segunda-feira, 3 de julho de 2006

O Ferreiro

O Ferreiro
Conto

Do cimo da colina de S. João, chega o som do martelo do ti Albano a bater na vigorna.
Alto espadaúdo de cabelo espesso e negro, enfia-se todo dentro de um fato-macaco de ganga azul com um único bolso no peito e com fecho de correr onde guarda as ferramentas.
O eco estridente do ferro macerado corta a calmaria deste amanhecer. Sentado num tronco de pinho que serve de banco na oficina, o Laínho espera pelo machado que sofre em brasa na forja, a operação do aguce. Encurvado para a frente, mexe lentamente a cabeça assente sobre os ombros onde o pescoço já desapareceu ao nascer. Usa uma boina preta a cobrir uma cabeleira farta e castanha. As conversas matinais proliferam ali. Cada cliente aproveita para contar as vidas, relatos de idas a Penafiel pagar a décima ou então das novidades apresentadas ao público, na última feira de Entre-os-Rios, enquanto espera pela preparação dos artefactos.
- Tenho lá em casa um porco valente!.. Dá para ai umas vinte arrobas!.. Chega como daqui da vigorna, até acolá ao meio do caminho!...
- És muito aldrabão Laio, onde é que se viu um bicho desse tamanho!?.
- Ò ti Albano, eu medi-o! No cerro, dá duas mãos travessas à vontade!..
- Deixa-te de tretas, tens para lá um requinto de para ai trinta quilos e estás todo inchado a fazer dele um boi!..
- Bem! Tornou o Laínho. Da vigorna até ao caminho não chegará, mas até à soleira da porta, ai que chega chega!..
- Está a minguar o filho-da-mãe, daqui a um bocado não é um porco é um coelho! Porco tem o David gordo, é do tamanho dum cavalo, nem cabe na corte, metade dorme lá dentro e a outra metade dorme cá fora. Aquilo sim, já se pode chamar um porco, ora o chisco de gente que tu tens, se lhe meter a faca no peito ela sai pelo outro lado fora!..
Está derrotado o Laínho, quis entusiasmado mostrar fartura ao Albano, transformar a miséria em que vive numa espécie de riqueza febrosa, mas o ferreiro não caiu nessa, farto de ouvir histórias de grandeza, adivinha rápido que o Laio nem porco tem.
O martelo tenta esmagar o ferro batido pelo pulso firme do Albano, a forja deita faúlhas a assar o aço do machado do Laínho e lá debaixo, da estrada, chega o som do assobio do Ricardo
É o Ricardo que vai para a oficina! Diz o Albano.
- Aquele estupor anda sempre contente! É levado-da-breca!..Mais à frente, na Sobreira o Ricardo passa cedo, de lápis Viarco atrás da orelha, assobia uma alegre melodia. Vai para a oficina do padre Manuel fazer colmeias. Lança um olhar risonho aos viajantes e o cumprimento matinal, sai sempre em forma de verso:
- Bom dia senhores mineiros, / que o pó negro cavais, / trabalhais o dia inteiro, / e muito pouco ganhais.
- Outras vezes o verso é diferente, conforme o quem passa na altura.
-Ó Senhora das Amoras, / eles têm devoção, / adocicai-lhes as horas, / debaixo daquele chão.
Não são letras sabidas, decoradas, tão pouco cantadas por mais gente, é poesia popular, espontânea, que brota a qualquer momento da alma do Ricardo. É poeta sim senhor, a cada recanto desta terra, canta em rima, as mais belas e inéditas canções
Lá vai ele com destino marcado. Os tempos são de invenção e, na oficina, vive-se afanosamente a última criação do padre Manuel; A colmeia Nacional.
O sacerdote tornou-se num apaixonado pela apicultura, as coisas do clero interessam-lhe mas pouco. As almas do seu rebanho salva-as ele em cinco minutos por dia, isto na leitura do breviário, ou melhor, livro técnico das artes apícolas, em volta do adro da capela, que o grande momento da salvação pode ser em qualquer lado. Na oficina, atrás das tábuas de pinho a secar ao alto, esfregando as mãos resinhentas com diluente, ouve os lamentos dos fiéis em confissão informal e, no fim, lá sai o generoso perdão por quem todos anseiam.
- Vai com Deus e não voltes a pecar Manel. Ou então no caminho, antes da hora das trindades no regresso da oficina, pode sair a benção confortante. Tem sempre um sorriso desinteressado para qualquer um e, as palavras apropriadas saem-lhe da boca decoradas mas com sabor a novidade:
- Deus te perdoe, Jaquim...Deus te ajude João...Temos de ter paciência...Faça-se a vontade de Deus. Resume a doutrina a estas simples frases de consolo que soam a mel a quem as ouve.
O Pastor sabe de todas as manhas do seu rebanho. De pouco vale tentar enganá-lo na esperança de uma absolvição personalizada, como quem pede perdão por crimes que não cometeu, na esperança de ficar bem visto aos olhos de Deus e do padre. Ele, conhece-os a todos e a todas, arquiva os acontecimentos numa folha de sorrisos e num abanar de cabeça absolvente. Até mesmo quando as coisas para ele em tempos deram para o torto, quando a residência teve, à pressa, de alterar os hábitos pelos quais se regia há muito, manteve a soberana personalidade que o distingue de todos os outros, escrevendo ao bispo do Porto a seguinte frase em resposta a uma interpelação deste:
- Sou padre, mas também sou homem!
O assunto encerrou ali e, a vida continuou como se nada tivesse acontecido.
O sacerdote é mais industrial, pende para a arte, como um girassol pende para o sol nascente, quem o quiser apanhar, é na oficina a serrar madeira ou a fazer planos.
Ricardo chega ao portão da fabriqueta onde já está a Aurora de Sebolido com o carro de mão estacionado, à espera da encomenda para levar à estação de correios a Entre-os-Rios. Trata-se de cera moldada já adaptada aos quadros, que empacotada e selada, seguirá para os Açores de navio.
-Ó ti Aurora! Aconteceu-me uma coisa esta noite que nem lhe conto!..
- Conta lá Ricardo...foi assim tão ruim!?.
- Não, até foi bom, mas dá-me cá uma volta à barriga!..
- Conta lá moço, conta lá!
- Olhe! Ontem á noite deitei-me na cama com a minha mulher e de madrugada acordei com uma rapariga nova ao meu lado!
- Pode lá ser! Como é que tu destes fé de que era uma rapariga nova se tu nem luz tens!?.
- Apalpei, ti Aurora!.. Era maciínha!..
A Aurora faz um gesto de enfado e continua a carregar o carro com cera, o Ricardo sorria brincalhão.
O padre já chegou, é um sujeito de setenta anos de estatura média e cara oval. Usa óculos de aros finos e lentes transparentes e graduadas. A boca é pequena e o nariz sobressai naquele rosto alvíssimo. Cobre o corpo desde o pescoço até aos pés com uma batina bastante coçada.
No improvisado escritório da medrante indústria, procede à facturação. Pressentindo a chegada do ajudante, sai à porta a lamber a cola de um envelope. Após aligeirado cumprimento, os dois vão carregando os embrulhos, sempre a olhar para baixo à espera do Pinto que chega mais tarde, após selar o serviço na padaria.
Carregada a viatura, seguiu viagem estrada fora empurrada pela Aurora. O Padre e o Ricardo ficam a contemplar o último grito da engenharia nacional. Diz o padre para o Ricardo:
- Não tem comparação com a layens, esta é mais funcional, fácil de manejar por qualquer um e muito mais leve e depois muito mais barata. Em relação à langstroth, há muitas vantagens, que não houvesse, bastava a diferença de peso para qualquer apicultor preferir esta, nestas conjecturas vão deixando passar as horas presos ao sonho que acabou por vingar.
Nas terras em redor e aqui também, coexiste, de par a par com a desgraça dos mineiros, dos barqueiros e dos pescadores, uma burguesia assaloiada, senhores de teres e haveres mas de cultura limitada às artes de gozar a vida, salvo raras excepções.
Uns são administradores de propriedades herdadas, outros são filhos destes. Alguns dedicam o tempo a actividades de lazer e devassidão. No ócio dos dias, usam as noites de lua cheia para darem liberdade aos instintos mais aberrantes e até satânicos, adquiridos ao longo de anos a malandrar pelo Porto.
Frequentam as igrejas e capelas da redondeza. Nas missas, nos casamentos, nos baptizados, nas novenas e nas comunhões gerais, lá estão eles ao cimo bem perto do padre e de Deus. Dão nas vistas, mas pouco se esforçam para imitar as virtudes, a caridade, a modéstia e o amor das coisas celestes. Porem esquecem-se que pode ser fácil convencer o padre e muitos fiéis, mas a Deus não. A divina criatura é demasiado grande para atender a estas fragilidades mundanas. O julgamento será feito quando menos se espera e nessa hora decisiva, aos filhos de Deus e aos filhos da mãe, resta apenas apelar à sua infinita misericórdia.
O dia começa a empardecer. Lá ao fundo em frente a Fornelo, dois barcos Rabelos lutam desesperadamente com a corrente no galheiro. A nortada ajuda enfolando as velas de pano-cru que parecem ir rasgar a todo o momento. Adivinha-se uma noite tranquila neste bocado de terra à beira do Douro.

1 comentário:

Piko disse...

COMENTÁRIO AO REALISMO, À HUMILDADE E À PERSONALIDADE DAS GENTES DE RIO-MAU!

Esta narrativa faz-me recuar no tempo até aos distantes anos de 1948, 1949 e 1950! Vivia-se um reboliço enorme com o rasgar da Estrada Marginal através do pequeno lugar de RIO-MAU, e, apesar dos meus cinco e seis anos, recordo que na época era grande o número de trabalhadores, porque pràticamente não havia máquinas e era ver os carros de bois, as pás e as picaretas, os guilhos e marretas, e, sobretudo, o dinamite que fazia o rebentamento de todo o fraguedo que aparecesse no traçado algo sinuoso, que, ainda hoje, dá para ver e sentir! Ainda tenho bem presente na memória de ouvir as pessoas pronunciarem o nome de MANEL do BOI, e, que era, nem mais nem menos, um dos muitos trabalhadores recrutados para esta empreitada, e, que seria oriundo, das bandas próximas de Entre-os -Rios ou mesmo Penafiel! A razão da alcunha, adivinha-se, prendia-se com o facto de conduzir um boi à frente de um carro de madeira,com duas rodas, claro, utilizado pràticamente para os mais diversos serviços e haveria outros a fazerem igual serviço...só que já perdi essas lembranças!

Só para contextualizar, aproveito para dizer que acabada a empreitada da Marginal, o MANEL do BOI, referido na história, ficaria por Rio-Mau, onde viria a casar e tornar-se mineiro em GERMUNDE! Quer-me parecer, mas não posso garantir, que a sorte não o acompanhou como merecia, pois viria a falecer estupidamente no interior da Mina, com mais um ou dois companheiros de profissão!...

Gostaria ainda de dizer algo acerca de dois personagens, que entram nesta bela história e que tive a felicidade de conhecer: O Padre MANUEL e essa figura muito popular em Rio-Mau e que era o RICARDO, entretanto já falecido.
São duas GRANDES REFERÊNCIAS do passado ainda recente de Rio-Mau!

OBRIGADO ao autor por mais esta bela história e pelo realismo que encerra!
UM ABRAÇO DO TAMANHO DA SERRA DA BONECA!