quarta-feira, 14 de março de 2007

Barqueiros da Esquadra Negra

A alvorada acorda medrosa no vale do douro. Uma espécie de neblina envolve toda a paisagem e S. Domingo adivinha-se por dentro do denso nevoeiro. As serranias em volta goraram-se da vista, apenas se vislumbra o rio e Pedorido é um quadro abstracto à frente dos olhos, encoberto, difuso e molhado.
Das chaminés do casario de Rio Mau sai um fumo pardo, preguiçoso, que evolui no espaço alguns instantes para depois se diluir na acentuada humidade do ar. O cheiro da terra é intenso, acre, misturado com o perfume da urze que o vento acarta das serras em volta. Madrugadores os galos desatam em cantilena na rua do Lugar e, os dos Estercos respondem afinados bem antes de findar o nostálgico eco em S. João. O sino da igreja de Santa Eulália em Pedorido badala dolentes as sete da manhã. O som do bronze paira por momentos no tempo, depois perde-se melancólico nas quebradas dos montes.
Batem sete horas no sino do campanário mas não acorda ninguém, há muito que o povoado mexe, acordou cedo porque o pão não se ganha aqui, é preciso procurá-lo longe ou então na banda de lá do rio na sinistra indústria.
Na Lingueta, espécie de rampa de varar que desce até entrar naa água, vêem-se encostados uns aos outros os barcos Rabões que carregados de carvão irão partir para Campanhã pelo rio abaixo e, as silhuetas escuras das embarcações, assemelham-se a cascos de túneis a boiar na água. Campanhã é longe, nas bordas do Porto, a descida do rio é vertiginosa, às vezes basta o homem da espadela guiar o barco e algumas pás a tentiar o mesmo aproveitando o vento de sopé armando a vela de Traquete à frente. Outras vezes, com a maré na preia-mar, é custoso arrastar à força de braços, tantas toneladas de madeira e carvão antracite. A subida é sempre terrível, penosa, desgastante e desumana. Os barqueiros esperam o vento da barra que enche as pardas velas. Mastro armado no Terço do Meio e vela Quadrada enfolada, ela e os homens lá vão fazendo de tudo para amenizar o esforço. Nos caroços, sítios no rio onde a Quilha e o Sagro do barco arrastam no fundo, é muito difícil de progredir. Aí três homens saltam para terra, descalços nas escarpadas pedras da margem, munidos com uma corda presa há embarcação, puxam à frente desta enquanto a sirga esticada lhes vai provocando feridas nos ombros. As pedras de xisto, sulcadas com profundos regos feitos pelas cordas a raspar, cortam-lhes os pés nus deixando as chagas abertas a cicatrizar ao tempo. Outros de vara de Carregar fincada no peito, lisa, que as mãos dos barqueiros já lhe retiraram as farpas cravando-as na carne, faz-lhes uma mancha tumefacta e calosa no outro lado do coração quando a espetam no fundo do rio e caminham desde a proa até à ré, vergados para a frente num tremendo esforço, agonizam em cada minuto que passa.
Nos dias de cheias o Douro transtorna-se e, como um louco apressado em chegar à foz, parece que leva consigo a força de mil demónios. Os barqueiros não o temem, embrenha-se com ele numa luta de morte num feitiço estranho que os empurra cegos para o colo de tão enganadora amante. Dão-lhe tudo, o suor dos corpos, o sangue das veias e até própria vida. Ficam doidos como ele condescendendo sempre a esta paixão dominadora, só em troca do pão que lhes falta em casa, numa entrega total a uma afeição demasiado infame para ser amor. Que degredo! Que a morte em leito pobre, é mil vezes mais justa. Que crueldade horrenda se pratica aqui neste magnífico vale do Douro. São tantos a padecer tão desditosa sorte. Vêem dos mais diversos lados; Espadanedo, Couto, Escamarão, Bitetos, do Castelo, Sardoura, Pedorido, Melres, de Rio Mau e de outros mais longínquos sítios. Todos irmanados do mesmo sentimento de uma solidariedade ímpar, tratam-se por companheiros e estabelecem entre si laços de verdadeira fraternidade. As refeições são comunitárias, a mesma panela cozinha os caldos que todos irão comer com o mesmo garfo ou a mesma colher. A dor de um transforma-se sempre no sofrimento de todos e mesmo assim é tão pouco o bem-estar. Por mais união que haja, é impossível transpor as barreiras da pobreza extrema. Se um é pobre, os outros todos são paupérrimos. Se um tem de alimentar três ou quatro filhos, os outros têm de alimentar um bando que chega aos treze. Em cada uma destas vidas, venha o diabo escolher a melhor. Todavia sorriem, dão largas sempre que podem a uma réstia de alegria que docemente acalentam na alma. Dá gosto vê-los em tempos de calmaria, entre abraços fraternos dão liberdade a esse minguado consolo que de vez em quando desponta nos seus corações. Então sai uma desgarrada acompanhada pelo enfeitado e suave som da viola braguesa e pelo delicioso passar da caneca do verde tinto de mão em mão. É quase sempre o Constantino a abrir a contenda e os dois irmãos, os Canecas, incitam ao despique:

Que lindo é o berço sagrado.
Que lindo é o berço sagrado.
Que me criou e alumia.

Aqui a braguesa faz dois compassos.
Que me criou e alumia.
Entre beijos e abraços.
Lá vim eu à luz do dia!

O melancólico e bizarro dedilhar da viola enche o espaço e a noite. Dois lampiões a petróleo esforçam-se por iluminar a taberna oscilando vagarosamente no tecto por entre dois cabos de cebolas, um ramo de louro e presuntos pendurados mais os efeitos de tosca contra luz, dão às paredes de caliça, formas bizarras e fantasmagóricas tornando o local num sítio castiço. Agora entra o Malhado a matar:

Ó cantador afamado.
O cantador afamado.
Aprecio os teus cantares.


Outra vez a viola dolente.
Aprecio os teus cantares.

Bem puxas pela goela.

Mas não me chegas aos calcanhares!
Está lançado o mote que servirá de tema aos cantares desafiadores. Como dois galos em capoeira, lá se vão crispando no fazer de cada quadra transformando a noite num momento de sonho. Consolados ficam então em alegre e amena cavaqueira pela noite dentro.

Sentado na caixa da farinha o Zé Esperança enfia o focinho na caneca do vinho bebendo em grandes goles o néctar de Baco. Meio vivo, meio morto, escuta fascinado as narrativas dos barqueiros que falam de tudo e de nada contando entre si, algumas histórias de valentia que nunca chegaram a viver. Transforma-se em heróis repentinamente e ninguém ousa desmentir ninguém. De olhos espantados, ouvem os feitos uns dos outros como se fosse a primeira vez e no entanto são antigos, recontados por dias e noites semelhantes a esta alterados aqui e ali conforme a imaginação de quem os conta. Gesticulam ao sabor do conto, ora as mãos se cruzam no peito como quem ama e sofre, ora assumem contornos de luta como quem desfere certeiro golpe de espada afiada. Os companheiros sentados no comprido banco da tasca, ou se chegam à frente para ouvir melhor nos momentos em que a voz é só um sussurro, ou então recuam transidos de medo daquelas mãos em riste. Comungam a mesma hóstia sagrada do irreal e do fantástico que chega a assumir contornos de verdade autêntica. Mas não, são apenas desabafos, pedaços das almas mutiladas dos marinheiros da Esquadra Negra que já tarde, felizes e alegres regressam aos lares abraçados uns aos outros.
O último a abandonar o tasco é o Zé Esperança; manco há muitos anos, cambaleia e tenta arrastar-se até à barraca distante onde vive. O velho Zé parou ao cimo da costeira e, com muito custo tenta reconstruir um cigarro que traz meio desfeito no bolso da samarra. A chuva tangida por um vento forte vai ensopando as roupas do velho desgraçado que perdido no meio das trevas ensaia um princípio de canção:
- É tão bom ser pequenino,
ter mãe ter pai, ter avós.
Pára! Decerto já não sabe o resto da letra ou então é a emoção que não o deixa avançar. Grossas nuvens de fumo aparecem da boca que cheira a vinho tinto e a caldo de couves. Lá ao fundo corre sereno o Rio Mau. Cambaleando inseguro, o Zé retoma a estranha marcha mas já não há controle de nada. O corpo cede em cada passada e as pedras soltas do carreiro, impedem qualquer progresso. Rolou pela encosta pedregosa como se fosse pedra lançada em ribanceira e ao fundo arrastou-se penosamente pelo chão e só a muito custo conseguiu chegar à miserável habitação. Adormeceu e sonhou não se sabe com quê, talvez com a mãe que perdeu aos cinco anos ou com o pai que nunca conheceu. Na manhã seguinte encontraram-no morto na enxerga molhada. Olharam pelo postigo e reparam que o sol lhe iluminava o rosto sereno já sem vida. Conta-se que quem passa a horas mortas da noite junto ao rio mau, tem a sensação de ouvir as águas a cantar:
- É tão bom ser pequenino, ter mãe, ter pai, ter avós...

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