quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Paixão

O Isidro Sardão atravessou o rio na barca de Moreira e meteu ao cimo por caminhos tortuosos que diversificados atravessam a serra da Boneca de e lés a lés e se perdem nas distancias de Cabroelo e de Valpedre.
No alto, mesmo no ponto onde o terreno se torna mais plano e é escassa a vegetação florestal e os montes são limpos e só atapetados de chamiça, quiró e carqueja, parou a contemplar o horizonte vermelho alcançável como se ali procurasse algo que perdera há muito tempo mas que permanece na mente a perturbá-lo de forma constante e a faze-lo estancar como um soldado à voz do comando, sempre que por aqui passa. Vislumbrou lá ao fundo do extensíssimo vale mergulhado num maravilhoso entardecer, o rio Douro a desaparecer nos labirintos de Melres imponente como um rei a marcar a solidez do seu domínio absoluto.
Recomeçou a marcha interrompida, passou por baixo da capela solitária de S. Pedro e continuou a caminhar até ao Loureiro e ali na encruzilhada, pensou em seguir em frente até à Fonte que Ferve mas, sem saber bem porquê, virou à esquerda direito a Vilarinho do Monte lugar que mergulhado nas últimas tarefas do dia, nem deu pela sua chegada.
Em Moreira de Melres onde há três horas atravessou o rio vindo de Germunde, bem podia ter encurtado caminho seguindo a Sobrido e ali virar na direcção de Aguiar de Sousa e caminhar até Alvre onde atravessaria a frágil ponte sobre o Rio Sousa e correria na direcção de Santa Comba e dali seria um pulo até Lagares, mais precisamente até S. Julião sua terra de origem onde o esperavam já a mulher e os dois filhos. Porém, as manhas da sua engrenagem corporal morada de todas interdições e de todas as liberdades, são muitas e têm de ser saciadas mesmo que para isso tenha de alterar completamente a aconselhável trajectória da vida; ele bem sabia que economizaria caminho e dificuldades mas é sempre difícil resistir aos apelos do cio que o têm transformado num autêntico cão rafeiro atrás de cadela à queira.
O Isidro anda apaixonado há muitos anos e, essa paixão que transformou em ampliação quase cega do amor, fê-lo perder a individualidade, esquecer as obrigações e os deveres e ceder sem pensar ao fascínio que uma mulher exerce sobre ele.
Há fortes motivos para seguir este itinerário custoso que provoca sucessivos arranques de esforço a trepar a serra desgastando o buxo e as pernas que vacilam e parecem desfalecer nas costeiras mais íngremes. Os seres enamorados imitem ondas ultra sónicas que se espalham pelos ares subindo serras, descendo aos vales mais profundos como as radiofónicas da Emissora Nacional e são recebidas lá longe no receptor sintonizado na mesma frequência. A razão tem razões que a própria razão desconhece, assim, movido por um sentimento que não consegue controlar, deixa-se envolver no enredo do que julga ser amor num rosário de anos perdidos num namoro que sabe de antemão, nunca virá a ter futuro. No entanto mantêm acesa a labareda da esperança que lhe causa dor e sofrimento misturados com muitas arrelias mas constitui também a razão única para se manter vivo, esmourando no degredo do Pejão como uma toupeira, transformado num farrapo humano sempre pintado de negro a cavar carvão nas profundidades da terra.
Pouco ou nada lhe resta de consolo e apenas se lhe mantêm viva a doentia esperança dos loucos que nunca se convencem que o futuro para eles é só uma miragem e que nada nem ninguém os poderão salvar das maldosas combinações deste mundo. O Isidro não está sozinho nesta via – sacra, são tantos a padecer destes indesejáveis tormentos pelas mais diversas razões, que chega a parecer impossível o mundo acertar o compasso dos dias sem qualquer alteração. Decerto o planeta inteiro não sabe nem quer saber das angústias dos seus habitantes. Todos os dias o sol nasce desinteressado de tudo o que ilumina e mexe cá em baixo como a dizer aos seres vivos que lhe é completamente indiferente as formas que adoptaram para sobreviver.
É pois uma questão de equidade e justiça duas coisas que por acarretarem deveres, poucos ou nenhuns conhecem. Nasce-se já desgraçado nestas miseráveis terras; o dulcíssimo pão – de – ló se é que por ventura existiu aqui, já há muito foi abarbatado pelos espertalhões perpétuos que vão passando o testemunho da rapinice de geração em geração e, só mato, carquejas, tojos e chamiças sobraram para o resto do povo comer.
À entrada de Cabroelo onde se avista a capela do santo padroeiro estacou de repente. Num campo que dá margem ao caminho, a Maria Rosa cegava erva de cócoras, mostrando um pouco da brancura das coxas. Para facilitar a apanha do penso, arregaçava a saia e assim trabalhava mais à vontade. Depois não passava por ali ninguém àquelas horas e mesmo a outras com o dia bem alto, nem uma alma penada cruza estes caminhos ermos.
O mineiro ajeitou-se para a junto da parede, colocou uma perna em cima das pedras de xisto e botou faladura:
-Então a lidar a esta hora Rosa!?
-Tem de ser, os bois também são gente, ninguém os cala com fome! Respondeu ela suspirando à óbvia interpelação do Isidro.
Talvez fome dos animais misturada com a sede da pujança do corpo ainda jovem a mostrar ardor em cada palavra que a sua boca vermelha pronunciava. A voz estremeceu e a mão que empunhava a alfaia da cega, sentiu-se nervosa.
- Ò Gracinha parece tão cansada, não quer vossemecê vir descansar um bocado aqui na borda do campo? Perguntou o mineiro.
Já ardia uma espécie de lume por todo o corpo do Isidro. Aquele ardor aparecia sempre a perturbá-lo quando via a cachopa como se todo o organismo reclamasse a dádiva dum beijo que amenizasse o calor da fogueira que o andava a assar por dentro há muitos anos e só em raros momentos como este tinha manifesta e necessária acalmia.
Não fora a teimosia dos pais da rapariga em permitir o enlace e teriam selado as suas vidas ali à frente na capela de S. Mateus. Porém a sorte ditou outra coisa, outro rumo que o fez definir diferentes estratégias mas que nunca conseguiram varrer por completo esta paixão.
Ela caminhou ao encontro dele, pudera, o que é bom ou é pecado ou engorda e assim sendo vale sempre a pena arriscar. Corada de foucinha na mão esquerda e com a outra a limpar a testa suada, como quem se vai submeter a um castigo que apesar de tudo sabe ser consolo e redenção, era então um anjo a subir ao céu dos seus desejos. No brilho de uns olhos profundamente azuis, trazia a mensagem que todo o seu corpo também ansioso andava a redigir em espasmos nocturnos sem que ninguém conhecesse o bálsamo capaz de aliviar aquele corpo minado por tão intensos anseios. Foram uns minutos de colossal paixão em que as bocas se colaram num delírio inflamado em ao mesmo tempo as mãos do Isidro procuravam aflitas os secretos e sensuais recantos do corpo daquela mulher ainda formosa que tinha sido o seu primeiro amor enquanto a marmita se lhe desprendia da cinta e rolava aos saltos pela borda do lameiro e ia cair como morta no rego que leva a água para a Bouça.
Foi um relâmpago, qualquer coisa violenta que nem um nem outro poderão nunca explicar. Realidades adúlteras que sucedem assim de repente sem cálculo, sem premeditação como erupção vulcânica, ou apelo dramático da terra que quer fazer justiçam redigindo a direito as escritas que os humanos complicam, ou sabe-se lá o quê.
Tudo acabou num instante; os dois já de pé, pareciam ignorar completamente o ocorrido de quem só a natureza inteira foi testemunha silenciosa.
- Então até amanhã. Disse o Isidro enquanto abotoava a portinhola das calças.
-Vá com Deus homem! Respondeu a Rosa a quem a cor dos olhos se tinha tornado mais clara e mais brilhante, ajeitando a engelhada saia de roda.
-Diga ao seu paizinho que lhe fico com o toiro. Disse o Isidro pendurando à cinta a marmita do caldo.
Reiniciou a marcha interrompida, meteu na direcção do Outeiro da Velha, desceu a Lenteiros e subiu a Bouça, ao cimo da costeira a sua magra figura, desenhou-se no horizonte vermelho, indecifrável.
Os melros chilreavam aflitos à procura de guarida enquanto a Maria Rosa, muito de vagar acamava e enchia o gingo com paveias de erva, segura de que os bois já não tinham fome.

3 comentários:

Valdemar Marinheiro disse...

Uma história perfeita.
Quem conhece os recantos ao acabar a leitura sente a sensação que ele próprio está a alcarrilhar por esses caminhos sinuosos mas com uma paisagem única. Recantos de encantar.É o sentir de uma saúdade permanente.

Piko disse...

Quem nasceu e viveu em pequenas aldeias em que os espaços naturais eram não só enormes, diversificados e belos, encontra na história o reavivar de outras histórias, demasiado semelhantes, em que os AMORES sempre aconteceram, apesar do incómodo duma igreja intolerante e estrábica!...
Parabéns ao autor!
ADOREI O TEMA!

Maria Cristina Quartas disse...

Lindo, lindo, lindo....
Muito bem escrito e narrado.
Sente-se a alma do autor.
Parabéns!

Maria Cristina Quartas