quarta-feira, 22 de novembro de 2006

Simão

SIMÃO

Cancelos é um lugarejo da freguesia de Sebolido todo debruçado sobre o rio de onde tira o miserável rendimento da sobrevivência do seu povo. Não há calçadas nesta terra; as servidões do lugar são carreiros abertos ao acaso nas fragas escarpados da margem do Douro. Pedregosos e inclinados, quase inacessíveis, obrigam estas gentes a sacrifícios enormes para chegarem ao Outeiro das Cortes. Ninguém se safa em Cancelos, no meio desta centena e meia de habitantes não há um com dinheiro suficiente que possa por um cego a cantar. São todos mais pobres que Jó; geme-se com fome todos os dias dentro destas desconfortáveis casas de xisto. As lousas das coberturas das casas já não conseguem tapar o vento frio e encobrir semelhante miséria. Pelas frestas onde passa o vento, saem lamentos e choros de crianças com fome ou então berros medonhos de esposas aflitas tentando escapar às pancadas brutais dos maridos de cérebros obscurecidos pelo vinho e pela desgraçada vida. Estas casas rústicas conservam entre paredes, tantas e tantas histórias tenebrosas quase inimagináveis mas cruelmente reais. Tantos gritos suspensos dentro destas paredes que ainda não eclodiram no espaço, alguns permanecerão calados para sempre sem notícia, sem conhecimento como ferida que nunca vai cicatrizar.
- Se não fosse o rio! Sim, se não fosse esta corrente líquida que obstinadamente teima em passar por aqui, há muito se teria desertificado este sítio. Em casa do Simão o primeiro fio de fumo sobe da lareira e ergue-se no orvalho do ar perfumado de rosmaninho, tímido e medroso. Depois alarga-se no céu e disseminar-se à distância como se a fugir da desgraça. Da horta vem um cheiro a estrume fumegante que retirado das cortes, aguarda amontoado a hora de lastrar os regos das batatas e dos feijões. Daqui vê-se Midões e Gondarém povoados esquecidos e solitários na outra banda do rio. As casas dalém já todas fumegam por que o povo tem de sai cedo para tratar da vida. Uns já marcharam para a mina, o mais deles vão para a Vista Alegre dar o dia ao Virgílio ou ao Manel no corte das madeiras de pinho que hão de suster as galerias de Germunde, do Fojo ou do Ervedal. Sobem a encosta uns a trás dos outros levando enfiados nos ombros os machados e os serrotes arcados afiados de véspera. Sobem ainda com a escuridão da noite e perdem o horizonte ao entrar no vale das Fontaínhas onde o Anastácio já levantado, carrega o barco com sacos de carvão vegetal para levar até ao Porto:
- Então ao trabalho? Cumprimenta o Anastácio. E logo o Sobradelo lhe responde em jeito de informação.
- Andamos lá em cima em Fontão na sorte do Américo Labaredas!
- Tem lá bons paus! Retorque o Anastácio morto por saber.
- É tudo de reserva, cada pinheiro quinhentos quilos, vão pró Torrão, para a serração! Aposto que vão dar boas tábuas! Era o que queria ouvir, virou as costas e continuou a carregar o barco. Nestas coisas dos negócios de madeiras, o seguro aconselha prudência e quanto menos conversa melhor.
O Simão madrugador sobe Junçadelo até ao Outeiro das cortes. Chinelo enfiados nos pés, o corpo de quarenta quilos a segurar-se todo numa vara de marmeleiro descaído para a frente, uma boina preta a cobrir-lhe a nuca e, a cara enegrecida que sustenta ao centro um nariz pencudo onde por baixo espetado aparece um bigode de aço preto, definem a silhueta esquisita do Simão. Leva nas mãos embrulhada em papel de jornal a sua imensa dor; as roupas da Ana que agoniza no Porto tolhida pela icterícia. Já foi talhada em Branzelo, mas alastrou na mesma. Está no Santo. António à espera da morte mas nem ali pode estar, vem desenganada morrer a casa por mando do médico impotente perante a terrível doença. Traz nos olhos amarelados a certidão de óbito antecipada, assinada e pronta, só falta a data. Precisa de transfusão de sangue mas o do tipo dela é invulgar e caro demais para a falida bolsa do Simão. Sangue venoso, Ibérico, Celta, Celtibérico, Vândalo, Suevo, Alano, Muçulmano ou Moiro. Pedrês, como pedreses são os galos do Caga-na-Marca. Lusitano, bravo sedento de distâncias, suave como as planícies Alentejanas, agreste como as serranias de Trás-os-Montes. Lusitano por definição como definido é o que corre nas veias das cavalgaduras de Alter do Chão. Raro, difícil de arranjar. Chora Simão no meu peito pedaço de pedra igual às do muro de Jerusalém onde Cristo chorou na derradeira hora. Abafa-te no exíguo calor que dele emana, brando e escasso, minguo para aquecer as minhas próprias mágoas. Partilho-o contigo companheiro, afago os teus cabelos com estas peregrinas mãos que não sabem curar a doença da Ana mas compreendem e sofrem pela dor que tens no peito. Anda comigo, vamos subir a serra da Boneca até ao marco geodésico que de geográfico tem pouco, é mais garrafa, feito de barro e pedras, mas marco também porque marca as coordenadas da terra. De um lado para o norte, as de Valpedre e Penafiel fartas e ricas. Do outro lado do sul, maninho, baldio ou terras de ninguém. Lá do alto na linha do horizonte avistaremos o casario enevoado do Porto e verás o Douro sinuoso que vem de Espanha da serra do Urbião onde nasce esmagado pelas fragas mas que em Melres se alarga a rabiscar por entre as serras. Ali chorarás então e as tuas lágrimas hão-de figurar-se os Penedos da Sombra a rolar pela serra abaixo abrindo-lhe fendas profundas até se afogarem no rio. Chora que o teu pranto serão pétalas de rosa a quem a nortada levará através do espaço e do tempo que te falta viver. Espalhadas à solta no vento, permanecerão intactas na memória a fazer-te lembrar todos os dias as cenas do passado, regos marcados na tua vida que ninguém jamais conseguirá apagar. Chora por tanto sacrifício tantas lágrimas vertidas nas vossas miseráveis vidas comuns terem acabado assim aos quarenta anos sem nunca terem florido. Chora Simão e deixa-me partilhar contigo a revolta a que esta sítio nos obriga. Roubam-nos tudo até a própria vida. Chora tudo companheiro que a Ana de sangue podre e canceroso se finou já.

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