terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

A CHICA

A CHICA




Nas Córgas o alvor da manhã surpreendeu a Chica, mulher do Marto, a cavar as leiras para semear batatas.
Quarenta anos de vida dura, transformaram uma figura de mulher bela, numa silhueta cinzenta de gata desleixada. O rosto outrora mimoso, tem agora a idade do mundo, rugoso, segura dois olhos azuis e mortiços ao fundo de duas profundas cavernas. Os maxilares salientes onde dentes raros cravados dão forma e antecipam um esqueleto mortal, definem a escanzelada magreza do corpo.
As hortas tomadas a terço ao senhor Raposo, que constituem o suplementar orçamento do casal, são bocaditos dispersos aqui e ali, amanhados pelos mais pobres a troco de uma parte da produção que pode ou não ser generosa. O tempo o irá determinar correndo lento, soalheiro ou chuvoso, procederá sozinho à criação dos mimos. As contas, essas acertam-se pelo S. Miguel, por alturas da feira das colheitas em Arouca.
Na alma desta pobre mulher, o dilema provoca a angústia e dá lugar a um misto de raiva e de resignação que não consegue conter. A causa de semelhante dor, é Rosalina a filha mais velha criança ainda com dezasseis anos, largou a escola aos dez e foi lançada num mundo agreste e desconhecido onde toda a meninice feliz e despreocupada deu lugar ao esforço fabril como se já fosse um ser adulto. Trabalha numa serração em Gondomar a carregar madeiras na fragilidade de uns ombros tenros ainda para semelhantes tarefas. Ali conheceu um rapaz corticeiro de quem nem o nome sabe mas que na fúria de uma paixão efémera, lhe encheu a barriga repentinamente. Apareceu chorosa em casa trazendo nos olhos cor – de - céu, a ruína de uma juventude lancetada, o desgosto impune que a iria transformar num ser anormal e desprezado.
- Prenhe, vá lá que não vá, ora não saber nada acerca do pai da criança, isso é que é o cabo dos trabalhos! Como é que iria apresentar a notícia ao Marido!? Ele era capaz de entender a prenhes, a vinda do neto...mas sem pai? Não podia ser!
Dá voltas e reviravoltas à cabeça mas nada lhe surge de lucidez ou de consolo. Ela também emprenhara do Marto antes do tempo, mas em circunstâncias muito diferentes destas em que a filha desconhece por completo quem é o pai da criança. Resignada cava a terra dura e a erva orvalhada molha-lhe os pés gretados e nus.
Volta a realidade a consumir-lhe a cabeça:
- Mais uma boca! Já eram sete! E agora!
Olha o cesto das batatas rachadas em quatro onde uma criança com quatro meses de vida, dorme regalada embrulhada nos restos de uma manta.
- Que vaca! Mal saiu de casa meteu-se logo debaixo do primeiro que lhe apareceu! Ela ficou cheia solteira mas era diferente, foi com o mineiro que além de vizinho é amigo da família com cartão da empresa e tudo o mais!
- Precisa que lhe cheguem a roupa ao pelo! Mas prenha não, pode perigar!
- Mas dumas lostras bem dadas, ai que precisa, só se perdem as que caírem no chão!
- A porca! Onde é que se viu isto! Vai ter de fazer um desmancho, nascer é que não pode! E comida? Quem é que a vai sustentar? O Marto!? Ela vai boa, o desgraçado mal ganha para o caldo, que fará para alimentar mais uma boca! Tem de ir a Avintes fazer um aborto! Tem de tirar aquilo do bucho!
Clarifica-se a ideia da Chica, pensou e encontrou a solução, afinal o problema nem é assim tão grande, cabeça fria e tempo e lá está o povo a encontrar improvisadas soluções.
Vai a Avintes mas não sabe se volta depois de sujeita aos artifícios de mãos de carniceiras inábeis que lhe rasgarão o ventre sem qualquer piedade. Pode esvair-se em sangue e morrer ou então humilhada e calada, deixar a alegria num recanto obscuro das tramóias inconscientes da sociedade hipócrita.
- Vai ser já amanhã! O Marido nem vai saber de nada, e se souber, se lhe chegar aos ouvidos!? Também não interessa, é um perfeito anjinho, cala-se e pronto!
Aqui está a mão do destino ou o poder do infortúnio a suster a vida e a morte por um ténue fio. Morre-se ou vive-se nas Córgas conforme a honra e o pão! Nada mais se joga no desgraçado tabuleiro da vida. Por ausência de acompanhamento especializado, julga-se, condena-se e executa-se a sentença na leira a plantar batatas sem aconselhamento e sem ouvir as partes. Continuará a ser um pouco assim por este país fora onde os clarões do progresso já permitem alguma atenção e começam a iluminar muitas almas. A Chica não pode saber nem sequer conhecer os imprevisíveis golpes do destino. Também ele vai mexer as pedras do malfadado xadrez e nada será como ela determinou. O dia é ainda uma criança, até anoitecer muitas coisas podem e vão mudar radicalmente. Ninguém é dono de nada, senhor sequer do seu próprio destino, muito menos do dos outros. Esta mulher é apenas a vítima de um mal que alastra como um vírus desde sempre. As grandes decisões da vida, aquelas que a solidariedade e a justiça social deviam acompanhar de perto, perdem grandeza e normal efeito, perante as condições de abandono e miséria absoluta em que este povo vive. A Chica é também culpada mas a verdadeira culpa, neste e em muitos outros casos, possivelmente morrerá solteira.
Cava a terra desconhecendo que lá longe em Germunde nas profundezas do chão de carvão aconteceu a tragédia que acaba de lhe matar o marido. A notícia demorará a chegar mas virá trazida nos olhos do companheiro de viagem.
Desata o nó do lenço de merino amarelo e preto que prende na cabeça e olha o horizonte com um olhar perdido e desconsolado e nem o rio Douro a correr sereno, dá paz a esta criatura. A criança chora no cesto das batatas e sem largar a enxada, a mãe entoa dolente uma canção de embalar:
- Dorme, dorme meu menino, que a tua mãe logo vem! Foi lavar os teus paninhos, ao reguinho de Belém!
Que grande mentira! Que desconexa realidade, ou então, por efeito de estranha magia, os paninhos que a mulher diz que lava, são este pedaço de aço enfiado num pau, que sobe e desce num ritmo vertiginoso e dorido rasgando as entranhas da terra que há-de dar o sustento. Canta uma canção de amor, tentando dar-lhe um som de ternura, carinho e súbita alegria mas o coração vai negro como as noites da inocente filha Rosalina.
A criança reconhece a doce melodia, sossega e cala-se, a mãe retoma as preocupações da vida que lhe vão enrugar ainda mais o rosto. O Douro comove-se e jura vingança.

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