terça-feira, 12 de setembro de 2006

O PASSARINHO


O Passarinho era uma criança dos seus quatro anos, órfão de pai que tinha sido mineiro e morrera na mina quando ele tinha apenas dois meses.


Era conhecido por esta alcunha em toda a aldeia, dava por este nome, pelo próprio que era Francisco nem pensar, corrigia de imediato qualquer engano.
- Não sou Chico, sou Passarinho.
Um cabelo espetado na cabeça emprestava-lhe um ar de ougado e, uma camisa a cobrir-lhe só parte do corpito apertada apenas com o botão cimeiro, que os outros quatro que compunham a peça, já tinha perdido a jogar a pincha, com uns calções de fiôco todos remendados, herdados de umas calças dos irmãos mais velhos, presos com uma alça a tiracolo e a outra a pender pelo rabito abaixo, descalço, com os dedos grandes dos pés esfolados pelas pedras dos caminhos, era a imagem perfeita de um pedinte desleixado.
A alvura da manhã surpreendeu-o já a caminho do Corgo de Cima lugar afastado da povoação na margem do douro. À frente a cabra, atrás dela ia ele a correr tentando apanhar o barbante que se desprendera das pequeninas mãos.
Este era trabalho do Passarinho; guardar enquanto pastava, a cabra que fornecia o leite para ele e para os dois irmãos.
Ia para o Corgo, ali havia pastagem com fartura, a cabra rapava as ervas na margem do rio, viçosas e verdejantes que apareciam em touças aqui e ali e eram a nutrição e o consolo do animal.O Passarinho passava os dias por esse descampado sozinho, manhãs e tardes a curtir os seus inocentes pensamentos envolvido numa alegria pura e calma.
O seu sonho maior era arranjar a chave do cemitério, que a mãe sempre lhe disse que o pai estava lá preso pela morte. Penetrar no mistério do lugar sagrado e resgatar aquele que nem sequer conhecera, mas sabia lhe ter dado a vida, fazia-o transportar no peito dia após dia, manifesta esperança de o reaver.
O tempo passava lento pelas bordas do Douro.
A tranquilidade das águas mansas agora, despertava no Passarinho uma paixão avassaladora. Fala com o rio, contava-lhe as histórias que ouve no lugarejo com devoção e credulidade ciente de que eram verdadeiras. O rio escutava em silêncio e, só alterava a espelhada atitude, à passagem das patelas coçadas da areia que o pequeno lançava devagarinho.
Pelo meio-dia, abria o saquito de ganga que fora do pai e retirava o pão, as azeitonas e a cebola salgada que constituíam o seu almoço. Comia vagarosamente, saboreava a parca alimentação como se de lauto manjar se tratasse e, viesse quem viesse, seria difícil convencê-lo de que aquilo era comida de pobre.
 O Migalhas, rapaz aparentando uns sete anos, andrajoso e sujo, filho do Manel da Touça, aparecia sempre por lá a essa hora. Os olhos estalavam-se-lhe ao ver a comida e, o Passarinho estendia a mão oferecendo comida ao companheiro:
- Come Migalhas!
- Já comi o caldo, estou cheio!
Mentira! A boca não era capaz de negar sem sombra de dúvida aquilo que o estômago sentia e transparecia nos seus olhos. O guardador da cabra, sabia bem que o amigo ainda era mais miserável do que ele:-
 -Toma, Come daqui!
Eram segundos em que a pequena refeição passa a garganta do Migalhas. As azeitonas saiam da saca de repente e às mãos -cheias, algumas caiam  no chão de terra e  num ápice, depois de limpas e esfregadas nas calças sujas, passam ao estreito canal da garganta.
O Passarinho não se importava, eram amigos e, de mais a mais, um dia houvera em que inadvertidamente caíra no rio cheio e doirado e, foi o Migalhas quem o salvou de uma morte certa.
- Tu sabes o que é a morte migalhas?
A pergunta explode como bomba na calmaria da tarde. A resposta demora a chegar. O Migalhas olha o céu como se procurasse ali o termo certo para poder explicar ao amigo. Passam minutos e, como que se o cérebro se lhe iluminasse de repente, disse:
 -A morte é a ti Júlia do Vale dos Lobos!
- Porquê? Perguntou o Passarinho!-
 Porque é negra e feia!Errado, mas sem dúvida a figura que melhor poderia descrever e representar a morte.
É negra a Júlia mas só de aspecto. A longa viuvez transformara-a numa espécie de bruxa. As roupas pretas que cobriam a quase totalidade do seu corpo onde só reluziam uns olhitos na cara enrugada, faziam dela uma figura sinistra que só calcava as pedras do caminho da aldeia depois de o sol se ter posto. Era uma coruja, diziam muitos!
O Passarinho aceita como certa a resposta do amigo, demais a mais, a ti Júlia vivia mesmo encostada ao cemitério, na casa da colina.
Do Corgo olhava o alto de S. João a magicar a forma de pedir a chave do cemitério e, sorrateiramente, entrar nesse espaço de silêncio salvando o pai das garras daquela traidora. Naquele coraçãozito inocente, instalara-se há muito um terrível dilema, é que sempre que deixava a cabra fugir, ela ia direitinha à venda do Viana e, num ápice, abarbata-se ao milho reluzente do saco. Nestas alturas a mãe repreendia-o severamente, não eram as pancadas no corpo quem o faziam sofrer mais, eram as palavras da pobre desgraçada em desespero, que enchiam de terror e medo aquela alma infantil.
- Se o teu pai fosse vivo, dava-te uma sova que te ponha de cama um mês! 
- Rais parta o moço que não aprende de maneira nenhuma! Falta cá o teu pai para te meter na linha!.
Eis a razão do cruel conflito,  queria muito libertar o pai mas, o medo às pancadas que poderia levar no corpo, tolhiam-lhe o gesto. Naquele dia as saudades do progenitor eram mais vivas, queimavam-lhe o peito depositando nele uma angústia infinita.
Pelas seis da tarde, desamarrou a Farrusca do arganaço em que a prendera, ferrado na ideia que acalentava, arrepiou caminho até ao S. João. Por baixo da capela olhou o adro cauteloso, viu a figura do prior, homem alto de cabelos brancos envergando uma batina preta que lhe cobria o corpo até aos pés, lia o breviário em volta da capela.
Esperou que o padre dobrasse a esquina e, numa corrida foi a casa do Carrucho o guarda do cemitério e pediu-lhe as chaves, disse que eram para a mãe que vinha já  enfeitar a campa do pai. O guarda lá lhas entregou.
Éra um molho delas, pesadas e grandes. Traziam juntas as da  capela  presas na argola. Vigiou-se do padre e, quando este mais uma vez dobra a esquina, foie a correr até à porta do cemitério. No entanto era difícil chegar ao buraco da fechadura. Pôs-se em bicos de pés mas nem assim conseguiu. Entretido na tarefa, não deu pela chegada do padre que curioso, ao ver a cabra amarrada em baixo, se pôs atento ao que de estranho se pasava.
- Então Passarinho, que fazes aqui a esta hora?
Nem chus, nem mus. De olhos arregalados, escondeu atrás das costas o molho das chaves.-
 Perdestes alguma coisa rapaz?
Nada, nem um ai sequer. Era a figura chapada de um passarinho medroso e indefeso. Acertou quem o baptizou; nada fazia lembrar melhor uma avezinha, como este corpito inocente e desarmado, à espera do pavoroso castigo.
- O que é que tens ai nas mãos, ora deixa lá ver!?
Era o padre, que de batina até aos pés, negra e coçada, a fazer lembra nesse momento o abutre prestes a atirar-se sobre a presa, quem o interrogava. Era um homem bom, reagia apenas ao sabor da curiosidade que lhe despertou a presença do catraio, naquele local e a àquela  hora tardia.-
 -Olha são uma chaves, são as chaves do cemitério e da capela!
 -Para que queres tu isto, pequeno?
O passarinho respirou fundo, foi mais um suspiro do que outra coisa. Da candura daqueles olhitos negros, soltam-se em desespero ribeiros de lágrimas; os ombros sacudiam-se na tremura dos soluços, levantou a cabecita e, com firmeza, respondeu:-
 São as chaves da morte senhor abade, ela tem o meu paizinho ali dentro preso, eu vim buscá-lo, quero levá-lo para minha casa, a minha mãe chora de noite por ele, eu tenho muita pena dela. Não me bata senhor abade, eu só levo o meu pai e não estrago nada!
A tarde findava-se, um doce crepúsculo cobre a aldeia, o céu estrela-se num instante, o rio douro ao fundo era um lago verde matizado pela luz crepuscular e espraiava-se esplendoroso pelo alcance da vista.
O velho sacerdote tirou os óculos e, com o lenço limpava as grossas lentes e os olhos que se lhe tinham humedecido de repente. Pegou o pequeno ao colo e, com as costas da mão enxugava-lhe as lágrimas e acariciava-lhe os cabelos negros. Com o dedo indicador apontou uma estrela e foi-lhe dizendo baixinho ao ouvido::-
 Não chores mais meu querido filho. O teu pai está acolá em cima naquela estrela. Não o procures ali no cemitério, procura-o no céu que é onde ele está agora. Tu ainda não compreendes meu pequenino, mas um dia, hás-de saber que é assim. O corpo do teu pai está ali dentro, mas a alma, a alma boa do teu pai, essa está no reluzir daquela estrela no firmamento celeste, muito pertinho de Deus. Não o podes levar para casa Passarinho, agora a casa dele é a casa do Senhor. Olha, neste momento o teu paizinho está a ver-te e está muito feliz, meu querido filho.-
 Mas eu não o vejo senhor abade, disse criança elevando os olhitos ao céu indagadores.
- Verás um dia, quando fores mais crescido. Continua a olhar o céu todos os dias que um virá em que tu, como eu, conseguirás ver para além das últimas estrelas. Então Passarinho, nesse dia encontrará o teu querido pai.-
 Ainda falta muito senhor abade?
- Não meu filho, apenas o tempo de te fazeres homem, pouco, muito pouco. Um dia acordarás lá em cima junto do teu pai. Olha que é breve Passarinho, quem tu diz, está a um passo desse dia!
- O senhor abade também vai ter com o meu pai?Perguntou a avezita contentada.
 -Vou filho, vou ter com o teu e com o meu que não vejo há muitos anos!
- O seu pai também é preso da morte?
- A morte não existe passarinho, apenas o corpo se transforma em pó, volta a ser o que foi, terra, matéria, mas a alma que tens aí dentro do peito, volta para o lugar de onde veio, lá para cima para a beira do Criador, do nosso Pai celeste!
- Mas então temos dois pais senhor abade?
 T-emos, temos dois pais. Nós e todos os meninos e meninas e todos os homens e mulheres deste mundo.
- Até o Melrinho que rouba laranjas ao senhor Viana e parte os gamões das videiras do senhor Geraldo?Pergunta ele admirado.
 -Sim, até o Melrinho, até esse apesar de ser tão traquina e tão rebelde, também é filho de Deus.
- E o nosso Pai do Céu bate-nos quando deixamos fugir a cabra?
- Não Passarinho, não bate, é muito nosso amigo, fica triste quando fazemos asneiras mas não é capaz de levantar a mão para ninguém. Ama-nos como o teu paizinho te amava!
- Mas a minha  mãe diz que o meu pai me batia!
- Não, a tua mãe diz isso em desespero, ela também sabe que se o teu pai fosse vivo, nem sequer andavas perdido sozinho pelas beiras do rio a guardar a tua cabra. Havias de brincar com os teus amigos a jogar o pião e à bola sempre pertinho de casa!
O miúdo feliz aconchegou-se um pouco mais à batina do sacerdote enquanto a tarde agonizava e já fumegavam as lareiras das casas do lugar. A reza abreviada, a doutrina simples do velho sacerdote, de cujo teor, poucos discursos ou sermões terão mais agradado efeito aos olhos do mundo e de Deus. Na verdade Ele está sempre em todas as coisas das nossas vidas mesmo nas mais simples. Quantos de nós o procura-mos nas quase sempre provocadas complexidades da vida lugares sinistros onde de certeza Ele não está. Evocamos o Seu Santo nome em vão na busca de mais privilégios, no firme propósito da ganância, usando-o para branquear o lado mais miserável das  nossas vidas por via disso tornadas inúteis. Cegos pela luz do poder mundano ou pelo desejo de notoriedade, até o esquecemos, ou ainda iludidos no sentido inglório da existência, não queremos ver que na realidade o Deus verdadeiro existe vivo em cada um dos nossos semelhantes, pobre e necessitado de tudo, até de um só abraço às vezes, mas nem por isso diferentes do Deus Todo-Poderoso, do Criador de todas as coisas visíveis e não visíveis, o ser infinitamente perfeito e misericordioso.
Um suspiro de alívio parou aquele vale de lágrimas. Nos olhitos ainda liquefeitos, brilhou a luz de uma nova esperança. Afinal temos dois pais, foi o abade quem o disse e mais que ninguém é pessoa em quem se pode confiar. Dois pais e qual deles o melhor. Um a viver numa estrela, tão perto dos seus olhos, outro no céu, que mesmo que se deixe fugir a cabra, não é capaz de bater! Ainda hoje havia de dizer à sua cabra e amanhã ao rio, ao seu grande amigo e confidente.Tudo se alterou de repente, aquilo que era uma angústia, uma noite escura no seu coração pequenino, abria-se agora num paraíso multicor. Tão pouco basta para contentar um pobre inocente.
Com o pequeno ao colo e a cabra presa pela guita na mão direita, o abade subia lentamente a rua dos Estercos.

Do Livro, "Contos do Douro" de Manuel Araújo da Cunha

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