domingo, 24 de julho de 2011

Cidade Surpreendente

A noite desceu sobre o rio tão repentinamente que entretido a contemplar a beleza do céu, nem sequer me apercebi. A luz do sol esgueirou-se no cume de uma montanha que delimitava o cenário que tinha pela minha frente e, a claridade crepuscular que ficou, apenas possibilitava vislumbrar as silhuetas do meu pequeno mundo, espaço demarcado que me cercava e um rio ao fundo a brincar com as mãos.
Primeiro escondeu-se o fulgor que mostra tudo, desnuda, fere com brutal realidade e faz resplendecer as vidas das pessoas e as coisas comuns da terra, depois afluíram as sombras que ocultam, atemorizam e resumem a paisagem à condição de matéria sem vida. Começava um período sombrio, onde a visão fica diminuída, espaço propício para que a humanidade crie os seus mitos e temores incompreensíveis. Ruídos inexplicáveis, visões sombreadas incendeiam a imaginação de muitos, fazendo surgir os vampiros, lobisomens, bruxas, deuses coléricos e todo um exército de entidades fantásticas.
Enquanto a terra faz o seu movimento de rotação, os morcegos e as corujas de pios agourentos, sobrevoam desajeitados o espaço à procura de insectos voadores para se alimentarem e outras espécies de bichos rastejantes e cobras, lagartos, sapos, javalis, ouriços-cacheiros e muitos outros que durante o dia permanecem escondidos nas suas tocas, vagueiam por todos os lados movidos pela necessidade de sustento, pela segurança que as trevas proporcionam e pela ausência de luminosidade que tornaria alguns quase cegos. Uma vida repleta de seres que a noite agasalha no seu manto protector eclode lentamente, a terra anima-se de uma forma completamente distinta da que mostra durante o período com luz e a natureza aproveita para continuar o processo quase perfeito de manutenção das espécies.
A minha janela aberta, a cadela a dormitar enroscada a meus pés lá fora um sopro quente e abafado de verão a percorrer os caminhos vazios da minha aldeia lado a lado com fantasmas de criaturas já falecidas a tentar reviver momentos de uma vida inacabada ou mortos à procurara por vingança, ou aprisionados à terra por actos ruins que praticaram durante a vida ou ainda uma pessoa que lhes jurara amor eterno.
Eram quatro, três homens e uma mulher, pararam por baixo da minha janela, acenavam-me com gestos de mãos e na penumbra não reconheci nenhum deles, não era gente do meu tempo, talvez fossem criaturas que aqui residiram em épocas passadas. Distingo-lhes as feições as próprias roupas cujo estilo me parece ser antigo. Ao contrário das discrições sobre fantasmas, de que eles seriam formados por um material enevoado, etéreo que escapa ao tacto dos vivos, estes apresentam-se demasiado reais, parecem-me tão autênticos que nem sequer me assustam.
-Que estás aí a fazer, anda connosco, vem para um lugar onde tudo é maravilhoso, deixa de te preocupar com os outros, não precisas, isso é tudo uma mentira, o mundo não merece a tua preocupação, vem, tens gente à tua espera, os teus pais, os teus avós, o teu irmão e todos os outros a quem amavas estão ansiosos pela tua chegada, disse um deles
-Fora daqui, desaparecei, estou farto da vossa conversa, todos os dias a mesma retórica, deixem-me sossegado, respondi meio irritado.
-Vais ter de vir, é uma questão de tempo, o que é que te prende aqui, achas que isso é viver, disse outra vez a mesma voz. Agastado, apontei com um dedo as luzes a tremular no horizonte negro e não disse nada.
-As luzes, tu estás preso às luzes mas olha que a ti já nenhuma luz te pode valer, acabou o teu tempo, vais ficar no escuro quando tudo se apagar, anda connosco, vem enquanto te podemos ajudar!
Já não se encontra paz em lugar nenhum, balbuciei, durante o dia são os vivos a transformar-nos a vida num inferno, durante a noite são os mortos a proibir os sonhos.
-Fora daqui repeti agora elevando a voz. Se não se põem a mexer atiço-vos o cão! Foram-se por entre gargalhadas colectivas enquanto a minha cadela levantava a cabeça lentamente e olhava para mim como quem olha para ninguém, como um cão que sente pena do chefe da matilha que enlouqueceu. Julgo que perdia a minha autoridade sobre ela nessa madrugada, pareci-lhe humano e os cães gostam mais dos seus iguais e só nos obedecem e aceitam como líderes por que vêm em nós um cão como eles embora mais corpulento e mais forte.
Um rumor surdo chegou-me amortecido pela aragem, um clarão desconforme no horizonte pressagiava a vizinhança da cidade surpreendente onde tudo sucede sem qualquer antecipado aviso ou compaixão e as criaturas coabitam amontoadas em silos gigantescos ignorando-se umas às outras, vegetando na selva supostamente civilizada. Aglomerado urbano e humano de grandes dimensões, a metrópole à noite transforma-se numa gigantesca central eléctrica produtora de luzes que matam as estrelas, ocultam o céu e despedaçam os sonhos.
Os clarões intermitentes que rasgam a noite, não são apenas labaredas a ferir um firmamento pardo transformado em cemitério onde jazem as esperanças de muitos, são interferências nas vidas privadas das pessoas e agressões a toda a natureza envolvente. Nos bares e outros clubes de diversão nocturna que ela sustenta, desarticulam-se corpos nas pistas de dança, marionetas bizarras possuídas e dominadas pelo efémero efeito de pastilhas de felicidade instantânea misturadas com bebidas exóticas de elevado teor alcoólico manipuladas por pessoas dementes e as lâmpadas multi-coloridas como loucas, rebolam-se nos tectos e às vezes as potentes luzes dos holofotes que cegam, desvendam pedaços de semblantes de jovens velhos, olhos baços, esgares de alienação, expressões comuns características dos momentos de pavor antecessores da morte colectiva e inesperada. O potente e ensurdecedores sons de músicas estranhas, abafam as palavras, os sorrisos e as lágrimas. Regabofe, festança e folia são os ingredientes que a cidade serve em taças de desespero que os jovens sorvem até à exaustão. A cidade não dorme, surpreende! Lá fora haverá gente a dormitar estendidos nos chãos dos átrios exteriores aos bancos e a outros estabelecimentos comerciais. Desabrigados agasalhados precariamente por papelões despejados na rua, pessoas que nós todos expulsamos da fraternidade, seres a quem a cidade hospeda no seu espaço de todos, prostram-se sobre a indiferença, ameaçam morrer antes de o sol chegar. A urbe já não tem quem a habite durante a noite onde tudo pode suceder e a segurança enfraquece, os milhares que a enchem em quanto é dia, afastaram-se para a periferia na tentativa de encontrarem paz e sossego.
Tens frio? Tens fome?
Havia luzes artificiais acesas nas ruas e nas casas espalhadas pelos povoados rurais que se avistavam da minha janela indiscreta de onde tudo se vê, tudo se compreende e pouco ou nada se sente por ser interdito e politicamente incorrecto exteriorizar emoções.
Primeiro eram centenas depois e à medida que a noite avançava, iam-se apagando, uma aqui, outra ali como se uma mão gigantesca dispusesse da claridade e das sombras conforme a sua vontade ou as suas particulares conveniências. Tudo a recolher ao silêncio absoluto, tudo a desaparecer na escuridão onde os corpos descansam vigiados de perto pelos sonhos misturados de pesadelos medonhos. Sob vigilância do clarão distante, ficaram apenas duas luzitas a tremular no escuro, sentinelas atentas, candeias que perpetuavam os vestígios da presença humana que teme as trevas ou apenas artificial claridade de dois lares, moradias onde o esforço diário ainda não tinha terminado. Já não dedilhava a minha guitarra, pousei-a a meu lado e deixei que os sons da noite tomassem conta de todo o ambiente que me cercava enquanto o meu pensamento se fixava nas tuas palavras tardias, ecos que se repercutiam no meu cérebro e naquelas duas luzes teimosas em se extinguir.
Olho as minhas mãos, os dedos que fabricam acordes nas cordas do instrumento e entristeço-me por me sentir tão incapaz e pequenino perante uma noite que, sabe-se lá porquê, decidiu abrir-se para mim.
Onde estás?
Era já madrugada, dentro das quatro paredes daquelas duas habitações, alguém ultimava tarefas, talvez duas mulheres a preparar roupas para o dia seguinte, a limpar, a lavar, a passar a ferro os trapos de crianças que já dormiam acumulado trabalho que se repetiria todos os dias, todos os anos, nos seus lares e nos silos da cidade surpreendente limpando o sujo de estranhos para poderem sobreviver, mulheres que tantas vezes fazem o papel de mãe e de pai em simultâneo ou outras pessoas que acudiam a idosos enfermos desesperados na solidão dos dias e das noites. Apeteceu-me gritar nessa hora de deslumbramento, a injustiça do mundo molesta-me, quase me faz perder a esperança e então, imbuído por sentimentos solidários, desejei que os acordes e sons da minha guitarra pudessem chegar até aquelas duas moradias e amenizassem as canseiras de uma ou outra mulher martirizadas ou suavizassem os tormentos de um idoso doente e a paz e tranquilidade que o corpo e o espírito anseiam, descessem para todos sobre o mundo.
O rio brilhava reflectido o luar, desenhos rabiscados na água tela de abstraccionismos, a decomposição da figura, a simplificação da forma, os diferentes usos da cor, o descarte da perspectiva, da técnicas de modelagem, a rejeição natural dos jogos convencionais de sombra e luz, ruídos, melodias, sucessão coerente de sons e silêncios com identidade própria, estranhas formas a gritar vivas na penumbra. O pintor é louco!
Onde estás?
Só o rio douro sentia e compreendia a minha reflexão em silêncio enquanto eu permaneci acordado até à última luz se apagar nas casas e a magia da noite que me fascinava, onde já esquecido do tempo, dos fantasmas que me perseguem desde que nasci, ia-me falando do clarão distante, apontando a cidade surpreendente onde os meus sonhos de felicidade se desvaneciam em cada grito lancinante dos que já não têm lá abrigo.
A madrugada e eu, protótipo de futuro fantasma isolados e perdidos algures numa outra dimensão onde tudo é excessivamente real e a vida dói e tu a chegares demasiada tarde ao princípio da minha noite.
Onde estás?
Quando amanhecer tu vais perguntar-me constantemente por que não consigo ser feliz! Dois barcos no rio a ressuscitarem das sombras, criação da minha mente exausta, duas novas esperanças ou apenas mais duas ilusões a juntar ao imenso rol de acontecimentos de uma vida.
A cidade vai acordar daqui a pouco, o clarão artificial que denunciava a sua presença, confundir-se-á com a luz de mais um dia que nasce e, liberta dos lixos nocturnos, resplandecerá distanciada e muito longe do alcance dos meus olhos.

1 comentário:

Piko disse...

Todas as pessoas que vivem com preocupações sentem este tipo de angústia... E as angústias surgem porque a informação de hoje - mais democrática - dá-nos conta dos problemas que vêm ter com as pessoas, quer morem no interior ou mesmo na litoral... E as insónias aumentam na proporção... É dos livros!Parabéns Manuel pelos contributos que continuas a dar na divulgação das gentes durienses e dos seus problemas... Bem hajas!