sexta-feira, 13 de abril de 2007

O PREGADOR

No largo da Sobreira em Rio Mau, o Ernesto ensaia os primeiros retoques do que vai ser um quase improvisado discurso. Quase, porque o mendigo trás no cérebro atrofiado, uma lição fixada, como relógio que parou subitamente e continua a perpetuar uma determinada hora, ignorando o passar do tempo, refém das memórias que lhe restam. Vem de longe, do Porto a pé pelos montes fora.
Alto e crestado do sol da chuva e do vento, deixa cair pelo rosto abaixo uma barba longa e incrivelmente loira. Os olhos de um azul celeste, parecem abrir-se em espantos contínuos e interrogações sem respostas. As mãos sustentam uns dedos esguios, descarnados de onde aparecem umas unhas compridas e perfeitamente talhadas. Não fora a rasca indumentária composta por umas calças de pano-cru, uma camisa de flanela cor – de – barro e os pés nus, poder-se-ia dizer tratar-se de um autêntico cavalheiro. É-o na verdade apesar de tudo, tanto nos gestos e modos, como nas palavras que profere carregadas de ideologias filosóficas demais, para tão arruinado personagem. Desenha a vida, a sua e a dos outros, em pinceladas de cor e poesia salpicadas aqui e ali por uma objectiva e pertinaz crueldade. Trata toda a gente bem, só à canalha tem verdadeira aversão.
No largo central da aldeia, tendo como cenário privilegiado o rio Douro e um secular fontanário que teima em acudir às sedes dos caminhantes, junta-se o Abraão moço na força da juventude, pária e vagabundo como ele. As mãos deste miserável forasteiro, são sapudas e a cara redonda onde baila uma expressão de menino medroso, assemelha-se a uma bexiga de porco atestada. A indumentária do jovem indigente, pouco varia em relação ao primeiro. Usa roupas já usadas por terceiros que se nota não serem adequadas ao seu corpo atarracado onde sobressai um velho sobretudo comprido que vai arrastando pelo chão. De vez em quando um patético esgar risonho rasga de lés a lés uma boca fina e ficam à mostra duas carreiras de dentes incertos e podres. Também desprovido do juízo certo, albergando na cabeça um cérebro cuja lâmpada da razão já se fundiu, misturam-se ali algumas ideias patetas, com outras perfeitamente normais, que o fazem desgarra-se e deixar Trancoso sua terra primeira e, por montes e vales sempre distantes do seu chão natal, chegar a Rio Mau. Estudara num seminário do norte, ali a fraqueza do corpo provocada pela deficiente nutrição, bloqueara-lhe o conhecimento ficando assim à mercê e abandono da sorte.
O distinto pregador é o Ernesto decerto o ser mais bizarro que demandou estas bandas e trás, no seu entender, todo o desânimo da humanidade julgando que não merece a pena nascer. Para ele, o simples acto de vir ao mundo é só por si um desperdício total:
-A vida é pois a pior herança da humanidade! Quando se nasce marcado pelo ferro de uma morte que pode ser tardia ou breve, mas sempre inevitável, herdamos logo ai a funesta razão de existir!
-Porque nascestes vós!? Porque não ficastes no limbo, no desconhecido, onde o corpo não sofre e alma não é nossa!?
É assim que o louco filosofa e explica uma certa aversão aos mais pequenos talvez no cumprimento de uma espécie de protecção a que se julga obrigado. Trinta e dois anos de vida, dez deles a carregar na mente a pavorosa loucura, não o demoveram destas convicções e firmes propósitos. Fora também estudante universitário mas o frágil poder do seu arquivo não foi capaz de suportar tamanho conhecimento; enlouqueceu! Dirige a sua revolta ao Criador e é frequente usar da palavra horas a fio a desafiar as Suas leis. No meio deste largo despovoado tendo como cenário preveligiado o rio Douro, assume uma postura erecta de pregador. As mãos e o rosto viram-se para o céu ásperas e com firmeza de voz inicia o eloquente discurso:
- Já sei que hoje não vai haver paz para mim! Começa o pregador:
- Neste dia que corre, não sentirei a Tua presença! Nasceu um novo sol mas não será para me iluminar! Aquecerás as vidas de muitos, mas não a minha! Eu sou pobre um desgraçado a quem Tu, nem a memória deixastes progredir! Agora o rosto toma uma forma dolorida onde se desenha um sorriso imbecil.
- Arrasto pela vida uma cruz tão ou mais pesada que a Tua! É este o meu castigo, mas não fui julgado como Tu, ninguém me perguntou nada sobre nada e no entanto condenaram-me! Diz-me onde estavas nesse momento!? Não me respondes por que não queres saber de mim e nem sequer ouves as minhas súplicas! Posso até reconhecer-te, não como um Deus generoso e bom, mas como aquele que permite esta miséria imensa pelo mundo! Sou eu quem Tu diz! Nada posso perder, pela simples razão de que nada tenho. Por isso Te falo de homem para homem, sem temer as Tuas hostilidades. Sim porque Tu és vingativo. Houve tempo em que acreditei em Ti cegamente mas foi tudo uma ilusão, reconheço que não há reciprocidade no meu amor por Ti e de mim não queres ouvir falar mas lembra-Te que também eu saberei punir os Teus desmandos, as tuas omissões!
O Abraão contorce as mãos em desespero:
- Fala-lhe de mim! Diz o seminarista assumindo uma atitude de pedinte onde as mãos se estendem numa súplica de crédulo e o rosto adquire uma expressão ridícula e temerosa:
- De ti!? Fala-lhe tu, pois é bem possível que Ele te dê ouvidos! Tu, membro e sócio fundador da sua quadrilha de benfeitores demasiado ocupada em gerir os pessoais bens terrenos, estás decerto em melhor posição para lhe falares de ti! És cúmplice deles, eu sinto as dores da discriminação e do desespero, tu não! Aceitas o castigo que julgas generoso curvando-te perante a razão que desconheces, e não protestas. Tu Abraão, és realmente um pobre! Dás-me pena, Inspiras-me dó e muita piedade!...Mas perdoou-te, perdoou-te por uma razão simples...és meu irmão!
- Mas eu rezo! Diz angustiado o Abraão.
- Rezas!? - Tu sabes lá o que é rezar Abraão! Rezar é isto irmão! Rezar é falar com Deus! É dar-lhe a notícia das nossas angústias, dos nossos desesperos! É fazer com que veja a miséria brutal em que se transformaram as nossas vidas!
- Sabes uma coisa Ernesto!? Eu acho que tu blasfemas!
- Blasfemo!?
- Cala-te desgraçado que não sabes o que dizes. Cortam-te o corpo e o espírito a golpes de espada e não protestas, sequer sabes quem empunha a arma causadora do nosso sofrimento! Há culpados companheiro, gente que julga que tem privilégios e que come o meu e o teu pão! Gente que se julga acima do comum dos mortais e usa-os para engrossar as grandes fortunas vitalícias! Acaso dar notícia da verdade da humilhação é blasfemar!? Deita-te ai irmão, dorme o sono da ignorância eterna e deixa-me protestar pois um dia virá em que por farto dos meus protestos ou por divina piedade, Ele nos abençoará! Acaso tu não sabes que o tempo se esgota e torna-se urgente mudar este estado das coisas!? Agora vira-se novamente para o alvo das suas críticas, o Céu.
- Desce daí do Teu Céu esplendoroso e vem aqui falar comigo cara a cara! Não me respondes, nem Tu nem ninguém! As minhas palavras são o eco das minhas palavras, do meu sofrimento, do meu imenso desespero, desta minha lúcida loucura. E, apesar de tudo, ainda Te espero Deus mudo, Deus, ingrato. Vem quando quiseres, todos nós precisamos urgentemente de Ti. Este povo desgraçado ama-te, adora-te e acredita que um dia virás salvá-los!.. Vem antes que se me aflorem os nervos e deixe de ser responsável pelos meus actos. Lembra-te que também eu sei castigar!.. Prova-me ao menos que existes, que és realmente o Salvador do mundo! Eu não sou deus mas em verdade Te digo, tempos virão em que poucos ou nenhuns Te prestarão vassalagem e Te irão trocar por outros deuses mais generosos!
As mãos ainda há pouco em riste, fecham-se sobre o peito numa atitude de penitência e o azul daqueles olhos toldou-se de lágrimas. Parece angustiado o Ernesto, fita o céu como quem espera aflito, uma resposta ou um sinal enviado por aquele Deus com quem protesta. No íntimo ele sabe que só Ele e a Sua infinita misericórdia poderão salvá-los. Vagarosamente, estende-se no chão de terra batida ao lado do amigo e vão ficar horas prostrados ali sem dar sinais de vida. Todo o orvalho deste mundo humedece e gela estes dois corpos desgraçadamente desamparados.
O rio Douro escuta em silêncio e tenta em vão compreender a aflição deste homem. Hoje é véspera de Natal. O povo já recolheu às casas onde irão consoar as couves, o bacalhau e as deliciosas rabanadas, talvez bolo-rei ou sopa seca. Eles refugiar-se-ão na rua da Torre na tasca da tia Albertina que os acolherá e adoçará um pouco mais a amargura das suas vida. Poucos querem saber deles! Alguns passaram ao meio do discurso e não pararam. Desumanizados e cegos, seguem a ilusão da individualidade que os divorcia da fé, e os faz julgarem-se eles próprios, os loucos, muito acima da virtuosa caridade. É muito mais que falta de fé, é indiferença, o escárnio da ignorância, é a solidão que se ganha por se matar o amor dentro de nós. Também por isso o Abraão e o Ernesto se estendem na laje fria do largo da Sobreira, nesta noite que há-de ser de luz e renovadas esperanças, sem um gesto de carinho, ternura ou piedade de quase ninguém. Jesus nascerá em Belém daqui a pouco! Uma estrela já o anuncia refulgindo além no Céu por cima de Pedorido e, estas duas almas, no barracão da lenha, já num profundo sono e a sonhar com o Deus menino, deixar-se-ão acariciar por Ele

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