terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

Arraial de Santa Eufémia


O Pestana, o Maneta e o Rã, chegam finalmente a Fornêlo. Daqui à mina são quinze minutos a pé para as centenas que vão a enfiar-se na linha da máquina a vapor, caminhando uns de cada lado dos carris:
- Então Maneta, os bifes eram tenros?
Foi o Rã quem arremessou a pergunta, como quem não quer a coisa. Ele sabe da história e quer meter veneno.
O Rã é loiro, meio arruivado de beiços grossos a pender para Albino, irrequieto, e sacana.
Já fora o ano passado. O Maneta, antes do dia da festa, mandara um recado ao Quintela de Paiva pelo Faísca, a marcar mesa para quatro. Que cortasse quatro valentes bifes. Aí para meio quilo cada um. Tenrinhos. Lá para as duas da tarde, que a mulher ia dar trinta voltas de joelhos á capela, cumprir uma promessa e aquilo botava para tarde. O Pestana soubera da coisa e antecipou-se. Pegou na mulher dois cunhados e apareceu antes. Ao meio-dia, na barraca situada no meio do arraial da Santa Eufémia comiam já os bifes. Os quatro lamberam tudo.
Acabada a promessa o Maneta mais a mulher e os dois filhos, chegaram-se à barraca e não havia bifes. As mesas estavam todas ocupadas por forasteiros. Falou ao Quintela, mas este na confusão daquela hora não tinha feito reparo. Aí o Maneta ficou a saber que tinha sido enganado.
Encostado ao coreto, o Pestana olhava-o de soslaio e ria-se a bom rir.
-Á patife! Gritou o Maneta.
- Vais vomitá-los inteiros, filho-de- uma-puta! Até os dentes te vão sair da boca! De rompante avançou para ele disposto a quebrar-lhe o focinho. O movimento era muito no recinto da festa e, na hora de tratar da barriga, as pessoas querem tudo, menos desordem. Com as mesas repletas de tachos com tripas, feijão, bifes e canecas de porcelana cheias de vinho tinto de Bairros, não podia ser. O que se quer nestas alturas é comer descansado longe dos encontrões que causam sempre desconforto.
Desapartaram-nos a tempo mas o rancor havia de ficar a moer-lhes a alma, até há hora de ajustar as contas.
É bonita a festa da Santa Eufémia! No meio da serra, entre Serradelo e Cruz da Carreira a meia dúzia de passos de Castelo de Paiva, antes dois dias da festividade já se ornamenta o descampado para receber os milhares de forasteiros a maioria gente de bem comer e beber.
À entrada do arraial, os improvisados talhos, vão desmanchando bois e vitelas e os pedaços seguem na direcção das barracas cobertas de lona branca, espalham-se pelos campos abaixo. Entre umas e outras, tendas de bonecada que fazem as delícias da pequenada, vendem apitos e carrinhos de lata, miniaturas de carros puxados a bois, em madeira, acentuando aquele ambiente rural. Outras mais pequenas e mais simples, protegidas por um panal branco seguro por toros de pau em cruz, recolhem uma mesa, coberta por uma larga e comprida toalha de linho onde repousam os deliciosos bolos de Serradelo, redondos, achatados enfeitados por um raiado de açúcar branco que fazem companhia às cavacas doces.
Em baixo, num amplo largo que um centenário castanheiro ensombra, monta-se o colorido coreto, enfeitado por girândolas de papéis multicores e balões. Ao lado, a capelinha da santa, construída em xisto, forrada a saibro e pintada de caliça branca, deixa sobressair um rodapé azul-escuro e uns cunhais de granito.
Ao centro da cripta, uma cruz também ela em granito onde o musgo se agarra há dezenas de anos, distingue-a das demais e lembra ao povo ser aquele um local sagrado. Mas o sagrado alia-se por conveniência ao pagão por dois dias. Transborda as barreiras do aconselhável e, a feira de gado que se realiza na véspera, proporciona as bulhas, os negócios, os arraiais de pancadaria misturados com severas penitencias e fervorosas preces das mulheres mais crentes.
De vez em quando, a avisar mais uma peça da banda, ou a saída da procissão, os foguetes estoiram no céu e espantam a passarada. Os putos correm atrás das canas pelos campos além e quebram o milho à sua passagem. Nas barracas que são improvisadas pensões, as canecas de asa circulam afoitas e o vinho da Quinta da Fisga de Bairros tinge de vermelho as blusas brancas rendadas das moçoilas, que, com as costas da mão limpam os beiços rosados.
É grande a alegria e o entusiasmo do povo e, neste ambiente de excitação e confusão da festa, multiplicam-se os abraço à mistura como uma bengalada nas costas. Em cima das adaptadas mesas, grandes tachos de feijoada, garantem fartura aos romeiros. Dos talhos, saírem postas de carne fresca, que ainda quente se transforma em bifes de quilo nas mãos do Lapadas. Primeiro comem-se as vitelas, no resto, servem-se os bois. Agora, já não faz diferença a tenrura da carne e só existe a preocupação de manter vivo o espírito da festa, prolongando-a pela noite dentro, até que, cansados e emborrachados, caem como mortos na relva calcada.
- Então Maneta, os bifes eram tenros?
Aquelas palavras tingidas de escárnio, dão-lhe voltas na barriga, ressuscitam a raiva escondida no peito.
- Vai ser hoje! Pensou. Espeto-lhe a picareta nos olhos e o cabrão morre. Depois, fica lá no fundo, enterrado já está por natureza, faz-se de conta que foi sem querer!
O Pestana parece adivinhar os pensamentos do outro. Vigia-o, mas não cede. É manhoso, arraçado de galego, fino como uma raposa e marca - pistola. Tosse, para disfarçar o riso no canto da boca. Continuam lado a lado, sempre a medir-se de cima a baixo. Se o Maneta pára uns segundos para acender o cigarro forte, o Pestana pàra também a coçar a barriga.
- São pulgas?
Pergunta o Maneta.
- Não! São percevejos e grandes. Responde o Pestana.
Neste jeito de vida, vão comendo metros e metros ao caminho que têm pela frente e as suas figuras estrambóticas perdem-se nas sombras do choupal de Pedorido. O Douro corre agitado pela nortada e no horizonte não se vislumbram velas. Nenhum barco rasga estas águas agora turvas.

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