terça-feira, 13 de março de 2012

A minha página no Facebook


Monitor com o ecrã todo iluminado onde faixas azuis mancham a predominância do branco e outras cores que se passeiam aleatoriamente sobre a tela onde as fotografias tipo passe dos internautas se sucedem quando estes dão sinal de vida, o computador do Barbosa apresenta-se na página do site mais concorrido do mundo. É o facebook, rede social onde setecentos e cinquenta milhões de pessoas aderentes trocam entre si imensa informação e onde cada pessoa pode ter o seu perfil, ou seja, os seus dados pessoais, as suas fotos e da família, links, vídeos, notas, ideias, projectos e uma infinidade de aplicações ao dispor de todos os utilizadores além de permitir que cada um a seu bel-prazer, interaja com a sua rede de amigos ou mesmo globalmente. É um mundo virtual onde tudo pode ser verdade e simultaneamente embustice. Tem tudo e de tudo este espaço global que ninguém domina, gente séria e gente desonesta tal qual como na vida real.Segundo uma investigadora americana, são quatro os aspectos estruturantes existentes nas redes sociais virtuais e que geralmente não fazem parte das suas congéneres reais.
Chama persistência àquilo que dizemos, fazemos ou colocamos na página e que tem a tendência de ficar registado para a posteridade, para sempre, quer se queira, quer não. A partir do momento em que essa informação fica registada on-line, qualquer pessoa, bem ou mal intencionada, poderá encontrar e aceder a ela. Seja amanhã ou daqui a uma ou mais décadas.
Também classifica de réplica da informação ao que dizemos e que os outros dizem online, numa conversa entre amigos, nos comentários que se fazem num blog ou as fotos que se colocam num site de uma rede social, a partir do momento que estão online, deixam de estar sobre o nosso controlo. Essa informação, uma vez encontrada, qualquer pessoa a pode usar e disseminar através da Internet. E em contextos que podem ser completamente diferentes daquele em que a informação foi originalmente colocada online. E pode fazê-lo de diversas formas, seja em mensagens de correio electrónico, mensagens instantâneas, perfis diversos, páginas de Blogs (áudio, foto e vídeo), redes sociais e de partilha de ficheiros, etc. Este aspecto, aliado à persistência da informação acima referida, tem dado origem a inúmeros casos preocupantes ao nível da segurança e do bem-estar de crianças, jovens e até de adultos.
Atesta que as audiências são invisíveis e que na rua, num centro comercial, num jardim, num café, etc., aquilo a que a investigadora Aanah Boyd rotula de ambientes não mediados, onde podemos sempre olhar à nossa volta para termos uma ideia sobre quem poderá ver ou ouvir o que vamos fazer ou dizer. Em função disso podemos sempre ajustar o que vamos dizer ou fazer. Por exemplo, falar com um volume de voz mais baixo para que os outros não nos oiçam ou fazer algo mais discretamente para que os outros não se apercebam do que vamos fazer. Resumindo, compreendendo o contexto do local em que nos encontramos e as reacções previsíveis das pessoas que aí se encontram, tomamos uma decisão sobre o que é ou não é apropriado dizer. Todavia, num site, num fórum, num Blog, num Photoblog ou num site de uma das muitas redes sociais existentes, nesses ambientes mediados, na terminologia de Boyd, não temos maneira de proceder da mesma forma.
Não temos hipóteses de saber quem nos poderá ver ou ouvir. Nunca sabemos com quem estamos a partilhar a informação. Mesmo que o façamos através de uma página privada, nunca ficaremos a saber de facto o que outros poderão fazer. Não apenas hoje, mas amanhã ou daqui a 10 anos. Não só porque não podemos controlar quem nos poderá estar a ver e ouvir no momento, mas também no futuro, o que está intimamente relacionado com os outros dois conceitos referidos apresentados pela investigadora: persistência e pesquisa sem limite.
Quais são então as diferenças entre estes dois mundos paralelos? Praticamente nenhumas; diferem nas formas mas não no conteúdo que é imutável tanto na vida real como na vida virtual. Aliás as duas completam-se quase na perfeição das coisas já por si imperfeitas e, se assim não fosse convenhamos, o mundo seria uma coisa insalubre, uma espécie de jardim babilónico no que ele teve de confuso, maravilhoso e grandiosidade e que veio a ser destruído pensa-se porque excedia a normalidade da época.
O Barbosa não sabe nada disto, nunca se preocupou com o universo onde nasceu e viveu até agora comportamento de alheação comum à maioria dos mortais que nascem, vivem e morrem sem saber quem foram, alguma coisa acerca de onde viveram e quais as referências da sua proveniência, mas e apesar disso, inconscientemente, encaixa como uma luva nos protótipos do estudo acima referidos. Tem um perfil completo onde diz ao mundo do Facebook que é engenheiro mecânico, vive no Porto e é solteiro a par de mais informação pessoal, o lugar onde nasceu e quando.
No canto superior direito do ecrã aparece uma foto supostamente do Barbosa aparentando boa figura rondando os quarenta anos de idade. Deve ter sido retirada de uma base de dados das muitas ao dispor de todos na internet. Somos uma imagem reflectida no espelho e quando não gostamos dela não gostamos de ninguém.
Quem o conhece pessoalmente sabe que todos estes dados estão viciados, nunca foi engenheiro e sempre se lhe conheceu a profissão de picheleiro numa empresa de Braga, cidade onde nasceu há cerca de sessenta anos e onde vive com a mulher e um filho considerado deficiente mental porque o seu cérebro não atinge os mínimos rendimentos padronizados e, por razões da imperfeita mecânica do mesmo, não permite o controlo absoluto sobre os músculos do corpo. Quer dizer, o Carlos pensa, reage à alegria, à dor, e a todas as emoções que o ser humano experimenta, executa com ajuda as principais funções fisiológicas, vê perfeitamente, ouve, respira como qualquer um de nós mas os seus miolos não dominam a mecânica muscular que o poderia libertar da inactividade do leito. Manifesta sentimentos porque dentro do peito tem um coração perfeito. A designação prognosticada pelos especialistas da medicina neurológica que ainda não conseguem decifrar as muitas encruzilhadas da mente, deficiente mental, corresponde a uma paralisia cerebral. O mundo abarrota de pessoas com características semelhantes que todavia não as impede de circularem por aí mas constituem limitações de toda a ordem e causam obstáculos inultrapassáveis a quem sofre desses sintomas.
O Barbosa iniciou-se no campo da informática na óptica do utilizador no programa Novas Oportunidades que teve lugar nas instalações de uma associação do seu bairro. Não lhe foi difícil assimilar informação de como manejar o aparelho, um picheleiro experimentado como ele, habituado a lidar com canos ligados uns aos outros com ramificações por todos os lados de uma qualquer habitação, representam mais ou menos o esquema de funcionamento do bicho que lhe puseram à frente. Foi só uma questão de traduzir a linguagem informática para o manual de pichelaria que guardava num ficheiro dentro da sua cabeça há mais de quarenta anos. Num ápice aprendeu tudo o que havia para aprender nas aulas limitadas a deixar os alunos com algumas luzes sobre tão complicada matéria.
A Internet fascinou-o desde a primeira hora e, quando o monitor do curso de informática se aproximava dele, surpreendia-se com a agilidade como que o site do facebook desaparecia do ecrã para dar lugar à inocente página do motor de busca do Google.
O curso terminou e o Barbosa já tem o nono ano completo e recebeu o diploma das mãos do primeiro-ministro numa cerimónia pública e quem consegue tal proeza pode considerar-se licenciado em engenharia mecânica ou até desejar ser tratado por doutor, pensou.
Navega na Web como um verdadeiro profissional. A sua vida mudou completamente e para melhor, acabaram as negas em público, rejeições de mulheres e de amigos, dificuldades em conseguir relações no meio onde vive, ao contrário de até aqui, tem agora centenas de amigos e amigas espalhados por todos os cantos do país, vê as suas fotografias quase sempre em poses sugestivas maquilhadas em Photoshop disponível na Net, atingiu a idade da reforma e passa a maior parte dos dias agarrado à máquina que por sua expressa vontade só apresenta a página do site mais concorrido do mundo.
Tem o computador fixo instalado na garagem sobre a banca onde antes existia um torno mecânico manual e diversas ferramentas exigidas pela sua profissão e é de lá que emite sinais para o mundo, aldrabices fabricadas na mesa situada ao lado do Renault Clio de 1986 que ali jaz paralisado pela idade. Tem vinte e três namoradas virtuais, quase todas de idade avançada mas que como ele se apresentam com fotografias de quando eram ainda meio jovens e mais atraentes e, com pessoas assim, troca na janela do chat centenas de patranhas por dia à mistura com algumas verdades. É um homem plenamente realizado, mais um a engrossar a imensa fileira de seres que fingem a vida e que evitam a realidade onde sempre foram marginalizados, ofendidos, magoados e incompreendidos.
Apesar de ser já idoso, encarna na perfeição o protótipo do homem moderno avesso a complicações, indisposto a enfrentar o mundo real, ausente dos problemas da sociedade, solto de correntes que o possam prender a alguém ou a alguma coisa, sem compromissos duradoiros, desprovido de carácter, em suma, um robot, um homem virtual igual à rede complexa e fria onde navega, apenas um fantasma sem rosto que vive uma farsa e engana os seus parceiros, uma mentira pública autorizada por falta de regulamentação de lei mas que apesar disso tudo consegue ser quase feliz no interior de tanta infelicidade.
A janelinha do chat tem uma luz verde a piscar, alguém quer falar com o Barbosa, dizer-lhe boa tarde, comunicar para não se sentir isolado no mundo na expectativa de se considerar ouvido algures por aí, porque o que interessa é a pessoa julgar-se viva, ter a percepção de que a sua solidão não passa de um engano e de que se quiser, pode participar no debate que não tem nem precisa de moderador. Ninguém responderá de momento a essa chamada vinda da blogosfera, a mulher que chama sentir-se-á mais uma vez rejeitada, são muitos os que se enchem de certas amizades virtuais e, na fragilidade em que se encontra, pensará que até o Barbosa se fartou da sua afeição. Não sabe nem tem meios ao dispor para saber que ele se ausentou para o andar de cima da habitação onde a realidade mora deitada numa cama onde o filho vegeta há quase vinte anos. Que foi vê-lo sorrir, dar-lhe a sua mão que ele aperta com força, fazer-lhe carícias, cobri-lo de beijos e dizer-lhe pela centésima vez no dia de hoje, que o ama com todas as forças do seu coração, que nunca o abandonará e seja lá a realidade virtual o que for, mentira ou verdade, doce e divertida, amarga e dolorosa ele reservou todo o seu afecto para o filho enclausurado e cumprirá com o seu dever de pai até ao fim.
A barra continua a piscar na janela do chat no lado direito ao fundo da página do facebook, o senhor engenheiro mecânico demora a responder e, do outro lado da vida virtual alguém carente começa a sentir as mágoas do abandono.

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