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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Solidão

Às vezes é por terra que percorro a distância entre a foz do rio Douro e Miranda onde ele entra em Portugal e começa a fazer fronteira com Espanha até Barca D´Alva. A partir dali, embrenha-se todo no nosso território e segue a serpentear tortuoso por entre serras até chegar ao mar onde desagua coroado pelas cidades do Porto e V.N. de Gaia.
Vou por estradas que subindo e descendo montanhas, apontam diversificadas direcções sempre com o rio à vista. Nos planaltos do extremo nordeste, assisto à desertificação e ao abandono de campos, de aldeias inteiras deixadas entregues à sua sorte pelo resto de um país que perdeu já a sua identidade. Este comportamento tem uma razão que se prende com a vida desumana que tem feito parte de cada uma das gerações ligadas às actividades agrícolas consideradas, sector primário. Nenhuma das famílias que viveram da agricultura de subsistência desejam para os seus filhos e netos, o regresso a esse tempo de sacrifício motivado pelo desprezo com que a sociedade quase no seu todo em determinado momento da nossa história olhava para os trabalhadores do campo. Intitulava-os de labregos e outros apelidos redutores e depreciativos que aliados a más condições de subsistência fizeram um sector essencial ao equilíbrio sustentado de um país desertar e empreender métodos de vida semelhantes às dos cosmopolitas maldizentes
Há também uma outra razão muito mais pomposa que encanta os ouvidos dos mais susceptíveis às moderníssimas chamadas do mundo em constante mudança. Chama-se cosmopolitismo que desgraçadamente empurra toda uma nação na direcção do mar onde fica emparedada e sem horizonte capaz de lhe proporcionar a continuidade do avanço que empreendeu. Restar-lhe-á recuar, voltar às origens e empreender futuros. As gerações modernas têm pressa de chegar ao fim. Esqueceram o presente e já vivem no futuro onde tudo constitui incógnita e provoca desesperos medonhos. Quem lhes diz que a vida se faz caminhando paulatinamente? Os governos? Não, esses existem para administrar aglomerados centralizados o mais possível, acessíveis aos toques das suas varas, quais pastores que os tosquiam constantemente e, assoberbam com promessas que raramente cumprem. Descaradamente já nem percorrem o país rural de modo a sentir-lhe o pulso, a agonia, a lentidão da morte que também vai ser a deles e quiçá, ajudá-lo a renascer a não ser nas campanhas eleitorais onde se pavoneiam em sumptuosas caravanas de carros de luxo a alta velocidade à cata dos votos dos lorpas e nunca param nas terras pequenas seguindo directos aos auditórios onde os ditos reunidos por pequenos oligarcas locais pacientemente os aguardam agitando freneticamente as bandeiras do partido que muitos nem conhecem. É a política, a arte de vender enchidos com pouca carne lá dentro. Todavia não é a política em si uma actividade perversa, os actores políticos, muitas vezes sem formação cívica, é que não reúnem vocação para desempenhar essa função e dedicam-se em primeira instancia a resolver os seus problemas, os dos amigos e familiares e os da sua quinta improdutiva por flagrante má gestão. Esses representantes do poder eleitos democraticamente, são propostos ao voto não pelas suas capacidades morais, intelectuais ou outras não menos importantes ao desempenho de cargos públicos, são fabricados à medida das necessidades das organizações partidárias onde militam. Indiferentes às causas colectivas, egoístas, ignoram conceitos solidários, procedem como pequenos ditadores impondo a sua vontade contra tudo e contra todos às vezes por manifesta burrice.
A indiferença é o maior sinal da incompetência de quem gere. O castigo surgirá num tempo oportuno não sem antes haver choros e ranger de dentes até que o interior erga altivo a espada da razão para repetir a solidariedade desaproveitada só porque nada teme, nada o assusta nem a morte consentida por quem manda.
Repentinamente o rio desaparece-me das vistas, esconde-se por de trás de uma elevação para inesperadamente me surgir mais à frente surpreendente e majestoso. Cada uma destas sucessivas aparições desvenda um panorama novo e tal como Miguel Torga descreveu num trecho sublime, não é um quadro que os olhos contemplam, é uma desmesura de natureza arrogante. Poios que são esforços de indivíduos formidáveis a subir as encostas, vultos, colorações e toadas que nenhum artífice, escultor, pintor ou até músico nunca conseguiriam representar na perfeição das suas artes, são horizontes ampliados para lá dos patamares admissíveis da visão, um cenário que arrebata, uma vista fantástica a nascer entre a terra e o céu.
Nada me consola mais que essa peregrinação pelas terras que dão vinho generoso e onde corre um rio sempre lá ao fundo dos vales que adoptou como leito. Tudo é dinâmico, nada se repete etapa após etapa e, os contrastes naturais são tão apelativos que algumas vezes assustam e outras vezes nos comovem.
Um dia quando viajava pelo douro, afastei-me um pouco do trilho conhecido e, por uma estrada secundária fui parar a um ermo onde em tempo passado existiu uma aldeia. Havia velhas casas desmoronadas, árvores secas, roseiras que deixaram de ter água, pedras caídas por todo o espaço como se uma bomba atómica tivesse deflagrado ali e deixasse só restos espalhados no chão queimado por sucessivos incêndios e a terra em repouso à espera dos arados a ver ao longe a fome a entrar em muitas casas.
No meio desse cenário desolador, havia um edifício cujo aspecto me pareceu ter resistido à fúria de todas as intempéries, ao desleixo que a nação aplaude.
Sentada na pedra de um fontenário que teimava em gotejar dia e noite estava uma velha mulher e, ao lado dela um cão já velho deitado no chão de cascalho, dormia tranquilamente. O suposto atento vigilante, não tinha dado pela minha presença ou então já nem lhe interessava quem quer que fosse a pessoa que viesse interromper-lhe o deleite do sono. A prolongada solidão gera o cansaço no ser e transforma homens e animais em pedras de indiferença.
As ervas cresceram ao ritmo acelerado do abandono, o único conhecido ritmo deste lugar perdido. A velocidade da seiva que nutre caules verdes, já há muito que só alimenta os fios do esquecimento. São silvas que crescem espinhosas e amortalham lugares onde a vida existiu. Quase todos os homens e mulheres que aqui nasceram, envelheceram com a terra, morreram ou partiram em busca de melhor pão.
A velha parecia-me uma fotografia antiga perfeitamente enquadrada na tristeza da paisagem, descolorida como estátua onde se agarram musgos eternos. A sua cabeça coberta por grinaldas de cabelos brancos, tombava sobre o peito como quem subitamente adormeceu cansado. Talvez sinta o desespero de quem ficou quando todos partiram ou reflicta sobre o mundo que a deixou sozinha neste deserto sem pessoas que se precipita sobre um rio. Resta-lhe pousar a mão sobre o joelho sentada nesta pedra de granito tornada áspera pelo tempo e esperar pelo fim dos dias.
Uns olhos pequeninos afundados em dois buracos circundados por peles encorrilhadas vieram sem pressa até mim e, a expressão daquele rosto antigo manteve-se inalterada como se eu próprio fosse apenas mais um vento que vinha do sul sacudir-lhe os cabelos ralos e brancos. Ventos perpétuos que por aqui passam todos os dias a sacudirem as pedras e transportam dentro da sua permanente erosão poeiras que vão apagando os vestígios humanos.
Senti desejo de comunicar com aquela figura que me fazia lembrar a escultura do mestre Soares dos Reis, O Desterrado, magnifica simbologia do espírito de decadência da nação, que imperava em finais do século XIX. Desterrada também ela estava num lugarejo esquecido por via de acontecimentos semelhantes aos de hoje ocorridos há muito mais de cem anos.
A história repete-se duas vezes, escreveu um dia Marx: a primeira como tragédia, a segunda como farsa. Curioso, qualquer uma delas refere-se a uma peça teatral, será então de supor que a história ao repetir-se não passa de mera representação previamente encenada onde as pessoas se movimentam num palco colectivo sem esperança e embarca no mesmo conflito de identidade característica dos povos em vias de desenvolvimento.
Segundo Aristóteles, a tragédia deve cumprir três condições: possuir personagens de elevada condição e ser contada em linguagem distinta e digna e ter um final triste, com a destruição ou loucura de um ou vários personagens sacrificados pelo seu orgulho ao tentarem rebelar-se contra as forças do destino. De finais tristes e desmesuradas loucuras está repleta a nossa história contemporânea vergada a interesses individuais que geram disparidades e acentuam distâncias abismais entre ricos e pobres.
Por sua vez a farsa é uma modalidade burlesca também de peça teatral caracterizada por personagens e situações caricatas, é um texto de carácter cómico que o autor faz com o objectivo de satirizar algum comportamento que ele considera nocivo para a sociedade, fazendo com que, quem assistisse ao teatro, visse como é ridículo ter aquele procedimento passando a repudia-lo. Isso fez com que a sociedade rejeitasse determinadas conduta, prejudiciais a todo o povo.
Burlescos e cómicos têm sido os últimos tempos que vivemos em que parte da sociedade enaltece a falta de cultura, ética, a ausência de princípios, a desqualificação e, em prejuízo destas, se elogia a esperteza, a ganância, o exibicionismo folclórico e quem mediático se tornou pelo simples motivo de agradar às massas estúpidas que cultivam celebridades duvidosas.
Seja como for, nenhuma delas impede a caminhada do mundo para a auto-destruição deste tipo civilizacional tal o conhecemos, cenário cada vez mais plausível no horizonte contaminado da terra, tragédia ou farsa a história moderna não é mais que o reflexo da nossa incapacidade de conquistar o futuro honrando o passado e de corrigir imensos erros transactos apreendendo com eles e não os repetindo, ou será a inevitável execução de ordens naturais programadas para mudanças sucessivas no universo onde habitamos? Outras culturas emergirão após o desaparecimento da nossa, nada se perderá e, como aconteceu até aqui, tudo se vai transformar.
- Bom dia minha senhora!
- Muito bom dia, respondeu-me sem qualquer surpresa nas mãos que lhe dormiam no regaço, quietas, enrugadas e queimadas por um estranho lume.
-A senhora mora aqui, perguntei.
-Há oitenta e nove anos e meio meu senhor, nunca daqui saí até hoje!
-Tem mais alguém a viver consigo?
-Não meu senhor, já há quinze anos que moro aqui sozinha, foram-se todos embora!
-E não tem família?
-Não meu senhor, morreram todos, fiquei só eu!
Enquanto falava reparei que os olhos dela pareciam duas telas onde passavam imagens de cenas que só ela viveu. Olhos de velhos onde se acumulam saberes e visões esquecidas, vistas que a bruma dos anos embaciou e roubou o brilho mas nem por isso deixaram de ter a sua luz magnífica.
-Deve ser muito difícil viver neste sítio sem ter companhia, murmurei.
- Não meu senhor, tenho aqui a minha vida toda, criei-me nestes caminhos, corri os montes antes florestados na apanha das lenhas para sustentar o lume da lareira onde se cozinhava todos os dias, aqui me fiz mulher e me casei, foi aqui que eu nasci e fui muito feliz durante muitos e bons anos! Isto dantes era uma terra cheia de gente e de vida, havia festas e romarias, as vinhas estendiam-se quase até tocar no rio, os campos davam comida para as pessoas e para os gados. Depois começaram a ir uns atrás dos outros para o estrangeiro, isto parou de recompensar o esforço que se fazia para tratar a terra, o vinho deixou de valer dinheiro, ninguém o queria nem de graça, compravam outro que vinha de fora mais barato mas feito a martelo, desapareceu tudo até só ficarem os velhos, os cães e os gatos. Acabou tudo meu senhor até as árvores que existiam aqui em volta foram queimadas pelo lume dos fogos que já ninguém apaga.
Nisto o cão levantou-se e começou a ladrar ameaçadoramente na minha direcção.
-Cala-te Mondego, só te chegou o cheiro ao nariz agora? É um senhor do Porto que aqui está, veio visitar-nos disse ela enquanto lhe afagava ternamente a cabeça. O animal calou-se, rodou duas vezes sobre si próprio e voltou a esticar-se tranquilo no chão.
- Sabe meu senhor, ele ficou velho como eu fiquei, está surdo e cego, só atina pelo faro coitadinho!
-Pobre e dedicado animal, o que será que te prende aqui pensei!
-Deve ser muito triste viver neste lugar sem ver nada para lá dos montes, retorqui.
-Olhe lá para baixo meu senhor, não vê o rio douro? Está sozinho como eu e não se queixa, fazemos companhia um ao outro, vamos vivendo olhando-nos todos os dias!
Apeteceu-me beijar aquele rosto sereno, contendo todavia esse impulso repentino, perguntei-lhe:
-Posso dar-lhe um beijinho de despedida?
-Beijos não meu senhor, desculpe mas eu só fui beijada por um homem em toda a minha vida, era o meu António que descansa além no cemitério, todos os meus beijos ainda são só os dele!
Ah ínclito povo do meu país quase desfeito, roubam-te tudo o que te fez culto e empreendedor e impassível, continuas a envelhecer sentado numa pedra.

domingo, 24 de julho de 2011

Cidade Surpreendente

A noite desceu sobre o rio tão repentinamente que entretido a contemplar a beleza do céu, nem sequer me apercebi. A luz do sol esgueirou-se no cume de uma montanha que delimitava o cenário que tinha pela minha frente e, a claridade crepuscular que ficou, apenas possibilitava vislumbrar as silhuetas do meu pequeno mundo, espaço demarcado que me cercava e um rio ao fundo a brincar com as mãos.
Primeiro escondeu-se o fulgor que mostra tudo, desnuda, fere com brutal realidade e faz resplendecer as vidas das pessoas e as coisas comuns da terra, depois afluíram as sombras que ocultam, atemorizam e resumem a paisagem à condição de matéria sem vida. Começava um período sombrio, onde a visão fica diminuída, espaço propício para que a humanidade crie os seus mitos e temores incompreensíveis. Ruídos inexplicáveis, visões sombreadas incendeiam a imaginação de muitos, fazendo surgir os vampiros, lobisomens, bruxas, deuses coléricos e todo um exército de entidades fantásticas.
Enquanto a terra faz o seu movimento de rotação, os morcegos e as corujas de pios agourentos, sobrevoam desajeitados o espaço à procura de insectos voadores para se alimentarem e outras espécies de bichos rastejantes e cobras, lagartos, sapos, javalis, ouriços-cacheiros e muitos outros que durante o dia permanecem escondidos nas suas tocas, vagueiam por todos os lados movidos pela necessidade de sustento, pela segurança que as trevas proporcionam e pela ausência de luminosidade que tornaria alguns quase cegos. Uma vida repleta de seres que a noite agasalha no seu manto protector eclode lentamente, a terra anima-se de uma forma completamente distinta da que mostra durante o período com luz e a natureza aproveita para continuar o processo quase perfeito de manutenção das espécies.
A minha janela aberta, a cadela a dormitar enroscada a meus pés lá fora um sopro quente e abafado de verão a percorrer os caminhos vazios da minha aldeia lado a lado com fantasmas de criaturas já falecidas a tentar reviver momentos de uma vida inacabada ou mortos à procurara por vingança, ou aprisionados à terra por actos ruins que praticaram durante a vida ou ainda uma pessoa que lhes jurara amor eterno.
Eram quatro, três homens e uma mulher, pararam por baixo da minha janela, acenavam-me com gestos de mãos e na penumbra não reconheci nenhum deles, não era gente do meu tempo, talvez fossem criaturas que aqui residiram em épocas passadas. Distingo-lhes as feições as próprias roupas cujo estilo me parece ser antigo. Ao contrário das discrições sobre fantasmas, de que eles seriam formados por um material enevoado, etéreo que escapa ao tacto dos vivos, estes apresentam-se demasiado reais, parecem-me tão autênticos que nem sequer me assustam.
-Que estás aí a fazer, anda connosco, vem para um lugar onde tudo é maravilhoso, deixa de te preocupar com os outros, não precisas, isso é tudo uma mentira, o mundo não merece a tua preocupação, vem, tens gente à tua espera, os teus pais, os teus avós, o teu irmão e todos os outros a quem amavas estão ansiosos pela tua chegada, disse um deles
-Fora daqui, desaparecei, estou farto da vossa conversa, todos os dias a mesma retórica, deixem-me sossegado, respondi meio irritado.
-Vais ter de vir, é uma questão de tempo, o que é que te prende aqui, achas que isso é viver, disse outra vez a mesma voz. Agastado, apontei com um dedo as luzes a tremular no horizonte negro e não disse nada.
-As luzes, tu estás preso às luzes mas olha que a ti já nenhuma luz te pode valer, acabou o teu tempo, vais ficar no escuro quando tudo se apagar, anda connosco, vem enquanto te podemos ajudar!
Já não se encontra paz em lugar nenhum, balbuciei, durante o dia são os vivos a transformar-nos a vida num inferno, durante a noite são os mortos a proibir os sonhos.
-Fora daqui repeti agora elevando a voz. Se não se põem a mexer atiço-vos o cão! Foram-se por entre gargalhadas colectivas enquanto a minha cadela levantava a cabeça lentamente e olhava para mim como quem olha para ninguém, como um cão que sente pena do chefe da matilha que enlouqueceu. Julgo que perdia a minha autoridade sobre ela nessa madrugada, pareci-lhe humano e os cães gostam mais dos seus iguais e só nos obedecem e aceitam como líderes por que vêm em nós um cão como eles embora mais corpulento e mais forte.
Um rumor surdo chegou-me amortecido pela aragem, um clarão desconforme no horizonte pressagiava a vizinhança da cidade surpreendente onde tudo sucede sem qualquer antecipado aviso ou compaixão e as criaturas coabitam amontoadas em silos gigantescos ignorando-se umas às outras, vegetando na selva supostamente civilizada. Aglomerado urbano e humano de grandes dimensões, a metrópole à noite transforma-se numa gigantesca central eléctrica produtora de luzes que matam as estrelas, ocultam o céu e despedaçam os sonhos.
Os clarões intermitentes que rasgam a noite, não são apenas labaredas a ferir um firmamento pardo transformado em cemitério onde jazem as esperanças de muitos, são interferências nas vidas privadas das pessoas e agressões a toda a natureza envolvente. Nos bares e outros clubes de diversão nocturna que ela sustenta, desarticulam-se corpos nas pistas de dança, marionetas bizarras possuídas e dominadas pelo efémero efeito de pastilhas de felicidade instantânea misturadas com bebidas exóticas de elevado teor alcoólico manipuladas por pessoas dementes e as lâmpadas multi-coloridas como loucas, rebolam-se nos tectos e às vezes as potentes luzes dos holofotes que cegam, desvendam pedaços de semblantes de jovens velhos, olhos baços, esgares de alienação, expressões comuns características dos momentos de pavor antecessores da morte colectiva e inesperada. O potente e ensurdecedores sons de músicas estranhas, abafam as palavras, os sorrisos e as lágrimas. Regabofe, festança e folia são os ingredientes que a cidade serve em taças de desespero que os jovens sorvem até à exaustão. A cidade não dorme, surpreende! Lá fora haverá gente a dormitar estendidos nos chãos dos átrios exteriores aos bancos e a outros estabelecimentos comerciais. Desabrigados agasalhados precariamente por papelões despejados na rua, pessoas que nós todos expulsamos da fraternidade, seres a quem a cidade hospeda no seu espaço de todos, prostram-se sobre a indiferença, ameaçam morrer antes de o sol chegar. A urbe já não tem quem a habite durante a noite onde tudo pode suceder e a segurança enfraquece, os milhares que a enchem em quanto é dia, afastaram-se para a periferia na tentativa de encontrarem paz e sossego.
Tens frio? Tens fome?
Havia luzes artificiais acesas nas ruas e nas casas espalhadas pelos povoados rurais que se avistavam da minha janela indiscreta de onde tudo se vê, tudo se compreende e pouco ou nada se sente por ser interdito e politicamente incorrecto exteriorizar emoções.
Primeiro eram centenas depois e à medida que a noite avançava, iam-se apagando, uma aqui, outra ali como se uma mão gigantesca dispusesse da claridade e das sombras conforme a sua vontade ou as suas particulares conveniências. Tudo a recolher ao silêncio absoluto, tudo a desaparecer na escuridão onde os corpos descansam vigiados de perto pelos sonhos misturados de pesadelos medonhos. Sob vigilância do clarão distante, ficaram apenas duas luzitas a tremular no escuro, sentinelas atentas, candeias que perpetuavam os vestígios da presença humana que teme as trevas ou apenas artificial claridade de dois lares, moradias onde o esforço diário ainda não tinha terminado. Já não dedilhava a minha guitarra, pousei-a a meu lado e deixei que os sons da noite tomassem conta de todo o ambiente que me cercava enquanto o meu pensamento se fixava nas tuas palavras tardias, ecos que se repercutiam no meu cérebro e naquelas duas luzes teimosas em se extinguir.
Olho as minhas mãos, os dedos que fabricam acordes nas cordas do instrumento e entristeço-me por me sentir tão incapaz e pequenino perante uma noite que, sabe-se lá porquê, decidiu abrir-se para mim.
Onde estás?
Era já madrugada, dentro das quatro paredes daquelas duas habitações, alguém ultimava tarefas, talvez duas mulheres a preparar roupas para o dia seguinte, a limpar, a lavar, a passar a ferro os trapos de crianças que já dormiam acumulado trabalho que se repetiria todos os dias, todos os anos, nos seus lares e nos silos da cidade surpreendente limpando o sujo de estranhos para poderem sobreviver, mulheres que tantas vezes fazem o papel de mãe e de pai em simultâneo ou outras pessoas que acudiam a idosos enfermos desesperados na solidão dos dias e das noites. Apeteceu-me gritar nessa hora de deslumbramento, a injustiça do mundo molesta-me, quase me faz perder a esperança e então, imbuído por sentimentos solidários, desejei que os acordes e sons da minha guitarra pudessem chegar até aquelas duas moradias e amenizassem as canseiras de uma ou outra mulher martirizadas ou suavizassem os tormentos de um idoso doente e a paz e tranquilidade que o corpo e o espírito anseiam, descessem para todos sobre o mundo.
O rio brilhava reflectido o luar, desenhos rabiscados na água tela de abstraccionismos, a decomposição da figura, a simplificação da forma, os diferentes usos da cor, o descarte da perspectiva, da técnicas de modelagem, a rejeição natural dos jogos convencionais de sombra e luz, ruídos, melodias, sucessão coerente de sons e silêncios com identidade própria, estranhas formas a gritar vivas na penumbra. O pintor é louco!
Onde estás?
Só o rio douro sentia e compreendia a minha reflexão em silêncio enquanto eu permaneci acordado até à última luz se apagar nas casas e a magia da noite que me fascinava, onde já esquecido do tempo, dos fantasmas que me perseguem desde que nasci, ia-me falando do clarão distante, apontando a cidade surpreendente onde os meus sonhos de felicidade se desvaneciam em cada grito lancinante dos que já não têm lá abrigo.
A madrugada e eu, protótipo de futuro fantasma isolados e perdidos algures numa outra dimensão onde tudo é excessivamente real e a vida dói e tu a chegares demasiada tarde ao princípio da minha noite.
Onde estás?
Quando amanhecer tu vais perguntar-me constantemente por que não consigo ser feliz! Dois barcos no rio a ressuscitarem das sombras, criação da minha mente exausta, duas novas esperanças ou apenas mais duas ilusões a juntar ao imenso rol de acontecimentos de uma vida.
A cidade vai acordar daqui a pouco, o clarão artificial que denunciava a sua presença, confundir-se-á com a luz de mais um dia que nasce e, liberta dos lixos nocturnos, resplandecerá distanciada e muito longe do alcance dos meus olhos.