século vinte, em que tantos partiam do Douro até ao Brasil, levando na bagagem um sonho e uma riqueza, que, na maioria das vezes não acontecia, acabando mesmo por ficarem por lá sem terem passado da "cepa torta", e, acabando bem longe das famílias e da região que os vira nascer, depois de uma aventura que não estariam à altura de saber avaliar, pensamos nós...
O Lopes da história foi nesse aspecto uma das poucas excepções à regra, mas a avareza ou o delírio, no final da vida, ainda lhe valeram uns valentes abanões, porque os filhos eram a sua continuidade, no melhor e no pior!
Recordo ainda na minha meninice junto do rio, as gentes mais antigas destas aldeias durienses repetirem até à exaustão:-« Quem sai aos seus não degenera!»
Coisas do antigamente e com que todos concordavam, aparentemente!
Parabéns ao M. Cunha por trazer até nós formas de vida, que, entretanto, se diluíram no tempo, porque, como sàbiamente nos conta, nada é eterno! De facto, é tudo uma questão de tempo!...
PIKÓ