sexta-feira, 1 de setembro de 2006

O SACERDOTE


O Sacerdote
Conto


Foi penoso vê-lo naquela manhã de domingo agarrado à santa Pedra de Ara velho, carcomido pelos anos cambaleando doente, no exercer da última missão que o juramento que fez na juventude o obrigava a cumprir. Como se fora um círio a que faltasse o alimento combustível, apagava-se ali, na casa de Deus, lenta e inexoravelmente.
Empalidecido como um chão de Outono, erguia-se ainda das cinzas ilustre e, o seu olhar cansado e bondoso, desceu e pousou como uma bênção sobre aquelas almas numa última prenda generosa e santa. Ali, naquele lugar solitário onde tantas vezes desanimado invocou as palavras de Cristo: -Pai, se puderes, afasta de mim este cálice - onde a fé se expandia em cada oração em cada dia dos imensos anos do seu sacerdócio, acontecia o mais terno, sublime e heróico acto da vida de um homem.
Ele que percorria os lugares da freguesia levando o consolo aos agonizantes, deixava entregue à ferrugem os restos da mota que o transportava, moribunda como ele, era tão-somente um monte de sucata a apodrecer debaixo do beiral da residência paroquial onde as andorinhas fazem ninho. Nunca a sua voz se levantou dali, de cima do altar para pedir o legítimo alimento do corpo, uma batina nova, uma corrente para a motorizada ou o concerto da residência que caía de podre. Apenas sorrisos e sabedoria pairavam no templo da sua fé no espaço que delimita a verdade da ignorância das coisas sagradas.
O povo devoto que ocupava quase todo o anfiteatro do moderno templo onde ele tinha gasto os restos da vida a falar das coisas sagradas, pressentia o crepúsculo da ave de Deus.
Ajoelhou-se dolorosamente agarrado à pedra do altar e ficou minutos prostrado ali como navio a lutar com medonha tempestade, recusando soçobrar ao ímpeto da tragédia que o tentava abater. Ergueu-se a custo ajudado pelo sacristão e começou a santa missa o recordar da Paixão de Cristo que neste instante não podia estar melhor representado. Ergue o Cálice consagrando o vinho como se fora ele o próprio Senhor que aqui viesse nesta hora dramática, prestar-lhe a derradeira homenagem o último agradecimento pela dádiva de uma vida inteira.
Olho respeitosamente e comovido o homem que me guardou no coração sem nunca me ter perguntado quem eu era; que espicaçava a minha curiosidade filosófica como um pai que explica a uma criança a razão do fascínio das estrelas. Olho-o ainda no sair da igreja matriz como uma noite negra que descesse repentinamente sobre a terra e deixasse só escuridão nos corações. Enquanto a banda de Melres tocava o Requiem aeternam de Mozart, o mundo acabava de perder um padre e a igreja de Pedro tinha ganho um santo. Olho-o prostrado no caixão sereno, de mãos em cruz sobre o peito como quem dorme em paz, como quem sonha o seu último sonho:
- Luís…luís, acorda meu filho, anda ver o teu pai!







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