quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Ainda havemos de tomar o café juntos


Naquelas noites em que deitados lado a lado na areia da praia contemplávamos milhares de estrelas a brilhar no firmamento celeste, tudo indicava que a nossa relação de amizade era perfeita e que nunca mais iria acabar. Nesse tempo estávamos ali livres de todos os preconceitos que a sociedade cultiva, despreocupados a falar de coisas simples, a olhar o céu abóbada gigante que à noite produzia cenários encantadores dignos do reparo de todas as criaturas da terra e a permitir que a escuridão fizesse os seus milagres. Eras uma rapariga linda, tinhas formas desenhadas a cinzel de escultor, feições suaves a decorar-te o rosto que parecia ostentar um sorriso permanente e eu via em ti um bibelô delicado feito com a mais fina porcelana chinesa a ornamentar uma mobília de século, um sopro de brisa de verão, um interlocutor que embora presente nunca interferiu nos devaneios da minha mente apostada na contemplação de coisas estranhas que não compreendia numa parceria de confiança que surgiu do nada. Se uma estrela te parecia brilhar um pouco mais que as outras, tu apontavas com um dedo para ela e dizias:
-– Até mesmo no firmamento há diferenças, repara que aquela estrela acolá resplendece muito mais que todas as que a rodeiam. Era verdade, o astro parecia ter dimensões desproporcionadas às suas companheiras, cintilava muito mais e parecia feito de fogo.
Eu ficava em silêncio um bom bocado e acabava por te responder recorrendo aos conhecimentos elementares que tinha apreendido nas aulas de astronomia na universidade:
-– É simples Mariana, é por que ela está muito mais próxima da terra que as outras.
Não retorquias, aceitavas a minha resposta por queporque eu significava para ti um mestre, um homem que sabia tudo acerca de tudo e, se muitas vezes não me interrogavas sobre outras realidades que te confundiam, era por queporque tinhas medo de ouvir a verdade e preferias ficar a conjecturar centenas de opções todas premeditadas, julgo eu, para te satisfazer o ego.
A nossa ligação não tinha nada a ver com amor nem com paixão, não dissemos as palavras banais e comuns a todos os que se enroscam num canto qualquer a curtir o fascínio e o ardor que provoca a aproximação de dois corpos apaixonados, era por assim dizer uma relação entre irmãos, sã e sem complexos de parte a parte, tu gostavas de vir para aqui à noite olhar para o céu e eu também gostava, aliás foi aqui que nos conhecemos, lembras-te? Isso já foi há muito tempo, todos os dias ao fim da tarde depois de cumpridas as nossas tarefas profissionais, sem que tivéssemos combinado nada antecipadamente, era neste sitiosítio que nós nos reuníamos. Às vezes tu chegavas uns minutos antes de mim e outras vezes era eu quem antecipava a hora do encontro pensando que já aqui estarias à minha espera não te querendo fazer esperar muito tempo.
Foi assim durante alguns anos, uma espécie de peregrinação que fazíamos os dois a um local à beira mar, coberto por um céu estrelado e onde se ouvia o som das ondas a varrer a praia.
Um dia deixaste de aparecer, em princípio pensei que estivesses doente, mas à medida que o tempo passava e tu não aparecias, percebi que me tinhas deixado para sempre. Nada que me surpreendesse, já não seria a primeira vez que me abandonavam apenas porque não correspondi às expectativas de sólido futuro depositadas em mim. Como outras, tinhas em mente um ninho, um projecto de vida seguro, a garantia de que independentemente de quem quer que fosse o homem que levarias ao altar, todas as tuas preocupações acabariam nesse dia. Não acabam Mariana, é um engano colossal porque se uma relação for baseada apenas nesses pressupostos, terá poucas probabilidades de sobreviver. Olha à tua volta, toma consciência dos dramas que acontecem todos os dias só porque as pessoas andaram mais interessadas em fazer negócios lucrativos do que em vez de atender aos alertas dos seus corações.
Lembro-me da última vez em que estivemos reunidos, tu usavas aquele vestido de cor pérola que parecia de seda e, quando encolhias as pernas, ele escorregava para a cinta e eu conseguia ver as tuas coxas morenas e os teus joelhos nervosos a baterem um no outro. Nessa altura se eu te tivesse colocado a mão na pele e fosse subindo pela sua macieza, tu deixarias de poder bater com os joelhos um no outro. Não sei se propositadamente ou não, desapertaste os dois primeiros botões no peito e, os teus seios redondos ficaram à mostra com os bicos apontados para o céu a contarem as estrelas como nós. Confesso que me incitei com essas visões mas foi por poucos minutos, a determinada altura tinha começado a pensar que tu tinhas uma esperança secreta de que eu acabaria por sucumbir aos teus encantos, notou-se mais quando viraste a cara para mim e, de olhos semi – -cerrados, com o peito a arfar de uma maneira estranha, ficaste uns segundos à espera que eu te desse um beijo na boca carnuda e cor-de-rosa. Não dei, antevi que todo esse teu enfeitar não passava de um ataque quase irrecusável à minha liberdade. Insististe no namoro por mais alguns minutos, até que desististe, dizendo-me:
-– João Paulo, por este andar ainda havemos de tomar o café, juntos.
Fiquei calado, não sabia o que querias dizer com “este andar” e, até ao dia de hoje não respondi à tua observação nem o podia fazer sem ter de te magoar. Não te disse mas gosto de tomar o café no silêncio matinal da minha cozinha desordenada, com a louça do almoço e do jantar do dia anterior empilhada em cima da banca por que eu vou recorrendo ao armário e enquanto houver lá dentro peças lavadas, não reciclo a usada, faço-o quando a mão procura um prato ou copo e não encontra nada dentro do louceiro. Depois também irias ver peças de roupa suja espalhadas por todo o lado, a cama por fazer, livros desarrumados no chão, o urso de peluche que conservo desde criancinha e que dorme aos meus pés todas as noites, tudo coisa de que tu não irias gostar nada.
Já passaram quatro anos desde essa última vez, imagino-te casada com um sujeito qualquer que aceitou tomar o café contigo depois de te ver as coxas morenas e os seios a apontar para as estrelas e que provavelmente agora adormece no sofá com a televisão ligada enquanto tu lavas ou passas a ferro as tuas roupas e as dele ou ponteias as meias que o teu homem rompe nos tornozelos por ser desajeitado no andar. Já não deves poder sair à noite e vir aqui apreciar as estrelas deitada de barriga para o ar na areia, tens de ir ao supermercado buscar mercadorias para abastecer a despensa enquanto ele vai abrindo latas de cerveja e prepara as tarefas do dia seguinte no computador. Durante o dia deves andar ocupada, não te sobra tempo para tratares de ti e apareceres ao mundo com o ar descontraído e gracioso que eu te conheci, foste apanhada nas malhas da sociedade moderna e quer queiras quer não, tens de cuidar dos teus afazeres domésticos que te transformam numa coisa parecida com uma máquina de servir hambúrgueres. Aposto que já nem usas o vestido de cor pérola que parece de seda e que te assentava no corpo como uma luva; e se o vestires, já não o deixas escorregar nas pernas até cá acima à cintura descobrindo as tuas coxas morenas nem os teus joelhos batem um contra o outro, nervosos. Já não deves ter interesse em mostrar a tua fantástica anatomia corporal por queporque ninguém como eu te admiraria como se fosses uma magnífica obra de arte sem te cobiçar as formas descaradamente.
Quantos anos tens agora Mariana, deves andar nos quarenta, tenho ideia que me disseste nesse tempo que tinhas trinta cinco ou trinta e seis. Não é muito, eu tenho um pouco mais e ainda não senti necessidade de tomar o café junto com ninguém. Talvez eu seja uma pessoa medrosa, insegura quanto a ter de partilhar a vida com uma mulher. Se calhar já a repartia contigo nos momentos em que, deitados na areia lado a lado, falávamos de coisas simples. Sinceramente não sei, o que te posso dizer neste momento é que sinto a tua falta aqui ao pé de mim.
Nuncatrocámos os números dos nossos telemóveis, não era preciso, a gente via-se todas as noites mas agora não te posso ligar a perguntar como vai a tua vida e tu também não me podes telefonar a perguntar se o velhote dos cachorros quentes ainda passa por aqui à meia-noite e se o bar da praia continua a estar aberto até às duas da manhã.
Sabes por porque me lembrei de ti hoje, Mariana?
Como sempre acontece estou aqui deitado na praia a olhar para as estrelas e aquela que tu dizias brilhar muito mais que as outras todas, não pára de olhar para mim e de dizer:
-– Ainda havemos de tomar o café, juntos!

5 comentários:

Piko disse...

Mais uma linda história das muitas que o nosso amigo e conterrâneo tão bem sabe contar!...
Embora não pareça, trata duma bela história de amizade, que, quase sempre dá no tal amor mais carnal e que termina, ou terminava, no tal altar a que todas as moçoilas tanto aspiravam... Não foi o caso nesta história, contada duma forma simples e com muito boa sequência e onde se percebe um certo realismo duma nova época, que entrou com uma força avassaladora, pondo em causa um bom número de conceitos e preconceitos com séculos e séculos de cega obediência ao que fora estabelecido por sucessivas sociedades conservadoras e autoritárias!...

Anónimo disse...

eu tenho a certeza... que vou beber café contigo... e sabes porquê? Porque o tenciono beber no café da aldeia... não tenciono ir lavar os teus pratos... Mas havemos de beber café juntos, Manuel!

Piko disse...

Este texto deixou-me pensativo... A razão disto acontecer, tem uma explicação que nem para mim é fácil... É verdade que nasci em Rio Mau e também é verdade que vivi em Pedorido até aos vinte anos, mas, tendo o conhecimento de muitos factos, não tinha na altura adquirido a formação capaz, afim de perceber com mais profundidade todas as implicações e entraves que manietaram e subjugaram as gentes do chamado Couto Mineiro, durante cerca de uma centena de anos... Estas afirmações e até observações que o meu conterrâneo tão bem traz a público neste texto, têm para mim o efeito de me dar a conhecer o outro lado mais desconhecido... Sim, porque os outros lados todos, foram sempre mais fáceis de aceitar e até de "engolir"... Não será por acaso, que há menos dum ano, uma criatura do nosso tempo me confidenciava, aqui em Ovar, acerca dum número de pessoas, que teriam feito carreira na Carbonífera, ou na sua orla e que teriam tido ligações de controle e até pidescas sobre as pessoas e o meio envolvente, abafando ou controlando, coisa fácil, se tivermos em conta o estádio geral das populações...
Por tudo isto, adorei aprofundar o meu conhecimento das aldeias onde vivi o tempo mais querido da minha juventude!

Piko disse...

Como devem ter reparado este meu último comentário saiu bastante ao lado e só não atingiu, vejam só, a ESTÓRIA AOS QUADRADINHOS como era minha intenção...
Peço desculpa com a esperança de vir a ser desculpado!...

Gondomarense do Norte disse...

...tinhas trinta cinco ou trinta e seis. Não é muito, eu tenho um pouco mais...
Livre de preconceitos?
O modernismo às vezes não tem substrato. Um cinquentão, educado pelos avós, pode fazer recuar o tempo a meados do século passado!
Mas é salutar procurar cortar com ideias retrógradas.
E se o poeta é um fingidor...
Gostei do conto!