quinta-feira, 14 de setembro de 2006

O GUARDA-SOLEIRO

Parece impossível mas mal amainam os calores de Agosto, acabam as romarias, deixa de se ouvir o estalar dos foguetes nas redondezas e Setembro entra pela terra dentro melancólico, carregado de nuvens a ameaçar chuva, e logo se ouve aquela gaita de timbres desconformes por todo o lugar.
O som monótono e discordante do aparelho musical, quebra o silêncio da povoação que vai procedendo às colheitas do vinho, das abóboras e demais produtos que a terra generosa deu e, como autoritário aviso de regedoria, informa o povo que o consertador de guarda-chuvas acabou de chegar aqui vindo não se sabe de onde mas incrivelmente pontual como tem sido ao longo de muitos e incomputáveis anos.
A carroça laboratório ambulante suspensa em duas rodas de antiga bicicleta de pedais, é bizarro instrumento multifacetado que adquire forma diferente quando o artífice resolve entrar em acção. Os rodados onde se movimenta toda a incomum oficina, mudam repentinamente de função e posição, transformando-se em rodas livres onde assenta uma correia de transmissão de tela que por sua vez faz girar um esmeril apto a aguçar tesouras, facas, foucinhas e outros artefactos domésticos e agrícolas, obedecendo ao ritmo das firmes pedaladas do Lourenço.
Pendurados por todo o mecanismo ambulante, vêm-se restos de protectores de chuva já irremediavelmente perdidos para o acto mas que vão fornecendo material num concerto ou noutro que requeira maior intervenção de peças usadas.
É baixo atarracado de pescoço grosso e manca de uma perna. A cobrir a carne do corpo, veste um fato-macaco de ganga azul com fecho de correr até ao umbigo e nos pés calça umas botas da tropa, sem atacadores e demasiado usadas para conseguirem oferecerem alguma protecção e aconchego a esta figura castiça. Na cabeça redonda usa um chapéu de oleado de abas caídas que não deixa distinguir-lhe perfeitamente a brutalidade das feições mas adivinha-se pelo pedaço visível, que são negras e curtidas pelo sol e pela chuva e seguram uma barba onde navalha de barbeiro nunca deve ter entrado. Aparenta não ser ainda velho mas tanto pode ter cinquenta como duzentos anos ou até ter a idade do mundo pois desde sempre, de geração em geração, se ouviu falar aqui do Lourenço guarda-soleiro.
O povo junta-se em volta do invulgar estabelecimento ambulante que estacou ali ao pé da igreja, alguns trazem nas mãos, armações de varetas móveis que os últimos temporais deixaram danificados misturados com tesouras e facas que o serralheiro reciclará a troco de dez mil reis.
A tarde avança por entre o gemer do aço a sofrer no esmeril e do alicate de pontas que dobra os arames que sustêm as varas do arcaboiço onde vai assentar o pano de luto protector de chuva. De vez em quando, e já com uma faca aguçada, experimenta o corte nuns tronchos de couve:
- Olha que maravilha, até corta papel!
Nem tudo corre de feição ao fazedor de maravilhas, as contas, as malditas contas acabam sempre por ter acerto apesar do tempo ter passado e apagado das memórias algumas realidades vividas:
- O ano passado deixou-me este traste numa miséria, nem dois dias durou, grande concerto senhor Lourenço, mais valia ir-me ao bolso e tirar-me o dinheiro! Era a Lucrécia a reclamar dos maus ofícios do homem artista.
- Ò mulherzinha, quem aqui andou o ano passado foi o meu avô, eu nem pôs aqui os pés, andei por Cabeçais e Canedo minha santa!
- Ai foi, e há dois anos!? Foi por acaso o seu pai que me amolou as tesouras da poda que a partir dai só serviram para cortar sabão rosa e marmelada!? Acha que isto é coisa que se faça a uma velha como eu!? O que você precisava era que lhe partisse os restos no lombo, a si, ao seu avô e se calhar também ao seu pai!..
- Ó mulherzinha remedeia-se já aqui o mal, diz o guarda-soleiro pegando num guarda-chuva dos tais pendurados na oficina; fica com este…é dos bons tem varas reforçadas e tudo, até lhe digo mais, era do falecido padre de Souzelo e nunca teve uma avaria.
- Dum morto!? Vossemecê anda tolo homem, esse dê-o à sua mulher se a tiver, aqui a Lucrécia nunca quis nada usado…nem guarda – chuva, nem homem!
O Lourenço calou-se, pegou na gaita que passou nos lábios cor de vinho tinto e aquele som desconsolado tomou conta de tudo.

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